Conversa Barrense – Por Bernadette Lyra
Tem quem diga que esta conversa já virou lengalenga.
Lengalenga (está no dicionário e é muito corrente) quer dizer prosa enfadonha, monótona. Mas também ladainha, lenda, arenga. Ou conversa de fio inteiro ou de meio caminho como se diz em Conceição da Barra. Aliás, a Barra, para os íntimos. Ou Barra somente. Que nenhuma criatura da região que se preze diz o nome todinho.
Pois bem, peço desculpas, mas esse é meu trabalho. É o trabalho de todo escritor. Meu trabalho é lengalengar. Gosto muito de lengalengar com os leitores. Digo mais, muito metida a besta: na vida, fora me considerar substância de que os sonhos são feitos (como quer Shakespeare e é coisa que incomoda uns tantos) e preparar uma moqueca coberta com folha de bananeira, lengalengar com os leitores é o que faço melhor.
Em carta a seu irmão Theo, Van Gogh dizia que "arte é o homem acrescentando à natureza". Acredito. Van Gogh era um sujeito genial que, além de tremendo poder de expressar o esplendor de uma cosmogonia inteira em pétalas simplórias de girassóis e ser exímio cirurgião de orelhas, conseguiu enlouquecer David Lynch. Mas deixemos de veludices azuis. Entremos no sumo de coisas tangíveis.
Essa minha vontade de falar sobre o norte do Espírito Santo, sobre minha região de nascença, acredito que vem da vontade de me desinventar como gente e me acrescentar a outros reinos. Para isso, recorro às raízes. Viro areia de praia e canoa e mangue e remoinho de rio e balsedo e caranguejo e peixe e estrela do mar e água-viva e outras coisas que ficam batendo no ritmo do coração cada vez que vou fundo no mim.
Faz um mês, peguei a estrada e voltei. O desapontamento de só ver eucalipto onde antigamente a mata Atlântica enchia de perobeiras rosa muito copadas e bonitas nem vale a pena falar. Melhor já falaram sobre isso Rogério Medeiros e Hermógenes, cada qual a seu jeito. O descompasso de entrar na igreja e não ver mais a pomba do Santo Espírito grudada no teto entre nuvens e nem mais Nossa Senhora das Dores vestida de roxo em seu nicho dourado não foi quase nada, pois tem muito tempo que em matéria de religiosidade, tudo aquilo se modificou. O horror de olhar a Bugia carcomida, nem mais falo, que diante de tanto destroçamento já falei. Muito. Às vezes até besteira.
Dor maior foi mesmo sentir o desânimo e a descrença que parece alastrar por cima de tudo, com lixo pelos quatro cantos da cidade, a pracinha desconsolada, as caras sem viço e, sobretudo, as construções horrorosas que mais parecem caixotes, uns em cima dos outros, trepando pelas ruas estreitas, ocupando cada centímetro de quintal, barrando o vento, abafando os pés de araçás e as mangueiras e os cajueiros e as pitangueiras e os coqueiros e os passarinhos, que, coitados, vão cedendo lugar à cupidez dos homens.
Não podiam, pelo menos, ter tido o bom senso e o amor de Zé Carlos Castro Sampaio, uma criatura cheia de dedos e cuidados com aquele sobrado que e foi dos avós dele, que respeitou o sobrado e recuperou o sobrado igualzinho, com o corrimão da escada antiga de madeira das boas e cortinas de crochê à moda barrense e fez o sobrado a mais bela e mais comovente pousada de toda a cidade?
Numa hora dessas, nem me restam o consolo da ironia ou o luxo do desprezo, como diz meu querido Vladimir Nabokov. Só a desolação.
Fonte: Você – Revista da Secretaria de Produção e Difusão Cultural/UFES – ano V – nº 42 – set/1996
Autor: Bernadette Lyra
Compilação: Walter de Aguiar Filho, julho/2015
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