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Histórico dos Tamancos e Uma Guerra - Por Ester Abreu Vieira de Oliveira

Tamanco

Os tamancos, calçados caracterizados por apresentarem o solado de madeira, a gáspea, aberta ou fechada na frente, cobrindo o peito do pé, eventualmente, podem ter uma tira que circunda o calcanhar. São chamados também de socos, chancas. Jose Leite de Vasconcelos dá o feminino "socas", tamancas para os mais trabalhados com sola de madeira para uso feminino. Há os mais elaborados, com saltos anabela, coloridos, para uso feminino, principalmente, em lugares praianos. Há, até, os de sola de cortiça.

Kleber Galveas forneceu-me as seguintes corroborações: "Em Portugal, os portugueses endinheirados, que eram muito diferentes dos outros portugueses, até a revolução dos cravos, diziam que para o Brasil haviam mandado só portugueses de tamancos. Isto para mexer conosco em troca das nossas piadas sobre portugueses". Informou, também, que, no Brasil, a madeira que serve para a fabricação desse calçado é a da "tagibebuia", cuja flor tem um delicioso perfume. Esclareceu que, por ter um tronco retinho, essa planta foi muito usada para lenha de padaria, cercas de varinhas e para escora de lajes na construção. Seu nome do Estado do Rio de Janeiro até o Sul do Brasil se chama jucu. Supõe esse artista que o nome Barra do Jucu deriva da sua abundância no Sul de Vila Velha.

Os tamancos, tradicionais das aldeias minhotas, feitos, em geral, de pau de amieiro e uma tira de couro, são mais fabricados no inverno, não só porque, o seu solado de madeira é um isolante da umidade e da eletricidade, mas também por ser a melhor época para a utilização dessa madeira. Mas, hoje, sua função é mais decorativa com a chegada das havaianas.

Em tempos passados, o povo andava descalço e o tamanco se impôs como meio de proteção na realização de trabalhos agrícolas. Devido ao baixo preço, sempre podiam ser renovados. Além do mais, eram pouco duráveis. A madeira era muito leve e com a umidade, a tira de couro soltava-se, mesmo que se colocasse um preguinho para prender o couro.

Meu pai, por exemplo, gostava de calçar tamancos abertos e de couro para ir tomar banho, tratar dos animais no quintal ou cuidar da horta. Lembro-me do ruído top.., top.., top.. que produziam quando ele caminhava. Seu Manuel trabalhava, na padaria, calçado com tamancos. Os ruídos deles eram mais fortes do que os chap..chap.. chap... dos chinelos de sua mulher ou o suave lep..lep..lep... das atuais havaianas. Aproximam-se do ruído produzido pelos sapatos de salto alto, mas são mais fortes.

Em Parati, na dança xiba de origem flamenga, executada com tamancos especiais que pesam até 1kg em cada pé, aproveita-se o ruído produzido pelos tamancos dos dançarinos batidos no chão, que podem ser ouvidos a quilômetros de distância.

Nos Países Baixos (Holanda), em Portugal e no norte da Espanha, os tamancos são usados, também ou principalmente, em zonas rurais. Na Holanda, ainda hoje, são utilizados por camponeses, nas plantações, por serem térmicos.

A Holanda é o país que nos lembra a tulipa, os moinhos e os tradicionais tamancos (Klompen) que são, ainda hoje, usados por muita gente, seja por hábito ou por acreditarem que fazem bem a coluna e a postura. Como recordações do tempo em que eles dominavam, em Amsterdã, os turistas podem experimentar os gigantes Klompen. Mas são os tamancos em miniatura junto com os pratos decorativos de paredes os artigos mais procurados por eles.

As miniaturas de tamancos, chamados de "tamanquinhos da sorte", fazem parte de um antigo hábito das famílias holandesas que os colocavam como enfeite nos cômodos das casas para atrair a sorte e afastar o mau agouro. O hábito de pendurar o "tamanco da sorte" nas paredes vem sendo transmitido há gerações na Holanda e acabou conquistando também os turistas. Os tamancos holandeses são confeccionados em popolier (álamo), madeira macia e resistente.

Lembro-me de que, quando criança, havia, no meu quarto, uma foto de uma menina camponesa holandesa. Perto dela havia um moinho e ela estava calçada com um tamanco amarelo claro. Usava um avental azul e um chapeuzinho branco com as abas laterais viradas para cima. Nos braços tinha uma cesta de flores. Em um carnaval, minha mãe me fez uma fantasia como os trajes da menina do retrato. Andava na rua toda feliz. Achando-me linda e batendo bem forte os pés para ouvir o toc... toc do calçado.

No Oriente, precisamente na China, o calçado era feito praticamente só de madeira com pedacinhos de madeira nas extremidades, com o objetivo de tornar a pessoa mais alta, conforme a sua hierarquia na sociedade.

Os tamancos (gretá) fazem parte de uma lenda japonesa. Eles foram um presente do deus Zenchi aos homens.

Conta a lenda que a mãe de Chiba Ilhe pediu para ir à casa de um tio rico pedir-lhe dinheiro para comprar comida e remédio, o que Ihe foi negado. Ao voltar para casa, triste, foi, pelo caminho, plantando bananeiras, isto é, andando com os pés para cima. E o deus Zenchi Ihe apareceu e Ihe deu um guetá com poderes mágicos de, ao tropeçar, aparecerem moedas de ouro, por ser ele o melhor plantador de bananeiras. Mas não se poderia abusar desse dom de ganhar dinheiro, pois o uso exagerado tinha o efeito de reduzir de tamanho o beneficiado. Ele não acreditou nessas explicações. Pensou que fosse a raposa que lhe veio enganar. Ao chegar à casa, sem o dinheiro emprestado, conta a mãe a origem do calçado encantado. Ao explicar, tropeça e salta uma moeda de ouro. Alegra-se com o fato e pula de alegria, e mais moedas caem ao solo. Com o dinheiro pôde comprar comida e remédios. Guardou os tamancos numa prateleira.

Quando o seu tio soube da história dos tamancos que forneciam dinheiro para a família de Chiba, cobiçou o objeto. Foi à casa do menino e Ilhe exigiu o tamanco. O menino avisou que havia restrição no uso. Vários dias se passaram e, como não tinham notícias do tio, mãe e filho foram a sua casa, mas não o encontraram. Porém viram uma sala cheia de moedas de ouro e, no meio delas, um mosquitinho. Nunca se pode abusar das dádivas dos deuses...

Nas recordações de tamancos, ficou-me um par vermelhinho, de salto, preso por uma fivela (ou era amarrado por uma fita?). Ah! Não sei... Eles foram os meus primeiros calçados de salto alto. Ia com eles ao grupo escolar "Marcondes Souza" e a igreja. Tinha oito ou nove anos. E, para acrescentar, eu mesma fui comprá-lo na serraria do alemão, no princípio da cidade, perto da fazenda do tio Janjão. Eles me davam a sensação de liberdade de escolha, pois pude abandonar os feios sapatos colegiais, fechados como os dos homens, pretos e com chapinhas nos saltos e nas pontas, ou seja, nas duas extremidades mais gastadeiras... Essa liberdade me proporcionou um vizinho alemão.

O alemão morava na minha rua, na casa que tinha sido de minha tia. Ele não sabia falar bem o português. Era baixo e gordo. A sua cara era vermelha, a barriga arredondada e usava óculos e suspensórios pretos. Ele me falou com dificuldade sobre os tamancos e me mostrou um. Quando fui comprar o meu, fiquei encantada com a sua serraria. Nunca havia visto tantos tamancos. Cada um mais bonito que o outro. Toda tarde ele passava e nos saudava. Era para mim um tipo diferente dos que eu conhecia. Ouvia meu pai e meu avô falarem de que era trabalhador e das dificuldades que teve para iniciar a sua empresa e da importância que ela tinha para a cidade. Um dia, explodiu a guerra. Ouvia-se falar de italianos e alemães de Domingos Martins e Santa Teresa que eram espiões e que transmitiam notícias para fora sobre o Brasil. Mandavam-nas para a Itália e para a Alemanha, secretamente, pelo rádio.

Lá na cidade, todos os italianos "pé de chumbo, calcanhar de frigideira" eram nossos amigos de longo tempo. Eram, também, os turcos "rapatachos". Ninguém traía a nossa Pátria. Eles não. Nem uma dúvida pairava sobre eles. Mas o alemão era novidade na cidade. Assim, alguns ânimos efervescentes, atraídos pelas notícias mal ouvidas, foram à serraria do alemão e a destruíram. Como fiquei triste em ouvir esses comentários! Pois o alemão era trabalhador e "perdeu tudo", assim dizia o meu avô e meu pai, irritados com essa injustiça.

Além dos comentários que ouvia, quando meu avô e meu pai liam os jornais ou ouviam o rádio, do conhecimento que tinha da falta de trigo e do querosene, da passagem dos trens cheios de reservistas e dos documentários a que assistia, antes do faroeste, de soldados alemães em marcha, essa brutalidade com uma pessoa tranquila e trabalhadora, que me cumprimentava, sendo eu criança, e o desaparecimento da pilha colorida dos tamancos, foi a minha real descoberta do que era uma guerra.

 

Fonte: Revista da Academia Espírito-Santense de Letras – Comemorativo ao 86º aniversário da AEL, ano 2007
Autor: Ester Abreu Vieira de Oliveira
Compilação: Walter de Aguiar Filho, março/2022

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