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Juiz de Fora - João Bonino Moreira

Estádio do Rio Branco e Escola Técnica, 1946 - Fonte - José Luiz Pizzol

Tudo era grande, mais adiantado e melhor no Rio de Janeiro. A Avenida Rio Branco e a larguíssima Presidente Vargas embasbacavam a nós, capixabas, mas uma coisa era certa: o que acontecia no Rio não demorava a acontecer em Vitória. "Traque no Rio faz eco em Vitória," dizia meu pai. Tudo aquilo que os 2,5 milhões de moradores do Distrito Federal faziam, logo repetíamos aqui, na condição assumida de miniatura da metrópole carioca.

Estávamos em 1947 e eu, deslumbrando-me com férias cariocas, fui assistir a um jogo de futebol no Estádio do Vasco, em que a Seleção do Rio massacrou (em todos os sentidos) a de São Paulo. Percebi, boquiaberto, que, um pouco apertadinha, quase caberia ali, no Estádio de São Januário, toda a população da minha capital. A partida foi marcada por um inglês, Mr. Smith, que participava de uma equipe especialmente importada para atuar no eixo Rio/São Paulo, tendo em vista as incontáveis patifarias que vinham sendo praticadas pelos apitadores locais.

Só não sabia eu, naquela ocasião, que as autoridades futebolísticas de Vitória já vinham acalentando, há tempos, a ideia de também patrocinarem um juiz britânico, embora não tivéssemos maiores problemas com a prata da casa. Era mesmo a vontade de macaquear a Cidade Maravilhosa, de ombrear-se ao grande centro. Não ficar para trás.

Retornei das férias. E, aqui, a oportunidade de usar um árbitro inglês não demorou a aparecer. O campeonato da cidade fervia e a diretoria da Federação resolveu que os excelentes Gabino Rios, Leão Dionísio e Dionísio Abaurre eram suspeitos para apitar a final do certame, a ser disputada entre as equipes do Rio Branco e do Santo Antônio. Estava então ali a justificativa para termos um súdito de Sua Majestade bufando e soprando o apito no Governador Bley. Promoveu-se logo a chamada do homem, que já vinha atuando no Rio: Mr. Arthur Ford, que tinha fama de fera, autodenominado "Rei dos Pênaltis". O que foi dito até agora talvez dê a entender ao leitor que o tiro saiu pela culatra, que o gringo decepcionou, pisou no tomate, como se diz hoje. Nada disso aconteceu, como veremos. Tudo teve um final feliz, apenas com a ressalva de certos exageros e algum provincianismo, que devem ter provocado discreto e irônico sorriso de Mr. Ford.

A Federação contratou-o por uma quota de Cr$ 5 mil (!), livre de despesas, mandou as passagens e o dito Mr. Ford chegou em avião de carreira às 10 horas de 9 de outubro de 1949, pouco antes do clássico. No Rio, os estudantes haviam lançado a candidatura do brigadeiro Eduardo Gomes à Presidência da República. Evento relevante, mas que não fez lá muita sombra ao desembarque do referee que, pela imprensa local, foi recebido no "original", assim:

"Welcome Mr. Ford! In the name of the Capixaban Sportsmen, we greet you with all good wishes and sincerely trust that your action in today's game will reflect, once again, the prestige enjoyed by the referees of Great Britain in every corners of the world. Welcome!"

Na noite anterior à do prélio, dia 8, sábado, uns foram ao Bingo Musical no Clube Vitória, com Vito Nisticó e sua orquestra, lá bebericaram uísque Cavalo Branco com "Guaranaprado" e flertaram castamente.. Outros preferiram a soirée do Glória, que exibia Na cova das serpentes ("A história patética duma pobre mulher, lutando para recobrar a razão"), com Olivia De Havilland e Mark Stevens, ou ainda a do Carlos Gomes, que levava Nem tudo é ilusão, com Betty Hutton e Macdonald Carey. Os menos favorecidos enfrentaram a sessão do Politeama, que projetava Ironia do destino, com Rex Harrison e Lilli Palmer. E o festejado escritor e poeta Miguel Depes Tallon, então com um aninho de idade, ainda não havia revelado sua preferência pelo Flamengo.

No domingo, dia 9, depois de lauto ajantarado, fez-se a romaria ao Governador Bley (o terceiro do Brasil, dizia-se), em Jucutuquara, para a finalíssima. A Avenida Alberto Torres ficou coalhada de Austins A 40 (representados por Carlos Larica), Hillmans, Vauxhalls, Pontiacs, Buicks e Mercurys. O bondinho, que trazia o povão, vinha amarelo e rangendo nas curvas. Cadeiras numeradas a Cr$ 20,00, arquibancadas laterais a Cr$ 12,00, gerais a Cr$ 5,00 e estudantes e militares Cr$ 7,00. Às 15 horas, com a bola em movimento, o Rio Branco formou com Radaeli, Dudúlio e Hélio, Walter, J. Pedro e Mauro, Miguel, Careca, Nenen, Ênio e Milton. E o Santo Antônio com Adjalma, China e Rela, Jarbas, J. Castro e Hamilton, Didi, Patesquinho, Ormandino, Paulo Maia e Alcemir. Pela primeira vez jogou-se em Vitória com camisas numeradas. Renda: Cr$ 20.645,00. Final: Rio Branco 3x2, campeão da cidade. Mr. Ford, como se esperava, esteve impecável no uniforme e na atuação.

Minutos antes do embate distribuiu aos jornais simpática saudação, que foi publicada nas edições de terça-feira:

"Distintos desportistas de Vitória: é para mim um momento feliz e também uma honra aqui me encontrar como juiz oficial num match nesta cidade. Espero que o jogo tenha como vencedor o melhor. Que seja esta tarde para todos feliz, principalmente para os desportistas aqui presentes. Apreciei imensamente a vossa cidade cuja hospitalidade é marcante. Felicidades e progresso para o futuro. A. J. Ford — 'O Rei dos Pênaltis'."

A imprensa, por sua vez, derramou-se em elogios à atuação do inglês e o cronista Reynold comentou em A Gazeta de 11 de outubro a segurança de Mr. Ford, que trouxe:

"... tudo controlado, sem estapafúrdio, sem gesticulações grotescas, ou apitos por futilidade. Por isso mesmo, S.S. teve subordinados ao seu honroso apito, não só os litigantes como também o público que compareceu ao estádio."

No mesmo domingo da partida, à noite,

"Mr. Ford foi convidado à residência do Sr. Dionísio Abaurre, que aniversariava, unindo-se à alegria que reinava no lar do distinto aniversariante," nas horas vagas seu colega de apito. E até ajudou, meio canhestramente, a cantar o "Parabéns para você".

Na hora de retornar ao Rio, no dia seguinte, deu rápida entrevista aos jornalistas e

"... quando perguntaram a Mr. Ford qual era o seu clube ele, rápido, respondeu com outra pergunta: na Inglaterra? E calou-se. Quando insistiram, ele fez nova pergunta aos presentes e obteve de cada um: sou Flamengo, sou Fluminense, sou Botafogo, sou Vasco, sou América etc. Como não houvesse aparecido quem fosse Bonsucesso ele aí entrou... 'no Brasil sou Bonsucesso'. Todos sorriram, gostando do rico humorismo britânico." (sic)

Nada mais havendo para dizer e com os Cr$ 5 mil no bolso, entrou no DC-3 da Cruzeiro do Sul, cuja passagem já fora marcada com o Heraldo Brasil, e voou para o Rio, ainda a tempo para um chopinho na Galeria Cruzeiro.

Muito mais para o pitoresco do que para o sério, mesmo assim valeu a vinda de Mr. Ford a Vitória. Pois que, no mínimo, "S.S." confirmou o autoproclamado título de "Rei dos Pênaltis": o gol de empate do Rio Branco, quando o Santo Antônio vencia por 1x0, foi de penalidade máxima...

 

Fonte da Foto: 
Estádio do Rio Branco e Escola Técnica, 1946 - Fonte - José Luiz Pizzol postado no grupo: Fotos e Vídeos Antigos do ES, do Facebook.

 

ESCRITOS DE VITÓRIA — Uma publicação da Secretaria de Cultura e Turismo da Prefeitura Municipal de Vitória-ES.
Prefeito Municipal - Paulo Hartung
Secretário Municipal de Cultura e Turismo - Jorge Alencar
Diretor do Departamento de Cultura - Rogerio Borges De Oliveira
Coordenadora do Projeto - Silvia Helena Selvátici
Conselho Editorial - Álvaro Jose Silva, José Valporto Tatagiba, Maria Helena Hees Alves, Renato Pacheco
Bibliotecárias - Lígia Maria Mello Nagato, Elizete Terezinha Caser Rocha, Lourdes Badke Ferreira
Revisão - Reinaldo Santos Neves, Miguel Marvilla
Capa - Remadores do barco Oito do Álvares Cabral, comemorando a vitória Baía de Vitória - 1992 Foto: Chico Guedes
Editoração - Eletrônica Edson Malfez Heringer
Impressão - Gráfica Ita
Fonte: Escritos de Vitória, nº 13 – Esportes- Prefeitura Municipal de Vitória e Secretaria Municipal de Cultura e Turismo, 1996
Autor: João Bonino Moreira
Nascido em Santa Teresa (ES). Aposentado. Membro do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo.
Compilação: Walter de Aguiar Filho, fevereiro/2020

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