O discurso homossexual na literatura do ES - Parte IV
A poesia do jovem homossexual masculino
A partir do final dos anos 70 e início dos 80, começaram a ocorrer no Brasil, movimentos organizados reivindicatórios dos direitos dos negros, das mulheres, dos índios e dos homossexuais. O jornal Lampião, do Rio de Janeiro, surgido em 1978, aglutinava intelectuais, artistas e jornalistas homossexuais, e procurava abordar a questão da homossexualidade nos seus aspectos políticos, existenciais e culturais.
Nas artes, teatro, cinema, literatura, tevê, shows, popularizou-se a figura do homossexual, em sua forma exagerada/ caricata como em “A gaiola das loucas” (filme e peça teatral ainda com sucesso) ou em seus dramas individuais de paixão e solidão (“Greta Garbo, quem diria, acabou no Irajá”, por exemplo).
Em 1981, Memórias de Adriano, de Margueritte Yourcenar, obra que reconstitui a vida, a obra e a filosofia do célebre imperador romano, famoso, também, por sua paixão por um dos seus soldados, Antínoo, é o livro mais vendido do ano, com uma tiragem de mais de 50.000 exemplares.
No Espírito Santo, começa a surgir uma geração de jovens bons poetas, que explicitam em seus versos o discurso (do) homossexual. Valdo Motta (1959) é o primeiro deles. Vindo da geração marginal dos anos 70, carrega, segundo o próprio, as marcas das três maiores discriminações da sociedade brasileira: seja negro, pobre e homossexual. Publicou os seguintes livros: Pano rasgado, 1979; em edição marginal: Os anjos proscritos e outros poemas, 1980; O signo na pele, 1981; Obras de arteiro, 1982; As peripécias do coração, 1982; De saco cheio, 1983 e Salário da loucura, 1984. Em 1987, a Editora da FCAA/UFES publica Eis o homem, poemas selecionados, 1980-84, de duas obras anteriores, Em 1990, publica Poiezen, uma bela edição da Massao Ohno (SP), com dez poemas esteticamente muito bem construídos, frutos de sua reflexão filosófica sobre a vida e a linguagem. Anuncia-se para 1995, pela Editora da Unicamp, a publicação de Bundo, antes Valdo, poemas escritos antes de sua atual fase de pesquisas místicas e recriações de linguagem bíblica.
Valdo Motta, juntamente com Amylton de Almeida, foi o poeta capixaba escolhido por SapeGrootendorst, estudioso holandês, para análise no “corpus” de sua tese de qualificação intitulada “Literatura gay no Brasil? Dezoito escritores brasileiros falando da temática homoerótica”. Segundo ele, “embora Valdo Motta escreva exclusivamente poesia, fiquei muito entusiasmado com a visão original da literatura e literatura homossexual deste escritor”.
A partir de 1982, há, nos poemas de Valdo Motta, uma liberação maior do erotismo, uma elaboração mais artesanal dos versos e um predomínio da temática do amor homossexual. Em poemas como: “Em teu peito pasto...” (p. 53), “Iniciação amorosa” (p. 73), “Pegação” (p. 72), e, sobretudo, os seis poemas de “Wonderful gay world ou vidinha de viado” (p. 127 a 132), é constante a gíria sexual dos grupos gays, os trocadilhos e jogos de palavras próprios da ambiguidade entre a realidade e sua representação, desnudando-se o poeta, em seus sentimentos, diante de seu leitor-algoz e de si mesmo.
Valdo Motta, segundo depoimento a Grootendorst, “parte do princípio (de) que a relação íntima entre os homens é sagrada e que essa perspectiva tem que se mostrar ‘religiosamente’ na literatura”. Em citação, na mesma obra, Valdo afirma que “a relação homossexual (é uma) postura, um comportamento de libertação dos determinismos da história, da sociedade (...). Enfim (...), o amor homossexual (é) um comportamento revolucionário capaz de verdadeiramente mudar os rumos da história”.
Poeta, profeta, paladino das minorias, defensor das utopias e da liberdade, Valdo Motta é o precursor de toda uma geração de poetas homossexuais, conscientes do seu fazer e de sua condição.
Sergio Blank (1964), poeta “dark”, “vampiro”, “gótico”, dos anos 80, publicou seu primeiro livro de poemas em 1984, pela Ed. da FCAA/UFES: Estilo de ser assim, tampouco. Nele, o desejo homossexual é apenas pressentido, sugerido em poemas como “Rimbaud e verlaine” ou a “flauta de dafnis”. Suas obras publicadas foram: Pus, 1987; Um, 1988 e A tabela periódica, 1993.
A poesia de Sergio Blank é fragmentária, esquizofrênica, irônica, dialógica com a sociedade de consumo e os meios de comunicação de massa. Tematicamente, o que predomina nela é o tédio existencial, a busca do outro, de afeto, de companhia, que se redunda inútil e se conclui na masturbação solitária, ao fim das noites e nos quartos vazios. Sua poética é a do estranhamento, denunciada por visões poéticas que transmitem os impasses e (im)possibilidades da época contemporânea. Mesmo em poemas em que explicita o homoerotismo, sobretudo em Pus, “Você castrate” (p. 131), “Pour lui” (p. 132), “Cinza de fumaça azul” (p. 124), há um sentido de incompletude, irrealização.
“... escolho o prazer sentido só com eu e o corpo meu,
Pois pelo menos eu me dou e ele se dá muito e pouco (...)
Eu e os meus membros nos damos muito bem”.
Na impossibilidade de se ter/ encontrar um outro para amar, o poeta se ama, narcisisticamente.
Outros poetas homossexuais publicaram seus livros de poemas, em que, esporadicamente, revelam seus desejos homoeróticos, sem maiores preocupações com “bandeiras” ou sem a consciência revolucionária de Valdo Motta.
Milson Henriques (1943), embora não seja da mesma geração dos jovens poetas de 20 a 30 anos que debutaram nos anos 80 e 90 e, apesar de ser um dos mais conhecidos artistas de Vitória (ator, cantor, apresentador de programas, chargista), só publicou seu primeiro livro e poemas em 1990, Ai, tia Zizi, como saí a ti! Em busca do tempo sofrido. Como disse Marcos Alencar, no “Prefácio”, “... em seus poemas, Milson está “nu”, “pelado”, revelando-se em seus sentimentos mais recônditos”, ele que foi um dos arautos da “libertação homossexual”, em Vitória, juntamente com Amylton de Almeida.
Em sua revelação, Milson expõe seu erotismo, desde “pequenino”, quando tinha a vontade de ver o sexo do Cristo Crucificado (p.12), sempre tapado. Como a maioria dos meninos de sua época, teve a “iniciação” sexual, aos treze anos, com a empregada Maria, “pretinha como carvão”, com a mesma idade que ele (p.13). No entanto, “O amor” só é descoberto, mais tarde, com alguém do mesmo sexo, que o chama de “amigo” ou “irmão” ou “padrinho” e que sempre parte deixando-o “em busca de um novo amigo...” (p. 43).
Luis Carlos Almeida Lima ganhou dois concursos literários de poesia do Departamento Estadual de Cultura: em 1990, com A companhia das palavras e em 1993 com O coração da matéria. Seus poemas são sintéticos, minimalistas e apenas sugerem o desejo homoerótico, como em Van Gogh (p.82), Marcas no orvalho (p. 83), ou:
“os leões que vão à caça
São fêmeas
Os homens que vão à caça
São machos
Os leões não caçam leões
Nem fêmeas nem machos”
Marcos Igreja (1965) publica A estação em volta, em 1993, pela SPDC/UFES. Seus poemas estão repletos de signos que conduzem a uma leitura do discurso homossexual, embora este não se explicite. “Um belo jogo de emoção e racionalidade num universo sedutor” assim nos apresenta o poeta o prefácio de Deny Gomes. Em “Princesa em suspensão” (p. 19) se autodefine o eu-lírico do poeta e sua criação. Nobreza de sentimento e seleção de palavras é o que revelam os poemas de Marcos Igreja, dedicados a Darcio.
Agostino Lazzaro é outro poeta/ contista premiado, tanto por suas pesquisas sobre a imigração italiana quanto por seus poemas, Inventário do tempo, 1992 e contos, A árvore do verão, 1991. Seus poemas de Inventário do tempo, publicados em 1993, em co-edição DEC/SPDC-UFES, são calcados na tradição, com rimas, metros e ritmos clássicos. Em muitos deles, há explicitação do homoerotismo, como: Canção da roda-gigante (p. 63), As raízes do sonho (p. 51), Abraças o mundo (p. 102), Ode a um jovem desconhecido (p. 103), Deuses machos e fêmeas (p. 108), Nas ondas (p. 109), Arena ensandecida (p. 111), etc. Agostino Lazzaro escreve poemas apaixonados à beleza clássica do corpo masculino, explorando signos bíblicos e míticos, que lembram os “Cânticos” de Salomão ou os poemas de K, Kavafis. Por exemplo, Ode a um jovem deus:
“Noite na Capela
Sistina dos Desejos
Tens o talhe
De um efebo
Pintado por Michelangelo
És o mais belo
E formoso de tua geração
E tens consciência
Dessa beleza antiga
E perene que te abarca
E ultrapassa
O Tempo de a solidão
De tua invejada juventude” (p. 139)
Seu livro, sobretudo nas três últimas partes, são contos de amor aos amados/ amantes, e assim termina, em seu último poema:
LUAS E GIRASSÓIS
Luas e girassóis,
Teu corpo colado ao meu
Sob névoas e plátanos da memória. (p. 171)
De todos eles, no entanto, jovens poetas surgidos nas décadas de 80 e 90, e suas diferentes manifestações do homoerotismo, é Paulo Roberto Sodré o melhor. Por isso o destaquei na obra para análise no próximo bloco.
Fonte: A Literatura do Espírito Santo, uma marginalidade periférica, 1996
Autor: Francisco Aurélio Ribeiro
Compilação: Walter de Aguiar Filho, dezembro/2012
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