Festa das Canoas – Por Levy Rocha
De tão longe vem aqui,
"Em 24 de março
Vem fazê a sua festa
Em nossa Marataíse".
— Tirando o Divino Espírito Santo, é a festa da cachaça: — critica um católico.
Manhãzinha, a praia de Marataíses acorda com o estrugir de amiudados foguetes.
Próximo à pedreira onde descansam as canoas, se alinham muitas barracas, improvisadas com esteiras de taboas, bambu e folhas de palmeiras guriris. Os fregueses não tardarão a chegar. Há uma variedade completa de iguarias: calungas, peroás, pescadas, peixes da enseada ou do alto mar, fritos em postas; galinha assada, carnes de porco e gado, pastéis de palmito e até premiados com azeitonas; doces; montões de melancias e a indispensável cachaça.
Antigamente, o burburinho de gente chegava no trem de Cachoeiro. Hoje, são os ônibus, caminhões e automóveis que enchem a praia de visitantes. O padre da Vila de Itapemirim faz tocar o sino, aglomerando os fiéis na igrejinha, para a missa. As famílias dos pescadores, mais tímidas, se agrupam, do lado de fora, mas as velhas rezadeiras chegaram cedo para caberem lá dentro.
As canoas foram calafetadas e pintadas de fresco. Avivou-se o dístico da colônia Z-8 a que pertencem: estão mais nítidos os seus nomes de batismo: São João; Si Deus Quizer; Santa Maria; Gavião; Marataiz; Lambiqui; Planeta... Todas enfeitadas de bandeirolas de papel de seda multicor, presas da popa à proa e na extremidade do mastro onde suspendem uma bandeira nacional.
Terminada a missa, comprime-se o povo, reunido em torno de um grupo: os pescadores mais velhos, os mestres de barcos, que dão começo às cerimônias.
Um pau roliço mantém, acima das cabeças, uma pomba metálica, em tamanho natural, de asas abertas: o Divino Espírito Santo. Dos seus pés partem fitas de cores que, sopradas pela viração matinal, roçagam os rostos dos mais próximos, dando-lhes extasiante sensação de abençoados. O tambor, tocado em ritmo peculiar, lembra certo tantan aborígene. A viola, de cordas bambas, nem aos mais juntos se faz ouvir. Há, ainda, os cantores: o mestre, que puxa a reza num tom de voz mais firme, lamuriosa, e os que fazem o coro a esses versos:
"É chegado o Deus da glória
Sagrado Divino
Sardando todos que estão,
Muiés e homes, menino.
Percurando pelo mundo
Andando de mão em mão
O Divino Espírito Santo
Com seus nobre folião."
"Quem não gostar de meu Deus
O que havemo de fazê?
Este mundo não é nada
No outro nós vamo vê!
"Devemo trata do santo
Que no mundo véve esmolando
Andando de mão em mão
Em toda casa chegano."
"Anda correno seu mundo
Em trás de um passarinho
Em cima do seu bastão
Aonde foi fazê seu ninho".
Nas pausas, os devotos se chegam para beijar o Divino.
Mais destacados, grupos de indiferentes começam a "molhar a goela em água que passarinho não bebe", junto às barracas, enquanto proseiam.
A cerimônia prossegue, agora no auge, com o empurrar dos barcos para dentro d’água, formando um atrás do outro. O Divino Espírito Santo é encaminhado para o barco da frente. Embarcam os cantores e sai o cortejo, cantando, sem dificuldade do equilíbrio de pé, pois o mar está manso.
Para os que ficaram em terra, destaca-se, vibrante, o batecum do tambor. Dos assistentes, quem quis, embarcou gratuitamente.
Espoucam os foguetes, soltados dos barcos, toca o sino, e o tambor, mesmo ao distante, ainda se faz ouvir. Seguem além da enseada. Aproximam-se; fazem um círculo, contornando a pedra e procuram aproar na areia. Levam o Divino para o seco e o cortejo vai à igreja. Repetem a cantoria no interior do templo; voltam à praia e percorrem, um por um, todos os barcos, todas as barracas, levando o Divino e repetindo a mesma cantoria. Aí começa a saudação com a cachaça. A cerimônia prolonga-se pelo dia inteiro e a bebida faz declinar o respeito fervoroso. Os cantores, completamente bêbados, já nem se agüentam a montar nas suas éguas com crias, amarradas nas sombras das castanheiras.
Do meio dia para a tarde, é sempre o mesmo cenário das festas de roça: cedem os santos sua devoção ao Deus da Bebida...
Fonte: Crônicas de Cachoeiro, 1966
Autor: Levy Rocha
Compilação: Walter de Aguiar Filho, junho/2016
Podia até fazer uma referência à casa onde a cegonha lhe deixou o presente de um menino, no ano de 1916, mas a modéstia me aconselha...
Ver ArtigoO volume que as traças haviam começado a destruir, reunia 24 números, inclusive o precioso primeiro, editado em 4 de julho de 1866
Ver ArtigoO privilégio para a primeira via férrea projetada, no Espírito Santo, foi requerido em agosto de 1872
Ver ArtigoO povoamento das margens do rio Itapemirim, trecho navegável, sem embargo, para as canoas, até os Caxoeiros (como se dizia, antigamente), deve retroceder aos tempos de Vasco Coutinho
Ver ArtigoSabe-se que não existe, no rio Itapemirim, no local onde se situa a "Princesa do Sul", nenhuma cachoeira
Ver ArtigoComo me enchia de admiração o trabalho quotidiano de Hélio Ramos, ajuntando e espalhando letra por letra, imprimindo sozinho, duas vezes por semana, o "Correio do Sul"
Ver ArtigoCaiu-me às mãos o número doze do jornalzinho "O Itapemirim", do Colégio Pedro Palácios, dezembro de 1926
Ver ArtigoA segunda carta que guardo de Newton Braga, mais extensa, enchendo duas laudas, ele a datou de 30 de setembro de 56
Ver ArtigoO passamento de Ribeiro Couto, em Paris, três anos atrás, avivou-me a lembrança de outro poeta, da mesma escola penumbrista, o nosso Newton Braga
Ver ArtigoQuem viajasse pela Estrada de Ferro Itapemirim poderia observar um palacete "construído no feitio dos castelos medievais", que servira de residência ao Barão de Itapemirim
Ver ArtigoSe pudéssemos encontrar outros documentos da fazenda desse imigrante suíço, quantas luzes viriam aclarar a história do Caxoeiro
Ver Artigo