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Aspectos do Direito Brasileiro na República - Parte II

A desatualização das leis na República

Não se pode negar, de modo geral, a desatualização das leis brasileiras mais antigas.

Entre os fatores diretos e indiretos desse avelhantamento o Conselheiro Candido de Oliveira Filho aponta, ao referir-se às causas da demora das decisões judiciárias, o aumento da nossa população, o desenvolvimento da indústria e do comércio, «as transformações políticas posteriores à grande guerra, o desenvolvimento das relações internacionais, a emancipação da mulher, a proteção às classes trabalhistas, à juventude, à velhice e aos inválidos».

Estas coisas “envelheceram os códigos e vão fomentando um direito novo, ainda inconsistente, com as obrigações correlatas, e que se vai afirmando através da aluvião de leis dos últimos tempos” (Proc. Oral e Org. Jud., Jornal do Comércio, de 17-9-39).

Em relação a alguns institutos, ao falimentar, por exemplo, falam contra a lei vigente as nossas estatísticas, acusando um total de 6.000 falências requeridas de 1924 a 1928, só no Distrito Federal.

Quanto às concordatas informou o Sr. Sussekind de Mendonça, ouvido pelo O Globo, em maio deste ano, haver uma desproporção flagrante entre o que prometeram e o que realizaram.

A lei de falências pouco foi melhorada, em sua última reforma, e piorou sob alguns aspectos.

Vai ser agora substituída e, por certo, não só enfrentará diretamente o instituto da concordata preventiva, que é hoje, nela, uma questão aberta à lógica e ao gênio inventivo das autoridades e auxiliares falenciais e ao das partes, como entrosará todas as matérias no sistema jurídico nacional, com o qual se acha, por tantos títulos, em contraste.

 

A obra revolucionária realizada

É o citado Prof. Amoldo Medeiros quem lembra que  “depois da revolução de 1930, temos caminhado, sem choques ou embaraços e sem extremismos, no sentido de uma legislação social que é das mais avançadas. Evoluímos de um conceito exageradamente individualista e absoluto do direito de propriedade, do liberalismo econômico e da ampla liberdade de comércio e de profissão para as concepções atuais, nas quais, sem excessos, prepondera o sentimento de solidariedade social, estabelecendo-se a nacionalização progressiva e racional das minas e das quedas d'água, consideradas básicas e essenciais à defesa econômica ou militar da Nação”. (Professor Arnoldo Medeiros da Fonseca, Aos Moços, 1939, separata da Rev. de Org. Judiciária, pag. 6).

Atestando, então, a nossa alta evolução jurídica, o Prof. Nelson Hungria nos afirma que os preceitos constitucionais da limitação da iniciativa individual e do poder de criação, organização e invenção do individuo pelo bem público, o da incriminação direta ou indireta, da greve, do lock-out da usura, dos atentados à economia popular; e o da classificação, como crime, dos atentados contra a guarda e o emprego da economia popular, se anteciparam «ao direito positivo de quase todo o mundo civilizado” (Rev. For. 79, pag. 39).

A finalidade do direito é como lembra Inocêncio Rosa em Correio do Povo, de Porto Alegre, de 3-6-39, a conservação e o progresso do bem social e do bem individual.

Tem-no conseguido o Estado atual brasileiro: -

"... tanto a Constituição como outras leis contém grande número de normas, que impõem restrições aos direitos e garantias individuais, por motivo ou a favor do bem publico, com o fim de garantir a paz, a ordem, a segurança, o bem estar e a moralidade pública, manter e desenvolver o progresso, a saúde, a instrução, o comércio e demais interesses públicos. Nesse sentido é bem expressivo o art. 123 da Constituição Federal de 10 de novembro de 1937". 

 

A obra realizada e o Código de Processo Civil, considerado à parte

Não podemos deixar de destacar deste Capítulo o grande Código processual decretado, a vigorar em breve.

É o novo Código de Processo Civil a execução da promessa do Presidente da Republica de dar justiça rápida e barata ao povo.

Na frase do Governo: "é um instrumento de defesa dos fracos, a quem a luta judiciária, nos quadros do processo anterior, singularmente desfavorecia". O instituto da Assistência Judiciária tem nele garantias de eficiência e de acessibilidade.

É o desembargador Antonio Bona, do Tribunal de Apelação do Maranhão, quem atesta: —

"Uma das preocupações dominantes nos governos da Revolução de 1930 tem sido, incontestavelmente, a solução do problema da justiça".

Passa a resumir as vantagens do procedimento oral, preconizadas por Chiovenda, na Itália, e, entre outros, Francisco Morato, no Brasil: — a concentração da causa, a oralidade, identidade física do juiz, a irrecorribilidade das interlocutórias, o juiz ativo.

Para fazer uma idéia da situação que o Código de Processo Civil veio resolver, basta lembrar que o nosso direito formal tinha, quase, cem anos de sobrevivência às transformações dos demais ramos do direito e que tivemos, no Brasil, de 1822 a 1939, como o apresenta Candido de Oliveira Filho, 1.022 leis, além das mais recentes.

Diz Pedro Batista Martins que "esse direito se fragmenta no país, desde 1891, em vários códigos, onde as fantasias doutrinárias e os preconceitos regionalistas ostentam freqüentemente a sua audácia triunfante". (Rev. For. Em Def. do Anteprojeto de Cód. de Proc. Civil, vol. 78, pag. 416).

Ainda em 1923, a Consolidação das Leis da Justiça Federal, de 1898, Consolidação elaborada por José Hygino, contendo muitos artigos reputados inconstitucionais e seções inteiras revogadas, modificada profundamente pelo Código Civil, leis de falência e cambial e inúmeras decisões, era considerada uma verdadeira manta de retalhos, expressão adotada de Tavares Bastos (Oliveira Filho, Nova Consolidação das Leis da Justiça Federal, Introdução).

Em outubro de 1912 Armando Vidal Leite Ribeiro organizava uma Consolidação das Disposições Referentes ao Processo Civil e Comercial da Justiça Local do Distrito Federal, visto como (dizia):

"Dispersas as disposições sobre o processo civil e comercial, já pelos múltiplos volumes da legislação brasileira, já pelos livros dos praxistas, torna-se difícil aos que lidam no fórum civil deste Distrito sua rápida consulta" (Cons. das Disp. Ref. ao Pr. Ci. e Com. da Just. Loc. do Distrito Federal, 1913. pag. VIII).

O Prof. Roberto Lyra, de Dir. Penal na Universidade do Brasil, afirma que "o futuro Código encerra uma justa demonstração de confiança na aptidão técnica, na honradez e na operosidade da magistratura brasileira" (Rev. For., 78, pag. 231).

Pedro Batista Martins, defendendo o anteprojeto, declara ser a parte mais importante da reforma processual a restauração do principio da autoridade no processo, ou seja, o autoritarismo judiciário, o poder discricionário do juiz, decorrente da "incessante mobilidade da vida social" (Rev. For., 78, pags. 418/19).

Dava o sentido da reforma como sendo o de «resolver o problema da adaptação do processo às necessidades do comércio jurídico. (Idem pág. 413).

As tradições "que a experiência recomendava como necessárias ou úteis, si não foram conservadas em toda a sua pureza originária, foram, pelo menos, atualizadas, depois de verificada a possibilidade de readaptação» (Idem, pág. 416).

Pedro Batista Martins explica por esta tendência a venda judicial por iniciativa particular; o arrendamento ou administração dos bens do devedor ou interessado incapaz; o constrangimento à prestação de pensão alimentícia à família abandonada, contra o chefe, autor do abandono, ou a prisão desse, quando impossível a prestação; a proteção, pela impenhorabilidade, ao prédio rural, em determinadas condições.

Magnífico estudou que em 31 de março deste ano  fez o Dr. Ernani Cartaxo, Juiz de Direito de Curitiba, sobre O sentido Unitarista da Evolução do Sistema Jurídico Brasileiro.

O ponto de partida é a legislação do Império, com a unidade do direito, a unidade do processo, a unidade da justiça, "sob a égide de uma formula política unitária e centralizadora". Toda a ordem judiciária repousava no plano nacional.

Estuda o ilustrado jurista a resolução ministerial de 20 de novembro de 1889, na qual o Ministro da Justiça do Governo Provisório da 1ª Republica, atendendo ao Decreto n.° 1, de 15 de novembro, que decretara como forma de Governo a República federativa e reconhecera assim aos Estados a competência para decretar as leis respectivas, inclusive as que regulam as relações civis dos cidadãos, resolvia dissolver a comissão nomeada por portaria de 1º de junho daquele mesmo ano, do referido Ministério, para confecção de um projeto do Cod. Civil, Brasileiro.

Assim se mostrava o propósito de quebrar a tradição unitária do sistema legal e jurídico da nação.

Passa, então, o dr. Ernani Cartaxo a descrever o ciclo evolutivo do direito, de volta para a unidade tradicional.

Primeiro foi a Constituição de 1891, conferindo ao Congresso Federal a atribuição de legislar sobre o direito civil, comercial e criminal, com o que assegurava o regresso à unidade da legislação substantiva.

Depois foi a elaboração parcial de institutos, como o de falências, o cambial e outros, que foram, aos poucos, a pretexto de serem documentos legislativos mistos, invadindo a área da competência legisferante estadual e regulando aspectos sobre o processo.

Após, num impetuoso assomo da torrente unitarista, a Constituição de 1934 consagra a competência privativa da União para legislar sobre o direito processual (ao que podemos acrescentar — sobre o direito aéreo, registros públicos e juntas comerciais) e uniformizar o Poder Judiciário nos Estados.

Enfim, a Constituição vigente reafirma e revigora esse privilégio (acrescentando a esta distribuição, poderíamos dizer, a competência unional para legislar sobre o direito operário) e extingue o dualismo da justiça, suprimindo os juizados federais.

Incidentemente, se estende o eminente juiz paranaense sobre o projeto do Código de Processo Civil, agora já decretado e publicado, o qual, nas expressões daquela autoridade, "atualiza, flagrantemente, o problema da unificação do judiciário, como solução para o seu aperfeiçoamento".

E assim fica demonstrada abundantemente a tese, que é, em outros termos, a seguinte:

"A velha fórmula político-jurídica da unidade de direito, unidade de processo e unidade de justiça, trítico multicor, em que se espelhava o panorama da unidade nacional, reinvidica a sua atualidade, e demonstra que a sua parcial e sucessiva readmissão, após o repúdio total dos primeiros dias republicanos, cristaliza as tendências dominantes do pensamento brasileiro" (Gazeta do Povo, Curitiba,  2 - 4 - 939).

 

Outro aspecto da obra realizada

Outra conquista da evolução em matéria jurídica é a conceituação mais profunda do poder de polícia, com fundamento na ordem econômica e social.

Não é tão fácil definir os limites do direito das autoridades policiais de prevenir a prática delituosa, quando a mesma consistir em, a pretexto do exercício de atividades líticas, dinamizar estas contra a lei.

A Corte de Apelação do Distrito Federal, em recente Acórdão, honroso para seu ilustrado autor, que é o Juiz Dr. José Duarte, e para a autoridade cujos atos, concretamente, se examinavam no caso em apreço, e que é o 2º Delegado Auxiliar da Polícia do Distrito Federal, Dr. Dulcídio Gonçalves, resumiu a verdadeira doutrina, que concilia a fatalidade social da expansão ou ampliação do poder de polícia com a preservação dos direitos individuais subordinados, ainda por sua vez, aos interesses superiores e prevalecentes da coletividade.

A respeito, a Corte de Apelação do Distrito Federal, em brilhante Acórdão da lavra do eminente Desembargador José Duarte, confirmando sábia decisão do ilustrado Juiz da 5ª. Vara Cível local, Dr. Duque Estrada, consoante jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e outros juízes, fixou os seguintes conceitos:

A ação da polícia preventiva e repressiva acompanha as necessidades sociais, e se liga a própria força política do Estado. Orienta-se pelos novos motivos de alarma, de perigo ou de abalos. Então os seus órgãos, permanentemente, vigilantes para acudir a tempo, e eficazmente, à defesa da sociedade e contra os que se organizam para o crime, ou para o mal. As suas atribuições se acham na razão direta da exigência social ou do princípio de “necessidade’. Muita vez a sua ação é ditada pelas circunstâncias do momento, pela intensidade do alarma, pela gravidade da situação, em que se não vai calcular, matematicamente, a dose de arbítrio. Não seria possível prever todos os recursos dos malfeitores e traçar normas rígidas que lhe entorpeciam os movimentos, na ação preventiva ou repressiva. Na luta contínua contra a criminalidade mascarada, mais do que na ofensiva, a polícia há mister senão de arbítrio, pelo menos de poder discricionário, como conceitua Michaud. Não será enfraquecendo essa ação que teremos assegurada a paz social, o interesse público, o próprio triunfo do direito. É um vício lógico invocar as exceções, ou sejam as demasias, ou abusos, que, no tempo e no espaço, se ajuntam à ação da polícia e já forneceram material para vasta literatura.

Mas esses mesmos abusos, que encontram punição nos processos de responsabilidade, cotejados com os benefícios, asseguram a esses órgãos da administração pública um apreciável saldo de inestimáveis serviços.

“La sureté genèrale de l’ Etat a besoin d’ une viligance, d’um esprit de suíte, d’une unité de vue, de moyens, d’action, d’une ensemble de mesures”, pelos quais as autoridades policiais podem oferecer ao mesmo Estado uma garantia de ordem e estabilidade.

Aurelino Leal, quando exercia as funções de chefe de Policia do Distrito Federal, houvera oportunidade de conceituar a ação da policia e traçar as linhas gerais de seu poder. No sentir desse saudoso jurista, poder de policia é a manifestação do público tendente a fazer cumprir o dever geral do individuo. Dever geral do indivíduo para Otto Mayer é aquele que o individuo tem para com a sociedade e a administração, que defende os interesses daquela; um dever que, de antemão, consideramos como preexistente e inato: é o dever de perturbar a boa ordem da coisa pública, de evitar cuidadosamente a impedir as perturbações que poderiam provir da sua existência; Não é um simples dever moral, senão ainda, de ordem jurídica.

O caráter jurídico especial do que hoje chamamos policia o que distingue suas instituições de todas as outras do direito administrativo, é, justamente a existência de um dever geral, dever preexistente que a policia tem de cumprir e tornar efetivo. Há autores como Bluntschil, que não lhe dão poderes discricionários – “um certo arbítrio ou a livre escolha dos meios são inseparáveis dela”. Uma legislação que quisesse regular a priori, todos esses atos, resultaria impraticável e desastrosa. Sem dúvida esse arbítrio não é absoluto, ele se move no quadro das leis e a policia não deve nunca sem uma necessidade de lesar ou violar o direito adquirido. ( Le Droit Public, pág.188).

Ainda mesmo o regime do direito, no quadro histórico, sucedendo o regime de policia, como ensina Otto Mayer, no poder de Policia, mais amplo, cabe aquele poder discricionário.

A policia não se nega esteja submetida às condições do Estado constitucional e dos princípios do regime de direito (Duquit, Stein, Otto Mayer, Aurelino Leal), mas não repugna a esse regime o procedimento que se harmoniza com o sistema de garantias legais e se inspira no princípio de “necessidade”, visto como, então, visará à ordem social e ao interesse público, que o próprio direito procura amparar, defender, preservar. Há excessos que são inferiores aos perigos que se sofreria a ordem pública se eles não fossem utilizados. Ai está o uso do poder discricionário, e não do poder arbitrário.

Os abusos, como se acentuara, sempre existiram, assim, como, em todos os Estados policiados, sempre foram punidos. Isto desde as republicas gregas e das leis romanas, de que é exemplo a reguladora do crimen repetundarum. No caso em apreço, o recorrente não pode invocar o uso constitucional de um direito senão incidir, flagrantemente, no abuso constitucional de um direito e a necessidade pública ditará o procedimento, discricionariamente, atenderá ao interesse público, para coibir a ação do malfeitor, obstar o exercício de atos líticos na aparência, mas não eram do que um artifício, um estratagema, um disfarce para a prática de contraversão. Não há direto contra a moral e a ordem pública. Incide sob a vigilância da polícia a pessoa suspeitada de maus antecedentes ou vida pregressa pouco recomendável, o profissional do vício ou do crime, o elemento perigoso, socialmente. Também, deve cair, na esfera dessa vigilância, o local ou a coisa material, a profissão que podem proporcionar facilidade à prática do crime ou contravenção. Ficaria a sociedade em desamparo se reconhecêssemos a toda a hora o non possumus policial. O bom senso, que é o senso do direito, aconselha essa expansão do poder de policia, que acompanha nas suas flutuações a maré montante da criminalidade, seja a criminalité desamasquée ou a embuçada, afim de melhor exercer a sua função de defesa, de proteção. É evidente que contra os malfeitores habituais, os profissionais do crime – por isso mesmo que já são conhecidos, essa ação será mais enérgica e intensiva.”

Devo encerrar esse tópico com uma frase do Ribas Carneiro, que resume e define:

“Há um discernimento policial, como há um discernimento de julgar, produto de raciocínio temperado pela cultura jurídica e alimentado pela compreensão do verdadeiro interesse coletivo, atendendo escrupulosamente à necessidade de fornecer no espírito público a confiança nas autoridades da Polícia.

Assim é que se entende a mentalidade policial.” (Artigo de Mario Gouvêia, Mentalidade judicante, policial e militar, em ‘Gazeta de Notícias’, do Rio, de 19 de fevereiro de 1939).

 

Fonte: Revista do Instituto Histórico e Geográfico do ES, Nº 12 – ano 1939
Autor: Augusto Lins
Compilação: Walter de Aguiar Filho, novembro/2014

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