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O discurso homossexual na literatura do ES - Parte I

Capa do Livro: Francisco Aurélio Ribeiro, ilustração de Attílio Colnago

Introdução

 

Minha proposta básica, neste trabalho, é de analisar o discurso homossexual na literatura do Espírito Santo, ocorrido, sobretudo, a partir dos últimos vinte anos.

Esta proposta insere-se num contexto maior, de estudar a literatura produzida neste pequeno estado da região Sudeste, como uma manifestação marginal, visto que ocorre na periferia dos grandes centros nacionais. Tal marginalidade, no entanto, acabou sendo o principal fator para sua sobrevivência e resistência cultural.

Ao mesmo tempo em que localizo a produção literária capixaba como à margem da produção nacional ou internacional, procuro estudar as outras marginalidades que ocorrem em seu próprio meio. Assim é a literatura feita por mulheres, a literatura infanto-juvenil, a literatura “negra” ou a ausência de qualquer abordagem sobre a questão indígena, por exemplo.

Neste trabalho, procuro analisar a produção que focaliza o homossexual, seja ela escrita ou não por homossexuais “assumidos”. É bastante grande a ocorrência do discurso homossexual masculino, sobretudo a partir da década de 80, e quase nula a do homossexual feminino. Por serem as mulheres duplamente discriminadas pela sociedade falocrata, é possível que a ocorrência desse discurso ainda seja conquista futura das mesmas.

 

Sobre a homossexualidade: da interdição e da perversão à liberação

 

“A homossexualidade é uma infinita variação sobre um mesmo tema das relações sexuais e afetivas entre pessoas do mesmo sexo”, nos afirmam Fry e Mac Rae, em seu livrinho O que é homossexualdiade?

Segundo Jurandir F. Costa, é preferível usar o termo “homoerotismo” para se referir à pluralidade das práticas e desejos entre dois seres do mesmo sexo, visto que o tema “homossexualismo” é uma criação do séc. XIX, com toda uma carga de preconceito, “que qualifica certos sujeitos como moralmente inferiores pelo fato de apresentarem inclinações eróticas por outros do mesmo sexo biológico.”

Ambas as obras citadas afirmam que existem várias maneiras de experimentar e descrever emoções, sentimentos ou amor que não podem mais acreditar que as diferenças de comportamento entre os seres possam ser explicadas apenas em termos de diferenças biológicas.

De acordo com J. F. Costa, a palavra “homossexual” está excessivamente comprometida com o contexto médico-legal, psiquiátrico, sexológico e higienista do séc. XIX. “O homossexual (...) foi uma personagem imaginária com a função de ser a antinorma do ideal de masculinidade requerido pela família burguesa oitocentista”. Sempre que é usada, evoca-se o preconceito de que os homens estão divididos em “homossexuais” e “heterossexuais”, sendo estes, a regra, e aqueles, a exceção.

A partir desse preconceito que separa a humanidade em “normais” e “anormais”, de acordo com a prática ou desejo amoroso-sexual, a sociedade cria os seus estereótipos: bichas, sapatões, enrustidos, travestis, esquecendo-se de que os papéis e práticas sexuais são, sobretudo, questões culturais, variando de região para região ou de época para época. Os varões atenienses, os guerreiros espartanos ou napoleônicos, os indígenas de algumas tribos americanas, não são menos masculinos ou machos do que outros por terem práticas sexuais com o mesmo sexo.

Por força do preconceito imposto pela visão sobre o homossexualismo no século XIX, o imaginário dos homens que cultivavam os “amores masculinos”, expressão de Peter Gay, é sinônimo de pusilanimidade ou efeminamento, e não de virilidade ou heroísmo, como foram as vidas de Sócrates, Júlio César, Adriano, Ricardo Coração de Leão, adeptos do homoerotismo.

A literatura do século XIX reflete os preconceitos da sociedade com o homossexual. Duas obras clássicas da literatura brasileira, O Ateneu, de Raul Pompéia, 1888, e Bom crioulo, 1895, de Adolfo Caminha, são bons exemplos para ilustrar a visão sobre a “condição” do homossexual, no século passado.

Em O Ateneu, a escola aonde o pequeno Sérgio foi levado para estudar, o mundo divide-se em fracos e fortes. Os fracos, como o protagonista-narrador, tornam-se efeminados pela própria condição de sobrevivência que lhes é imposta dentro do colégio, um microcosmo da vila lá fora. Com o subtítulo de “Crônica de saudades”, O Ateneu tem cunho autobiográfico, visto que o autor inspirou-se em sua experiência no colégio Abílio, onde estudou, no Rio de Janeiro. Ao final da história, o autor vinga-se contra o colégio, incendiando o Ateneu. Na vida real, suicida-se em 1895, no dia de Natal. A enciclopédia assim justifica seu ato contra a vida: “Sempre foi um neurastênico, de temperamento esquisito, instável, desconfiado, ultra-sensível, introvertido”. Todos estes adjetivos são eufemismo para se referir ao “mal” que provocou-lhe a morte: o homossexualismo, não aceito pela sociedade em que vivia.

Em Bom crioulo, publicado em 1895, Adolfo Caminha denuncia os castigos corporais na marinha brasileira, em que serviu como oficial. Sua obra é o primeiro livro que retrata com minúcias e realismos o amor entre Amaro, marinheiro negro, e Aleixo, o jovem grumete. No entanto, preso às estéticas naturalistas e deterministas da época, Bom crioulo é obra escrita para provar que o indivíduo é social ou anti-social conforme ordena sua natureza física e influência do meio sobre ele. O dócil Amaro transforma-se em fera, obcecado pelo desejo voraz e tempestuoso de possuir Aleixo. No Naturalismo, a relação entre criminalidade e homossexualismo expande-se e reforça a imagem de amoralismo, animalidade e comportamento anti-social do desejo homossexual.

No século XX, Gide publica seu Córidon, em 1920, em que procura defender o homossexualismo com base em doutrinas científicas, as mesmas que condenaram essa prática no século anterior. Construído em forma de diálogos, o médico Córydon procura persuadir seu interlocutor de que o hábito heterossexual era uma contrafação do verdadeiro rumo da natureza, negando o instinto de reprodução como inerente ao animal. Córidon provocou muita polêmica e tornou-se, com o tempo, desatualizado, pelo radicalismo das posições que assumiu.

A literatura do final do século XIX e início do século XX é um espelho ou simulacro das ideologias evolucionistas, mostrando o homossexualismo como sinal do arcaico, do primitivo, do disfuncional ou do monstruoso, e do perverso. Suas projeções, segundo Costa, são: homossexualismo “de escola” (O Ateneu), homossexualismo de “quartel” (Bom crioulo), homossexualismo moderno, “exótico” (Proust, Gide).

 

Fonte: A Literatura do Espírito Santo uma marginalidade periférica, 1996
Autor: Francisco Aurélio Ribeiro
Compilação: Walter de Aguiar Filho, outubro/2012 

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