Elias Hauer - Por Sérgio Figueira Sarkis
Após o falecimento de papai, nos idos de 1949, mamãe foi procurada por um senhor de origem libanesa, dono de uma pensão na Rua Duque de Caxias, no Centro da cidade. Esclareceu ter como hóspede uma pessoa, também de origem libanesa, chamado Elias Hauer. E a hospedagem dele era patrocinada por papai. Todos os meses ele pagava a conta em questão.
Entretanto, com o falecimento dele, gostaria de saber se mamãe iria continuar cobrindo aquela despesa. Esclareceu tratar-se de alguém totalmente sem recursos. E, pior ainda, deficiente visual, o que o impedia de trabalhar para se sustentar.
Acrescentou ter informações, dadas por patrícios, do senhor Elias ser um parente do meu avô, Antônio Miguel. Ao chegar do Líbano, trabalhou com ele por algum tempo mas, diante dos temperamentos dos dois, os desentendimentos eram constantes. Ele afastou-se da loja e tentou outra ocupação.
Porém, sobreveio a doença. Papai, penalizado com a situação, colocou-o na pensão às suas expensas, quando passou a ter um local onde dormir e comer. Mamãe, surpreendida com o fato, pois papai nunca havia comentado com ela a respeito, resolveu continuar amparando o Seu Elias, autorizando sua manutenção às custas dela.
Alguns meses depois, o senhor da pensão voltou a procurar mamãe com a informação de que iria fechar a pensão dentro de aproximadamente um mês. E gostaria de saber o que fazer com Seu Elias, pois outros parentes próximos dele não o queriam abrigar. Imediatamente, mamãe determinou a vinda de Seu Elias para nossa casa, preparando acomodações para o mesmo.
A vinda do Seu Elias para nosso convívio tornou-se uma sequência de momentos inesquecíveis. Seu amor e dedicação por todos nós foi adornada de muita emoção e alegria. Imediatamente ao chegar, mamãe o levou ao doutor Rebouças, oftalmologista de renome em Vitória.
Este, após os exames de praxe, submeteu-o a uma cirurgia ocular, na qual utilizou uma técnica revolucionária de enxerto de placenta na vista. Isto paralisou a doença, permitindo que visse vultos, podendo andar com cuidado no meio das pessoas, inclusive na rua.
Eu e meu irmão Miguel nos deliciávamos ouvindo as histórias dele no Líbano, suas brigas com vovô, os casos dos patrícios em Vitória e, principalmente, sua adoração por papai e agora por mamãe. Apostador inveterado do Jogo do Bicho, usando para isto parte da mesada que recebia de nossa família. Com o tempo, passou a ser conhecido na região próxima da nossa casa, na Rua 7 de Setembro.
À época, as pessoas abasteciam as residências através de vendinhas próximas aos locais de moradia. No nosso caso, a exemplo de todos os vizinhos, tínhamos o Armazém Gianordolli, dos irmãos Tilim e Pito. Os pedidos eram levados por Seu Elias. As entregas, feitas imediatamente pelo Zé, carregando os mantimentos em uma caixa equilibrada sobre a cabeça. Trazia também a respectiva caderneta, na qual todos os itens eram arrolados com o devido preço. O pagamento era mensal, já que, à época, não havia inflação.
Além desta atividade, Seu Elias cumpria outros mandados, inclusive compra de remédios em farmácias, sempre levando o nome do medicamente anotado num pedaço de papel. Miguel, para pregar uma peça em Seu Elias no Dia da Mentira, pediu ao mesmo para comprar um determinado remédio. Como ele não conseguia ler, anotou no papel "1° de abril".
Seu Elias saiu imediatamente para cumprir o encargo. Ao chegar à farmácia, entregou o papel ao atendente. Este, ao abrir, entendendo a brincadeira, respondeu estar em falta. Isto o obrigou a ir a uma outra e lá a situação se repetiu. E assim sucessivamente. Até que um atendente, penalizado, esclareceu a brincadeira para Seu Elias. Ele até pode ter ficado puto da vida. Mas voltou para casa sem demonstrar isto.
Em função de sua vida não ter tido um desfecho feliz, como as dos seus patrícios, Seu Elias vivia desenvolvendo histórias de casos de pessoas que ficavam ricas da noite para o dia, simplesmente por terem enfrentado espíritos moradores de casas ou igrejas abandonadas.
Segundo a regra vigente, era necessário a pessoa enfrentar o espírito durante uma noite e, caso não se acovardasse, aquela alma penada passaria o segredo do tesouro enterrado no local. Havia, à época, uma casa abandonada do outro lado da Baía de Vitória, chamada de Manteigueira, porque sua arquitetura dava a impressão de ser um destes apetrechos domésticos.
O imóvel pertencia à firma Hard & Rand, estando localizada ao lado da penitenciária, no bairro da Glória, no Município de Vila Velha. Corria a lenda haver o fantasma de um padre habitando aquele local. E que este, quando vivo, havia escondido ouro na casa. Quem conseguisse passar uma noite por lá teria a oportunidade de ficar rico.
Seu Elias preparou-se, levando pão, queijo, carne-seca, água e um cobertor. E lá fomos nós, eu, Jayme Figueira e Valdir, um empregado nosso. Saímos às 15 horas, pegamos a lancha e atravessamos até Paul. De lá, o bonde nos levou à Gloria. Saltamos e fomos a pé até à Manteigueira.
Ao chegarmos, ficamos impressionados com o que vimos. Além da belíssima paisagem, a casa estava toda esburacada, cheia de túneis escavados na sua estrutura, evidentemente por gente em busca do famoso tesouro. A esta altura, o Sol já estava se pondo e nós, com exceção do Seu Elias, mortos de medo pelo escurecer. Preparamos com rapidez a alocação do velhinho e demos no pé, combinando pegá-lo no dia seguinte, às 7 horas. Não consegui dormi naquela noite, imaginando Seu Elias, cego, sozinho, numa casa abandonada, totalmente desprotegido. Às 7 horas, voltamos para pegá-lo e o encontramos fagueiro e bem disposto.
— E aí — perguntamos.
— Não vi nada. Apenas muito vento batendo as janelas.
Então a ficha caiu: claro, não podia ver nada mesmo: era cego! Seu Elias morreu com idade avançada e foi enterrado na sepultura do meu avô. Devem estar brigando até hoje.
Fonte: No tempo do Hidrolitol – 2014
Autor: Sérgio Figueira Sarkis
Compilação: Walter de Aguiar Filho, março/2019
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