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O nosso folclore

COLETÂNEA DE ESTUDOS E REGISTROS DO FOLCLORE CAPIXABA: 1944-1982

AMÂNCIO PEREIRA E O NOSSO FOLCLORE 
 
Mais do que os homens de hoje, os de ontem demonstraram, no Espírito Santo, maior interesse pelas coisas do povo, por seus contos e cantos, suas crenças, suas festas, suas velhas tradições. Não apenas Afonso Cláudio – o pioneiro desses estudos em terras capixabas – mas outros, desviando tempo de suas habituais atividades, no magistério, no sacerdócio, na advocacia, na magistratura, na política, dedicaram-se à cata de material folclórico, recolhido da via oral popular, e o divulgaram em livros, plaquetas ou registros na imprensa local. Vamos a uma breve relação:
 
De Afonso Cláudio – além dos escritos esparsos nos jornais de então – temos o livro Trovas e cantares capixabas (1923) e mais vários tópicos de sua História da literatura espírito-santense (1912), por exemplo, às páginas 119, 121, 123, 316 et passim; dos seus Ensaios de sociologia, etnografia e crítica; do ensaio Insurreição do Queimado (1884), com o registro de algumas lendas ou “milagres” (p. 45) e versos de cantador (p. 26-27).
 
Do Padre Antunes de Sequeira, no livro Esboço histórico dos costumes do povo espírito-santense (1893), temos registros valiosos sobre crendices (p. 43), costumes familiares (p. 61), danças populares (p. 53), cavalhadas (p. 52), festas religiosas (p. 58, 76), orações e benzimentos (p. 82-83), etc.
 
De J. J. Gomes Neto, em As maravilhas da Penha (1888), temos o desfile do seu lendário, das festas, das crendices populares.
 
De Basílio Carvalho Daemon, em Província do Espírito Santo (1879), temos referências a festas, lendas, cavalhadas etc. (p. 72, 105, 133, 157, 232 etc.).
 
De D. João Batista Nery – nosso primeiro bispo – temos sua Carta pastoral (1901), onde se insere a minudente e valiosa pesquisa sobre a seita negra da Cabula, em terras de São Mateus (p. 71 a 76).
 
Poderíamos ainda referir outros apaixonados das coisas do povo, como o desembargador Ferreira Coelho, o grande animador das Lapinhas de outrora; Francisco Goulart, com seus “Apontamentos históricos”, a mencionar festividades tradicionais de nossa gente; Areobaldo Lellis, anotando lendas, superstições, festas do Divino; e Amâncio Pereira, cujo centenário de nascimento o Espírito Santo hoje comemora.
 
Este mestre – guia de gerações de capixabas que lhe ouviram as lições e leram os trabalhos de História, de Geografia e de Literatura – também se interessou pela cultura popular e, curioso e apaixonado, foi buscar, na boca e na tradição do povo, alguns dos preciosos fatos folclóricos que, depois, divulgou através da imprensa capixaba.
 
Não temos, infelizmente, tudo o que Amâncio Pereira recolheu e publicou. Um dos números, porém, da revista do nosso Instituto Histórico (nº 11, julho de 1938), estampou interessante capítulo que deveria figurar (ou figurou) na sua obra maior, Homens e cousas espírito-santenses: capítulo que registra a fisionomia social da antiga Rua da Lapa (hoje Thiers Vellozo), com seu casario velho, seus tipos populares, seus batuques e sambas “que a  lei nº 21, de 16 de maio de 1880, proibiu”. Exame pitoresco de costumes e hábitos dos recuados tempos, do acervo de crendices que enchia e dominava a alma crédula da gente simples de antanho.
 
Nesse capítulo – preciosa fonte de estudo de nosso folclore – há, fielmente trasladadas e anotadas, uma série de rezas populares, variado ritual de benzimentos, com seu “conjunto terapêutico”. Rezas, por exemplo, para livrar de animal bravo:
 
São Bento, água benta,
Jesus Cristo no altar;
Bicho feroz, baixa a cabeça
E nos deixe em paz passar.
 
Reza para a cura de “carnes quebradas”:
 
– Que coso?
– Carne quebrada.
– Eu te coso,
carne quebrada,
nervo torto,
osso desconjuntado.
 
Para ventosidade, batendo-se “três vezes em cima da parte doída, e em cruz”, rezando-se o Padre-Nosso e a Ave-Maria:
 
Jesus é o sol
Jesus é a luz,
Jesus é o sumo da verdade,
Assim como estas palavras são gloriosas,
Sai de Fulano
Este flato de ventosidade.
 
Tampouco a farmacopéia e a medicina caseiras foram esquecidas no trabalho do professor Amâncio Pereira: a poaia – “que, nesse tempo, havia em abundância na estrada que vai para Jucutuquara” –, o fedegoso, o maririçô, o pinhão e a mamona – raízes, frutos e folhas para os chás e infusões domésticas.
 
No setor da poesia improvisada, Amâncio Pereira chega a copiar algumas trovas colhidas num desafio ouvido entre um violeiro e uma mulher “despachada”; trovas onde se nota certa ironia maliciosa e ferina, disfarçada nas expressões de sentido figurado com que os contendores compunham as suas quadras:
 
Ele
 
Afinada está a viola,
Para eu já começá,
Quero vê quem tem sustança
Para a resposta me dá.
 
Ela
 
Aqui estou, eu pego, não geme,
Para a resposta lhe dá;
Mas nos seus bolsos não cabem,
Traga um saco e um samburá.
 
Ele
 
Resposta de quem de mim
Hoje vive sem agrado,
Faço conta, como faço
De um samburá já furado...
 
Ela
 
Um samburá que tem furo
Fica novo, remendado.
Mió que espingarda véia
Com o cano enferrujado...
 
Preciosa, como se vê, a contribuição que, nesse capítulo, nos deu Amâncio Pereira.
 
Outros registros do mesmo teor folclórico há de haver em sua obra, nos livros que publicou ou nos esparsos que se sepultaram nas páginas da imprensa local ou nos inéditos de seus apontamentos.
 
Estudiosos do folclore capixaba, interessados nas fontes velhas ou novas que o catalogam e guardam, queremos aqui ressaltar, no coro dos louvores que hoje se entoam ao saudoso mestre Amâncio Pereira, nosso melhor reconhecimento por essas valiosas migalhas que o seu amor à terra e à gente do Espírito Santo fez que colhesse e divulgasse.
 
Assim faziam, outrora, os homens capixabas, consagrando parte de seus lazeres ou do seu trabalho diuturno à cata e estudo dessas sagradas “insignificâncias”...
 
Autor: Guilherme Santos Neves
Fonte: A Gazeta, 15.04.1962 e Site Estação Capixaba

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