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Diretas já! – Por Dionary Sarmento Régis

Em 21 de janeiro de 1984, Tancredo Neves e Ulysses Guimarães estiveram em Vitória para o comício das Diretas Já, na Praia de Camburi, para 10 mil pessoas engajadas

Abril, 1980. Três dias foi tempo suficiente para conhecer e me apaixonar pelo sinuoso perfil de Vitória. No Hotel São José, provei a torta capixaba. Golpe mortal da sedução imediata.

A família veio de mala e cuia. Os filhos adolescentes, retirantes nordestinos há quatro anos em São Paulo, se extasiaram com o sol e o mar aqui reencontrados. O vento sul lembrava os dias de Sampa, e dava tudo certo.

Difícil para mim foi entender o jeito capixaba. Simpáticos, mas nem tanto. A desconfiança disfarçada na fuga do olho no olho parecia coisa de índio... Tendo vindo para ficar, não sosseguei enquanto não obtive explicação para o cacoete verbal do "Oi?" Não entendia por que quando interpelados sobre qualquer coisa — até para a trivial pergunta sobre as horas — respondiam com a pergunta: "Oi?" Gastei um bom raciocínio para concluir que não havia significado algum no tal "Oi". Era um recurso para se ganhar tempo e pensar na resposta. Ou, com mais sorte, cansar o interlocutor e não ter de responder.

As filhas adolescentes se enturmaram, e se adaptaram tão rápido que cedo estavam casadas e me deram netos. E logo me vi, em casa, cercada de gente que, a qualquer pergunta, respondia: "Oi?" Minha família se tornara capixaba sem que eu notasse.

Os primeiros anos em Vitória foram de muito trabalho. Meu marido e eu, vida inteira empregados, éramos empregadores. Com pouco capital e ainda menor talento para obter lucro naquela louca ciranda financeira. Definitivamente não era aquela a nossa praia. Mas tínhamos de tocar a vida, os planos. Que não eram só de garantir o sustento da família, mas, também, continuar nossa lida de comunistas: reorganizar o PCB no Espírito Santo.

Tarefa complicada. Não se tratava apenas de obter inserção na sociedade. Antes precisávamos vencer a desconfiança e a hostilidade dos jovens e rebeldes companheiros locais, que nos rotularam de interventores. O PCB, que em nível nacional lutava pela legalidade, só teria como obtê-la com um mínimo de organização. Mas os comunistas da ala jovem, de Gramsci em punho, rejeitavam as regras, as normas de um partido que se mantivera vivo graças à estrutura marxista-leninista em que se pautava. A luta interna era grande. A ala jovem tinha seu foco de atividade principal na Universidade e em Vila Velha. Era um partido de estudantes, embora muitos de seus adeptos já estivessem longe dos bancos escolares há bastante tempo. Na nossa visão, não era um partido. Era um movimento. Do outro lado, dando-nos total apoio, estava a velha guarda: Clementino, Agostinho, Almir, Mazinho, Wilson, e o mais querido comunista capixaba — que me perdoem os outros —, Meireles. Era a turma remanescente da Folha Capixaba. Com o apoio dessa gente, arregaçamos as mangas e pouco a pouco fomos achando nosso território. Até porque Álvaro José, Lacy Ribeiro, Hélio Rossetti, Jorge e Gilson da Vale, Darcione e Penha e diversos outros comunistas vitalizaram nosso trabalho. Tanto que os oitenta anos de Meirelinho foram festejados publicamente, com muito sucesso e até com publicação de cordel da autoria do saudoso Hermógenes da Fonseca, em que contou em versos as aventuras de "Parafuso", como era conhecido Meireles em seus tempos de glória futebolística, no Rio Branco. Coordenei a festa com o apoio de comunistas jovens e velhos, não-comunistas e um grande número de artistas, amigos e simpatizantes do Pecebão.

Estávamos há três anos em Vitória quando a  onda Pró-Diretas começou a crescer. Logo percebemos que aquela seria uma importante frente de luta democrática e de mobilização popular. Como realmente foi. Em 27 de fevereiro de 1984, o Comitê Supra-Partidário Pró-Diretas já era vibrante realidade. Politicamente falando, foi ali que me senti "em casa" pela primeira vez em Vitória. Guardo com carinho, boa parte de sua memória: atas de reunião. Algumas com toques de puro humor, por exemplo: "Uma festa de casamento impediu a realização da reunião do Diretório do PMDB em Mucurici, mas durante o forró houve interrupção para discursos 'pró-diretas'." Relatos assim tão singelos nos eram informados pelos emissários da campanha, que percorriam todo o estado em busca de adesões, com sucesso sempre crescente.

Alguns detalhes extra-atas, mas também muito divertidos, ficam por conta da competição de pão-durismo entre o governador José Moraes e o presidente do PMDB, Carlos Alberto Cunha. O governador nos fez gastar longas horas de estudo e discussão de táticas para obter dele o financiamento das camisetas da campanha. Toda a criatividade do PT, PC do B, PCB, PDT e do próprio PMDB não foi suficiente para fazê-lo "abrir a mão". Nos jornais, Tinoco e Clóvis Geraldo colocavam notinhas anunciando a doação, como forma de obrigá-lo moralmente a nos doar as camisetas. Todo o esforço dos dois foi em vão: daquela mata não saiu coelho. César Herkenhoff, na Comunicação, deve ter recebido um tranco do Zé Moraes. Querer doar as camisetas ele quis, segundo soubemos. Mas não doou. Zé Moraes era páreo duro até pra Carlos Alberto Cunha, que nas reuniões chorava tanta miséria a ponto de quase me convencer a passar pra ele o dinheirinho que juntava da venda dos broches do PCB... Só nos restava contar com o tal "Livro de Ouro" com o qual em boa hora Salvador Bonomo resolveu colher doações.

A votação da Emenda Dante de Oliveira mexeu com o Espírito Santo. Não há dúvida. E com a cabeça das pessoas.

Enquanto a CUT/ES, na época dirigida por Standard Silva, pregava a greve geral, em adesão à CUT nacional, numa postura agressiva e guerreira bem típica de sua militância, ao mesmo tempo dividia a mesa do Comitê Pró-Diretas com um legítimo representante da "burguesia" — o deputado João Miguel Feu Rosa, então do PDS. A adesão do deputado, que se vestia com impecáveis ternos e usava linguagem tão diferente no contexto da maioria do Comitê, foi um susto inicial muito grande. A nossa expressão, geral e silenciosa — mas clara nos olhos de todos — era uma só: "O que é que esse cara tá fazendo aqui?" João Miguel começou dando apoio verbal na Assembléia, depois começou a frequentar as reuniões no Sindicato dos Bancários, e por fim salvou a pátria completando a grana para pagar o painel da Praça Oito. Desconfio que na Campanha das Diretas João Miguel recebeu uma semente de dúvida ideológica, que ficou adormecida e brotou em Londres, quando estudou as origens da fome e aderiu ao socialismo, infelizmente pouco antes da queda do muro de Berlim. Nem mesmo os adversários de João Miguel podem chamá-lo de oportunista...

Em meio a esta saudável salada ideológica, vivemos belos momentos de trabalho pela democracia. Ouvíamos as cômicas irradiações do "Jogo das Diretas" no vozeirão de Joaquim Leite de Almeida, que disputava na goela, com Ivan Ramalho, a honra de ser o "locutor oficial" da Campanha. A briga era cômica mas justa: afinal, Osmar Santos capixaba, quem não queria ser? Não me escapavam os detalhes, por exemplo as incansáveis conspirações de Carlito Osório; a vozinha mansa de Glecy Coutinho, comandando a galera via DEC para os agitos no interior; a desconfiança de Perly, mal disfarçada pelo coçar da barba de guerrilheiro; Namy Chequer com sua retórica albanesa, sempre acompanhado da loura, que além de bonita era parenta da mulher do Gerson — status garantido pro nosso meio; Chico Ramaldes, que ainda não era empresário, usava sandálias gastas e barbicha mal cuidada, com pinta de sem-terra, porém importante porta-voz de Paulo Hartung; Bragatto, nos bastidores, "costurando" com Luiz Aparecido; Idivarcy, que não perdia oportunidade de continuar a arenga com Renato Soares (hábito do exílio); Dr. Gilson Carone, homem sério e educado; a pálida Wanda Gasparini, de olhos claros e tristes, meigo sorriso, sempre vendendo o jornal do PC do B; o Juca Alves, mais charmoso do que hoje, de barba espessa, era um petista de bom senso, educado; Argilano Dario, cabeça chata mais hábil nunca vi... Onde anda Dona Crizeuda? Irine Lopes, representante do Sindicato dos Engenheiros, além de bem articulada, era tão boa de panfletagem! E Liezer, moreno, alto, silencioso, formiga pra toda obra mobilizando as comunidades de bairro; Dr. Renato Morelato, do Sindicato dos Médicos, hoje cuida de velhinhos (e muito bem, meu pai que o diga). Era tímido, quase só escutava. E como podia falar, se vinha com Nilton Baiano, também dos médicos? Nilton, como bom baiano, nada tinha de tímido. E o Dino Gracio? Metido a empresário de publicidade, acho que quebrou o negócio de tanto trabalhar de graça. O pagamento era o entusiasmo de ver os panfletos na rua, de mão em mão, as faixas, os cartazes... Pôxa, Dino, obrigada! O Amorim um dia vai reunir todo mundo e lhe fazer uma homenagem especial. Para que pagamento?

Tínhamos alguns loucos no Comitê. Desde um, cujo nome graças a Deus esqueci, que propôs uma pichação no alto do Penedo, até o Ivan Ramalho, que um dia se afastou abruptamente do Comitê denunciando seu "aparelhamento por oportunistas", sem dar nome aos bois. A existência de malucos tão saudáveis não nos preocupava: afinal, conosco tínhamos o Ítalo e a Margareth, da Associação dos Psicólogos, perfeitos para lidar com eles. Para concretizar a adesão dos evangélicos, Nelson Aguiar dizia presente; Sebastião Messias se encarregava de agitar o funcionalismo — o homem tava em tudo que era repartição do estado. Castro Alves, dos bancários (onde andas, rapaz?) era apoio garantido; Fernando Herkenhoff tinha várias tarefas: agitar os professores na Ufes e negociar apoio do PDS; muitos jornalistas trabalhavam nos bastidores, mas Joelson se destacou representando o Sindicato; Benjamin Campos e Osvaldo Mármore, bastiões do PDT, eram sempre firmes; Fernando Rezende (que, sem ser parente, era apaixonado pelo outro Rezende, o Iris) emprestava a sala da diretoria para reuniões mais confortáveis. Por todas as figuras aqui mencionadas guardo até hoje o maior respeito e carinho.

Voltando ao tema "oportunistas", que tanto inquietou alguns na época, temos a dizer que os oportunistas existiam mesmo. Mas a pergunta era: e daí? Tudo que representasse apoio popular nos interessava. A gente sabia quem lutava por convicção, democratas como Zé Ignácio, Max, Vasco Alves e tantos mais. Outros eram a favor das diretas sem saber bem por quê. E uns tantos outros simplesmente temiam ter seu nome exposto no painel da Praça Oito, como voto contra a Emenda Dante de Oliveira. A verdade é que foi dessa forma que a Campanha das Diretas conseguiu se transformar nesse fenomenal movimento nacional em que se transformou.

A onda das diretas arrebentou gigantesca em todo o Espírito Santo. Quase a unanimidade da chamada representação da sociedade civil, a OAB, a Igreja, o Movimento Negro, o Movimento das Mulheres, sindicatos e associações em geral. Os apoios não paravam de chegar ao Comitê.

O comício das Diretas, em Camburi, não foi o maior nem o mais importante no Espírito Santo. No de Vila Velha tinha muito mais gente, e o da Praça Oito foi a apoteose da Campanha. Mas, particularmente para mim, Camburi teve um sentido excepcional. Representante da Comissão Estadual Pró-Legalidade do PCB, eu fazia parte do Comitê Supra-Partidário, no setor de divulgação. Como de praxe, a esquerda trabalhou pra burro, montou o palanque e desta vez eu fazia questão de nele subir. Era minha oportunidade de dar o recado em favor da legalidade do Partidão, e não podia perder, de jeito nenhum. Quase perdi. O presidente do PMDB/ES teve uma crise de identidade e deixou prevalecer seu princípio conservador, anti-comunista. Concluiu que comunista não podia subir no palanque. Subi sem permissão. Mas subir e ficar calada podia. Pegar o microfone não. Que mancada a do doutor Carlos Alberto Cunha!... A turma lá de baixo sabia o que queria, e quando a proibição ficou clara, a reação foi um tremular de bandeira vermelha pra todo lado, gritos e protestos. De repente, uma comunista que podia ter passado despercebida virou alvo de atenção e expectativa, esquentando o clima na fria tarde de Camburi. Max, muito esperto, sentiu o clima, pegou o microfone e defendeu o meu direito de falar. Foi seguido de muitos outros, entusiasmados com os aplausos da galera.

Muito pálida — segundo me contaram — e vestindo longa túnica branca com logotipo das Diretas Já, falei com emoção, me apresentei como comunista, pedi eleições diretas e legalidade para o PCB.

Jamais esquecerei o olhar de apoio de tantas pessoas, a surpresa de tantas outras, as lágrimas de algumas, como da companheira Regina Soares, na primeira fila. E o orgulho incontido dos meus filhos. Que certamente tiveram, naquele momento, assunto para mais uma estória para contar aos meus sete netos capixabas, sobre uma mãe esquisita e teimosa, que nunca os deixou assistir aos desfiles de 7 de Setembro, e lhes ensinava, em 1973, aquela música do Vandré "Caminhando e cantando e seguindo a canção..." bem antes de ser gravada por Simone e de se transformar no hino de protesto das multidões.

 

Escritos de Vitória – Uma publicação da Secretaria de Cultura e Turismo da Prefeitura Municipal de Vitória-ES.
Prefeito Municipal: Paulo Hartung
Secretária Municipal de Cultura e Turismo: Silvia Helena Selvátici
Sub-secretário Municipal de Cultura e Turismo: Rômulo Musiello Filho
Diretor do Departamento de Cultura: Rogério Borges de Oliveira
Diretoria do Departamento de Turismo: Rosemary Bebber Grigatto
Chefe da Biblioteca Adelpho Poli Monjardim: Lígia Maria Mello Nagato
Bibliotecárias: Elizete Terezinha Caser Rocha
Lourdes Badke Ferreira
Conselho Editorial: Álvaro José Silva, José Valporto Tatagiba, Maria Helena Hees Alves, Renato Pacheco
Revisão: Reinaldo Santos Neves, Miguel Marvilla
Capa: Vitória Propaganda
Editoração Eletrônica: Edson Maltez Heringer
Impressão: Gráfica e Encadernadora Sodré
Fonte: Escritos de Vitória, nº 16 Movimentos Sociais, Secretaria Municipal de Cultura e Turismo – PMV
Texto: Dionary Sarmento Régis
Compilação: Walter de Aguiar Filho, agosto/2018

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