Além da Paisagem - Por Jonas Reis
ALÉM DA PAISAGEM
I
- Senhores passageiros, dentro de poucos instantes estaremos pousando no aeroporto de Goiabeiras, em Vitória.
A voz soa impessoal, mas que importa.
A gente fica com a testa colada ao vidro, sentindo-se em casa. Há morros lá embaixo. No alto de um deles, erguem-se torres e antenas, voltadas para satélites invisíveis no espaço.
Uma floresta de encosta, as árvores rareando ao descer da vista. Caminhos estreitos por onde eu corri na infância levam às pequenas casas que brotam abruptamente entremeio à vegetação, para aos poucos se transformarem em terraços, sobrados, prédios, à medida que os olhos voam sobre o pequeno conjunto de vaidade, lá embaixo.
Ganhando a vista o centro da cidade, é bom resistir a tentar identificar as ruas. Tão estreitas, tão juntas, fugidias nesse instante veloz em que a aeronave passa rumo ao Norte, baixando sempre.
Esses segundos de constatação não deixam dúvidas. É um presépio. Mesmo quem não tem vocação para rei, mago ou pastor de ovelhas sente-se parte dessa paisagem familiar à qual eu me incorporei aos cinco anos – lá se vão três, quase quatro décadas.
Ali no início do morro, a gente começava a crescer quando se ouvia o primeiro slogan político que conheci: Chiquinho vem aí... Vieram também aqueles jipes verdes do Exército que num dia de março, por ocasião da volta às aulas, cercaram a Praça Costa Pereira. Depois ouvia-se falar que aqueles jovens cantores deixavam o Brasil e não entendíamos direito por quê. Lá fora já havia rapazes que cantavam muito bem, tinha aquela música Love me do, e aquela outra em que um deles implorava desesperadamente por Help, dizendo que precisava de alguém.
Como se vê, toda a turbulência dos anos 60 pegou a minha geração de calças curtas, dando milho aos pombos na paisagem amena do Parque Moscoso. Por uma diferença, quem sabe de cinco, oito anos, eu não pude estar naquelas reuniões clandestinas dos estudantes, nem freqüentar as noites do Marrocos e depois do Britz, como faziam então os futuros colegas de redação. Por isso, tenho contemporâneos que choramingam sem pudor, com inveja da geração que nos precedeu:
- Eles têm mais o que contar...
II
Antes daquela longa e sacolejante primeira viagem pela Estrada de Ferro Vitória a Minas, a paisagem à minha volta, permitam-me a redundância, era a de uma pequena vila do interior.
Lá de cima, não de um avião, mas do coreto no morro do cemitério, cercado pelas tiras verdes de maracujá, víamos, os meninos, a única rua do lugar. Uma estradinha de chão batido, com a poeira que seguia o lotação de um lado a outro do pequeno aglomerado de casas. E o rio de águas fartas, passando sob a ponte, umedecendo a pedra de onde os mais crescidos mergulhavam nos dias sempre quentes do lugar.
Eu me sentiria depois quase despatriado. A vila de Monte Carmelo, que na época do meu nascimento era parte de Colatina, com a emancipação de Pancas ficou no novo município. Mais recentemente ganhou novos chefes políticos com o surgimento de Alto Rio Novo.
Egoístas, amigos que também vieram de Colatina garantem que colatinense eu não sou mais. Talvez panquense, sugerem. Ou pancada. Que tal alto-rionovense. Em Vitória o único título de cidadania que possuo é o das ruas, das caronas no estribo do bonde, dos velozes carrinhos que desciam ladeira nas calçadas de O Diário, na rua Sete de Setembro. Viriam outros títulos, o dos bancos alisados nas escolas da rede municipal e, só bem mais tarde, das mal-traçadas linhas nos jornais locais.
Houve um tempo em que eu me sentia uma espécie de sentinela dessa paisagem, vigiando quem desembarcava. Foi assim que publiquei em A Tribuna e A Gazeta longas entrevistas com personagens importantes para momentos políticos específicos.
Herbert de Souza, um ex-exilado que era apenas o irmão do Henfil, mas começava a incomodar mais do que antes do exílio. O historiador Hélio Silva aos 82 anos, testemunha ocular da História desde 1920. Bolívar Lamounier, o verde iniciante Fábio Feldman, Frei Betto, que morou no mangue de velha ilha de Santa Maria depois de sair da prisão. Pelo jeito, gostou da paisagem, pois considerou Vitória seu Vaticano II.
Sérgio Bermudes nasceu aqui mas ganhou o mundo. Um dia, ao aterrissar, explicou-me como se tornou protagonista de um marco da história do Judiciário brasileiro, ao fazer com que a Justiça considerasse a União responsável pela prisão, tortura e morte do jornalista Vladimir Herzog. O Otto Lara Resende, dos contos de As Pombas do Mundo e do romance O Braço Direito.
Todos prometiam voltar, gostavam do jeito provinciano da cidade
III
A geografia não permitia muitas mudanças na paisagem espremida de Vitória. Ela é quase a mesma descrita por Maria Stella de Novaes, de como a ilha era vista quando foi doada por Vasco Fernandes Coutinho ao amigo Duarte de Lemos, que o donatário trouxera da Bahia de Todos os Santos.
“De topografia acidentada, a Ilha de Santo Antônio apresentava aspecto muito diverso do atual. Pouco adiante do Penedo, o mar entrava e formava uma angra, até as pedreiras, onde, mais tarde, foi construído o Forte São Diogo, ponto, agora, de uma escadaria com esse nome. Existia, ali, ainda, há pouco tempo, uma argola, na qual se prendiam os botes. Desse ponto, abriram os colonos uma picada, na escarpa que terminava num mangue – os Pelames dos nossos avós. Com o tempo, alargou-se aquele caminho e atingiu os foros de rua do Piolho, agora Treze de Maio. Do outro lado, ao Sudoeste, outro mangal ocupava a área do atual Parque Moscoso até a base das montanhas adjacentes. Tantos terrenos pantanosos, entre a opulência de uma vegetação surpreendente, conduziram o donatário à dúvida de tratar-se de uma ilha ou lezíria, conforme se verifica na carta de doação a Duarte de Lemos.”
IV
Vivendo nessa paisagem, você pode aterrissar no John F. Kennedy ou em Londres, Paris. Por mais excitante que seja, na primeira vez, vai faltar alguma coisa. Passeie pelo marrom-fosco do outono da Nova Inglaterra, entre pequenos castelos que homenageiam os antepassados dos colonos americanos. Será uma experiência nova, mais ainda falta algo. Observe a massa compacta de prédios quando estiver descendo em São Paulo, encante-se com a formosura natural da Cidade Maravilhosa ou deixe-se embevecer pelos campos verdes e sítios ornamentais quando se preparar para baixar em Confins.
Qual o quê, diriam nossos pais.
É na paisagem que emoldurou nosso crescimento, serenou nossos primeiros madrigais e guarda nossos passos e amores que o coração bate mais forte. E isso só tem uma explicação: se você é filho da terra faz parte dela e se estiver longe vai sempre estar faltando algo em você mesmo.
Lembra-me a paixão expressa pelo cacique Seattle por suas planícies, na carta-resposta que enviou ao Grande Chefe de Washington, que lhe propôs comprar as terras.
“Como podeis comprar ou vender o céu, a tepidez do chão? A idéia não tem sentido para nós. Se não possuímos o frescor do ar ou o brilho da água, como podeis comprá-los? A seiva que percorre o interior das árvores leva em si as memórias do homem vermelho...”
V
Bem verdade que a mesma paisagem que nos encanta esconde também nossos temores, casos mal-resolvidos, uns poucos f.d.p. entre tantos amigos. Um certo gosto de minério na garganta, monóxido de carbono invadindo os pulmões, o barulho ensurdecedor de um trânsito que só tem gargalos.
Como aquela espécie de sentinela de que falei, houve época em que saíamos eu, repórter, e Murilo Rocha, fotógrafo, para escancarar os problemas da cidade.
Estavam encaixotando Vitória, constatávamos no centro da cidade, onde antigos prédios ganhavam fachadas quadradas, que exibiam nomes de bancos e lojas de moda, escondendo a arquitetura original. Muitos desses caixotes permanecem hoje mas em alguns prédios os ocupantes aceitaram proposta da Prefeitura: retiraram as estruturas metálicas e recuperaram as frentes originais,em troca de descontos no IPTU.
Já a Praia do Canto de alguma forma me lembra os agora escassos e saudosos escritos do José Costa. Faz pensar no inescrutável dos anos que passam inexoráveis. Ali eu e Murilo fomos ver por dentro a delegacia que ainda em 1980 servia de presídio feminino. Não havia mais a paisagem de Praia Comprida, pois o mar foi empurrado para longe com o aterro.
A vida corrida rotineira na Praia, sem despertar poesia nas pessoas que passavam pelas ruas, nos passageiros dos ônibus, no jornaleiro da esquina ou na moça do caixa no supermercado. Mas por trás da fachada comum de uma casa transformada em cadeia, cinco mulheres pensavam o tempo todo nas mínimas coisas que estariam do lado de fora, muito além da paisagem do bairro.
VI
Que importa isso tudo agora, quando o avião perde altura rapidamente e já quase roça telhados em Jardim da Penha.
Prepare-se para o pouso, pois como nos versos de Exodus você vai pisar o chão que Deus lhe deu. E se aqui ele quiser que você morra, morra sem chorar.
Afinal, esta paisagem é o seu lar.
ESCRITOS DE VITÓRIA — Uma publicação da Secretaria de Cultura e Turismo da Prefeitura Municipal de Vitória-ES.
Prefeito Municipal: Paulo Hartung
Secretário Municipal de Cultura e Turismo: Jorge Alencar
Diretor do Departamento de Cultura: Rogerio Borges
Coordenadora do Projeto: Silvia Helena Selvátici
Conselho Editorial: Álvaro José Silva
José Valporto Tatagiba
Maria Helena Hees Alves
Renato Pacheco
Bibliotecárias
Lígia Maria Mello Nagato
Cybelle Maria Moreira Pinheiro
Elizete Terezinha Caser Rocha
Revisão: Reinaldo Santos Neves , Miguel Marvilla
Capa: Pedra dos Olhos, (foto de Carlos Antolini)
Editoração Eletrônica: Edson Maltez Heringer
Impressão: Gráfica Ita
Fonte: Escritos de Vitória 12 – Paisagem - Secretaria Municipal de Cultura e Turismo – PMV
Autor do texto:Jonas Reis
Compilação: Walter de Aguiar Filho, dezembro/2014
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