Os anos 90: Poesia erótica feminina ou Poesia-Fêmea - Por Francisco Aurélio Ribeiro
Elaine Showalter classifica a escrita da mulher em três tipos: "feminina", em que a mulher imita a escrita masculina para se afirmar; "feminista", em que radicaliza a luta contra o poder masculino, como as sufragistas do final do século XIX e início deste século e a "fêmea", uma escrita deste século em que se reflete a fase da expressão mais madura da feminilidade com ênfase na conscientização da mulher, a partir dos anos 60.(24)
Com a liberação da mulher do jugo masculino, a conquista de muitos de seus direitos, após uma luta de séculos, sua independência econômica, há, também, a partir dos anos 80, a liberação do erotismo, de um discurso amoroso-explícito em seus desejos.
Deny Gomes afirma em "Femina", de O desejo aprisionado, 1988;
"Uma mulher
se abre disponível,
e, querendo, recusa,
se lhe dá na telha.
Uma mulher
mais zangão que abelha,
só, pode com a vida.
Se dana se não dá ". (p. 11).
É a assunção do "desejo aprisionado” por séculos, a liberação do prazer, do sexo sem culpas.
Maria do Carmo M. Schneider assume em Nós, Bloco poético, 1992, o "Amor ao vivo": "Não quero amar à distância./ Chega de tele-amor! Preciso de amor ao vivo". E também a insana paixão em "Veneno": "No cálice da tua boca, bebi o pior dos venenos, o que não mata deixa louca."
Lúcia Oliveira publica seu Ritual da paixão, 1992, num eu-feminino erótico, lúbrico e desavergonhado: "Neutra/ a contragosto/ estava úmida/ seu código secreto/ de se deixar invadir/ por desconhecido"(p. 19), ou "Uma rara tara precisa ter na veia Bocage/ ser uterina/ lamber meandros/ no risco, uivar/ Chegar ao ponto/ emprenhar" (p.21). Jamais um homem poderia associar o prazer poético ao prazer erótico de emprenhar. Por mais feminina que seja a alma masculina, somente a mulher pode procriar e criar isto, poeticamente.
A melhor poesia erótica feminina ou poesia-fêmea, é a de Elisa Lucinda, poeta e atriz. Seu primeiro livro, Aviso da lua que menstrua, 1990, é um escândalo, pela liberação total do verbo, da paixão e da tesão, que os homens e as mulheres, estas subjugadas por eles, esconderam durante tantos anos. O segundo livro, Sósia dos sonhos, 1994, é um desafio a tudo que os homens impuseram à mulher. Nele, a autora reproduz o poema-título de seu primeiro livro: "Moço, cuidado com ela!/ Há que se ter cautela com essa gente que menstrua.../ imagine urna cachoeira às avessas: cada ato que faz, o corpo confessa".(p.15).
Inspirada em Adélia Prado, e dedicado à mãe, Elisa Lucinda, em Sósia dos sonhos, vinga-se em nome de todas as mulheres, colocando a seu lado, o homem objeto de seu desejo, como animal dominado:
"Em noite de lua cheia
geme ao meu lado meu cão
acabado de chegar
late ilusões ao meu ouvido
e meu sentido diz que ele veio pra ficar"(p.3).
Seus poemas retratam o cotidiano mais intimista da mulher esposa, mãe, amante, num realismo gritante de um eu exclusivamente mulher: "Meus filhos choram pela casa/ fraldas colos fanfarras/ Meus filhos choram querendo talvez meu peito/ ou talvez o mesmo único leito que reservei pra mim".(p22).
E numa intimidade muito própria das mulheres faz poema à geladeira ("Dei um gelo nela", p. 19) ou uma crônica à panela de pressão ("Minha panela de pressão", p.22).
A mulher como tema, sujeito e agente da história é a marca dominante em duas obras premiadas, na década de 90, Olhos de espanto, 1993, de Regina Herkenhoff Coelho e Linhas Paralelas, 1994, de Wanda Sil. Regina recebeu o prêmio de literatura do DEC como o melhor livro de contos de 1911 e foi também premiada como escritora-revelação de 1993, pelo IHGES. Wanda Sily é habitual ganhadora de prêmios e Linhas paralelas foi a obra vencedora do concurso de contos Aracruz/UFES, de 1994. Nela, pode ser lido um conto intitulado "Fênix", que assim se inicia:
"Reformou o guarda-roupa, cortou mangas, abriu decotes, encurtou bainhas. Deu um corte chanel nos cabelos e tingiu de cobre escuro. Comprou uma passagem de trem para algum lugar, não importava qual (...) "Não importa. Nau peregrina singrando mares desconhecidos, vou em busca de mim, essa concha lacrada que se perdeu em algum lugar no oceano da vida"(p.43-44).
A personagem do conto acima de Wanda Sily é um protótipo de todas as mulheres que romperam com a opressão masculina e partiram para assumir seu destino. Bernadette Lyra, Deny Gomes, Maria do Carmo Schneider, Elisa Lucinda, Regina Herkenhoff Coelho, Wanda Sily são os nomes mais representativos dessa "literatura-fêmea", assumidamente mulher, que constitui hoje a melhor literatura feita por mulheres no Espirito Santo.
Considerações finais
São cem anos de literatura. Das precursoras Adelina Lyrio e Antonieta Tatagiba, passando pelas combatentes Maria Stella de Novaes e Haydée Nicolussi, as acadêmicas de 1949 e as de 1992, chegou-se à ferina Carmélia dos anos 60 e à terna Márzia Figueira das crônicas de A Gazeta, ainda não publicadas em livro. Bernadette Lyra consagra-se entre as capixabas na década de 80. As mulheres ganham prêmio e vencem os homens, na década de 90. Neida Lúcia e Anna Bernardes ocupam o espaço antes só masculino da AESL, como já o fizeram antes Judith Leão e Virginia Tamanini. As mulheres preencheram as trinta vagas de sua exclusiva Academia, embora as melhores escritoras capixabas estejam de fora.
Procurei traçar um painel desses cem anos da literatura feita por mulher capixaba, ainda que o reconheça incompleto e limitado. Há obras que precisam ser recuperadas nos jornais e arquivos, como as de Haydée Nicolussi e Ivonne Amorim. Muitos nomes foram esquecidos. Procurei destacar os mais conhecidos e divulgados.
Penso que este trabalho possa servir de estimulo a que outros pesquisem, com mais profundidade e tempo, a obra e a vida de algumas dessas mulheres citadas. Para mim, ele é apenas parte de outra pesquisa já iniciada em minha tese de Doutoramento, A modernidade das letras capixabas, e de outra pesquisa concluída "A literatura do Espírito Santo: uma marginalidade periférica". A literatura feita por mulheres no Espirito Santo faz parte de uma marginalidade dentro de um todo que já é também marginal: a própria cultura do Espírito Santo. Recuperar sua memória não é tentar determinar um centro, um núcleo, mas apenas iluminar as contradições de uma sociedade discriminatória, machista e injusta e ver como elas podem ser superadas. A afirmação do feminino e de suas formas é a principal marca da literatura feita por mulheres, no Espirito Santo, nestas duas últimas décadas, uma transgressão ao papel que antes lhes reservara os homens.
Concluo este trabalho com uma citação de Rosiska Darcy de Oliveira: "Indicativos dos caminhos que as mulheres estão trilhando, do produto consciente e inconsciente de suas existências múltiplas, esses sinais nos chegam frequentemente na produção artístico-literária e ensaística feita por mulheres. O imaginário é ato e fato político".(25)
Referências Bibliográficas
1. BÚSSOLA, Carlo. O feminismo: história de uma ideologia moderna. Revista de Cultura UFES. Vitória: FCAA. Ano X, n°- 34, 1985, p.47 a 63.
2. CRUZ, Sóror Juana I. de La. Letras sobre o espelho. São Paulo: Iluminuras, 1989, p.211.
3. NOVAES, M. S. de, A mulher na história do Espirito Santo (História e folclore). Vitória. IJSN, orig. inédito.
4. ELTON, E. Amélia de Oliveira (1868 - 1945). Rio de Janeiro: Ed. do autor, 1977, p. 78.
5. NOVAES, M. S. de. Id., ibid., s/p.
6. NOVAES, M. S. de. Id., ibid., s/p.
7. MEDINA, Grinalson F.. Páginas de nossa terra. História do antigo município de São Pedro do Itabapoana ( 1534 - 1931 ). S/ed., S/d.
8. MEDINA. G. F. Op. cit.. p 44.
9. Id.. ibid., p. 58 e p. 62.
10. Id., ibid., p. 102.
11. Id., ibid., p 114.
12. Id., ibid., p. 126.
13. ELTON. Elmo. Poetas do Espírito Santo. Vitória: FCAA, PMV, 1982, p. 84
14. MORAIS. F. Olga. A vida de Olga Benário Pontes, judia comunista entregue a Hitler pelo governo Vargas, 4ª ed, São Paulo AIfa-Omega. 1985, p. 174-5.
15. BOPP, Raul. Grupo Post-simbolista. Movimentos modernistas no Brasil (1922-1928). Rio de Janeiro, Livraria São José, 1966, p.31.
16. ELTON, E. Op. cit., p.197.
17. CARVALHO, A. de. As mulheres na literatura espírito-santense. Diário da Manhã, Vitória, 19/12/1937, p. 03.
18. CARVALHO, J. A. Panorama das Letras Capixabas. Revista de Cultura, UFES. Vitória: FCAA, ano VII, nº - 22, 1982.
19. Discurso de posse dos Acadêmicos de 1922, feito por Arlete Cypreste de Cypreste.
20. ELTON, Elmo. Poetas do Espírito Santo, Vitória: FCAA/UFES, PMV, 1982, p. 193.
21. OLIVEIRA, M de. O deserto jardim. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990, p. 13 e 14.
22. COUTINHO, A. (Dir) Enciclopédia de Literatura Brasileira. Rio de Janeiro; MEC/FAE, 1990, vol. 1, p.559.
23. LAZZARO, Agostino; Op. cit, p.223.
24. Apud SANT’ ANNA, A. R. de Apresentação do livro de BRANCO, L. C. e BRANDÃO, R S. A mulher escrita, Rio de Janeiro; Casa Maria, 1989.
25. Território do feminismo, In: KUHNER, M. H. e outras. A transgressão do feminino. Rio de Janeiro: IDAC, 1988.
Fonte: Literatura do Espírito Santo: uma marginalidade periférica, 1996, Vitória/ES
Autor: Francisco Aurélio Ribeiro
Capa (execução eletrônica): Renato Costa Neto e Luiz Alexandre Mess
Ilustração: Attílio Colnago
Editoração Eletrônica (texto): Antonio Gil e Alexandre Moraes
Revisão: Reinaldo Santos Neves
Agradecimento especial: Idelze Maria Vieira Pinto
Compilação: Walter de Aguiar Filho, fevereiro/2021
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