Para desmistificar - Por Cariê
Quando descobri que não gostava tanto assim de qualquer tipo de música já era tarde demais. Ao longo de muitos anos fui indevidamente adquirindo, sem que percebesse, fama de músico amador, e de boêmio incondicionalmente fissurado em som. Isso ocorreu porque arranhava o violão, gostava de cantar, fazer serenatas e participar de shows amadores que a turma produzia no efervescente clube Praia Tênis. Por sinal foi neste espaço que Maysa cantou pela primeira vez em público, despertando sua veia artística. Do mesmo modo este meu conceito de conhecedor de música se deve ainda à composição de algumas melodias, como Devaneio, que se tornou muito conhecida graças à televisão.
Talvez o fato de ter participado ativamente como ouvinte assíduo e atento observador do movimento da Bossa Nova e me tornado conhecido de seus papas e papisas, tenha também concorrido para essa história. Ainda porque, eu vivia indo e voltando ao Rio quase todas as semanas e, com isso, trazia muitas músicas novas que não raramente tinha o privilégio de aprender com seus próprios autores para repassá-las aos amigos músicos daqui. O palco disso era sempre o sereno da madrugada, na Praça Costa Pereira, as dependências do Hotel Império, do aplicado violonista Evanilo Silva, ou as longas reuniões em casa de alguns dos nossos, como era o caso de Genaro, atualizadíssimo pianista carioca que morava no Horto.
Só agora eu e os que me cercam percebemos o engano desse impróprio entendimento de que conheço música. Fica, infelizmente, ainda para muitos, essa minha falsa imagem da qual pretendo, com minhas desculpas, me redimir. Aproveito esta crônica para curar isso que se tornou um involuntário embuste perseguindo-me implacavelmente como um martelo na consciência. Levei mais de trinta anos para me conscientizar de que não gosto de música. A minha praia mesmo é a MPB e nela, especialmente a Bossa Nova e música melodiosa, seja nacional ou internacional, não importa. Não era outro o repertório do primeiro conjunto do qual participei, ainda no tempo de faculdade, com vários amigos, entre os quais o cantor mais tarde profissional Carlos José, e o acordeonista Paulo Alberto (hoje senador Artur da Távola). Pagode, iêiêiê, forró, xote, rock, heavy metal, e seu estilo, música caipira etc., para mim não estão com nada. Embora tenham ritmo, sinto nelas falta de melodia, o que considero o cerne de qualquer composição.
Apesar de originais, nem os mundialmente famosos e aplaudidos Beatles eu conseguia gostar e ouvir. Enquanto todos os adoravam, eu achava aquela música, embora singela e inovadora, chatíssima.
Os músicos não se atrevem a cometer a heresia de reconhecer isto com medo do natural patrulhamento dos fãs. Estes gêneros, desde que os conheci, estiveram brigados com os meus ouvidos. E, é claro, quando alguém não gosta de alguma coisa que a maioria das pessoas gosta, é fácil identificar quem está desafinado, destoando.
Tempo de Cobrões
Da verdadeira música clássica também passo ao largo, apreciando alguns compositores e músicas semelhantes às de um tipo que nem sei se pode ser considerado clássica. Falo, por exemplo, de Claire de Lune, de Debussy, de Rhapsody in Blue, de George Gershwin, é das coisas do compositor Michel Legran, com suas orquestrações fantásticas. Para mim, estas são algumas das genialidades da música mundial e que, pela sua qualidade, se eternizarão. Claro que neste rol estão também muitos brasileiros, dos quais os expoentes máximos, a meu juízo, foram Tom Jobim e seus maiores parceiros: Vinícius de Moraes e Newton Mendonça. Este se tivesse passado dos trinta anos, teria hoje um acervo musical esplendoroso. Perco a noção do tempo ao ouvir as composições de Johnny Alf (o pouco reconhecido precursor desse estilo de música), Ivan Lins e Victor Martins, Carlos Lira, Menescal, Boscoli, Chico Buarque, as vozes privilegiadas de Emílio Santiago, de uma Nana Caymmi, Leni Andrade, uma Elis, Elizete, Simone, a Gal e por aí vai. Este século, é bom saber, teve momentos verdadeiramente fascinantes nas letras, nas melodias, harmonias e nas interpretações. Ataulfo Alves, com uma inigualável produção musical, o nosso poeta de Vila Isabel, o Noel, Pixinguinha, Cartola e tantos outros daquela época como que transpiravam a alma brasileira com os seus versos inteligentes, dotados de uma poesia marota e malandra encantadoras.
Esta boemia romântica movida a violão, copo e caixa de fósforos, instalada na Zona Norte e no centro do Rio, foi assumindo novas características, ensaiando uma profissionalização e se transferindo para a área sul da cidade. Pianistas e compositores de alto nível alimentavam de calor e emoção com suas já lindas músicas, mas ainda desconhecidas, os bares de hotéis e as pequenas e poucas boates da época mais conhecidas como "Inferninhos". Vocês podem até não acreditar, mas este foi, durante anos, o caso de Tom Jobim, Dick Farney, e ainda é o que faz até hoje o injustamente obscuro Johnny Alf. Milhares de músicos "ralam" muito, mas poucos deles conhecem a fama, e alguns nem sequer a grana.
Nova Bossa: o Caminho da Amizade
Eu enveredei pela turma da Bossa Nova por duas largas e majestosas entradas: uma decorrente de fantástica coincidência e, outra, em função de um antigo e sólido relacionamento com o notável showman e multimídia Luiz Carlos Mielle. O seu inigualável gênio e sua resplandecente alegria eram presenças imprescindíveis nos ambientes da época, que só se completavam com a sua chegada. Ele era como irmão do Ronaldo Boscoli, porque foram parceiros inseparáveis na produção de eventos de variadas naturezas. No mesmo nicho da amizade estava o capixaba Roberto Menescal, meu amigo daqui de Vitória, que dava na época os primeiros passos no violão. Até hoje tudo o que ele faz é bem feito. Não se contentando em tomar-se um exímio violonista, batalhou e se fez um talentoso maestro arranjador que prossegue com extrema categoria, inovando a música brasileira, inclusive com suas excepcionais composições. Através deles conheci compositores e cantores que vieram a ser o expoente máximo na época, como Silvinha Telles, que acabou se transformando na minha maior amiga na música. Ela e o seu primeiro marido Candinho. Enquanto nas noites todos pediam bebidas fortes, o Menescal indefectivelmente ordenava um copo de leite, alegando sempre a mesma desculpa esfarrapada de que teria pesca submarina no dia seguinte cedo. Ele na verdade só tomava leite ou água, o que estávamos cansados de saber. Um acinte que provocava a irritação de todos.
Toda a patota da Bossa Nova, acabadas as reuniões musicais nos apartamentos de parentes e amigos da Zona Sul, ia terminar a noite pelos lados de São Conrado. Era como um complemento de programa sem o qual a noite não parecia completa.
Esta enturmação acabou estimulando através de improvisados shows o surgimento formal da Bossa Nova. Este foi um dos momentos mais vigorosos, ricos e permanentes da história da MPB, institucionalizado e adequadamente difundido a partir de uma vitoriosa estratégia criada por Ronaldo Boscoli incentivador e porta-voz maior do movimento. Ele, além de qualificado cronista, foi exímio letrista, muito sutil e irreverente, atributos que exibiu até no final da vida, como vocês vão constatar. Mielle foi uma das poucas pessoas autorizadas a visitar o doente terminal na CTI. Quando entrou acabrunhado, meio constrangido, viu o Ronaldo tomando em cada um dos braços dois líquidos distintos: uma transfusão de sangue e um soro.
"Mielle — disse Ronaldo sem se perturbar, oferecendo cada um dos braços — você vai de tinto ou de branco mesmo?" Com a inteligente e descontraída piada, ele desanuviou o ambiente.
Inovação
As harmonias e melodias receberam um discreto, mas abençoado batismo do jazz dissonante (e por isso se internacionalizaram) e as letras perderam a sua característica arcaica de descrever minuciosamente os temas de forma derramada, dramática, sentimentalóide. Em seu lugar, elas passaram apenas a sugerir histórias, temas e conceitos no mais das vezes inspirados no amor, no sorriso e na flor, libertando os ouvintes e exigindo deles maior dose de criatividade e inspiração. Foi como um desengessar para cada um curtir a seu jeito predileto. Aliás, este fato se deu paralela e igualmente na pintura, na escultura, no teatro e em outras manifestações culturais. Digamos que o abstrato tomou o lugar do concreto.
A Bossa em Vitória
Vitória esteve afinada com este movimento desde o seu nascedouro. Os músicos locais iam se entusiasmando com a bossa nova, ainda pouco conhecida e, aos poucos, a batida e a harmonia já estavam diferentes, enquadradas no moderno. Até o clássico Maurício de Oliveira participava com entusiasmo dos nossos encontros madrugada adentro na Praça Costa Pereira. Algumas coincidências felizes fizeram com que os ventos da Bossa Nova chegassem a Vitória. João Gilberto, que revolucionou a batida, os acordes do samba e a forma de cantá-lo, baixou aqui para uma longa lua-de-mel com Astrud, sua primeira mulher. O Sérgio Ricardo, compositor inspiradíssimo, cantor que se acompanha em vários instrumentos, veio a Vitória a meu convite e acabou se apaixonando por uma linda jovem, com quem nunca sequer conversou. Já meio enturmado com os caras locais, tinha razões de sobra para voltar inúmeras vezes aqui para fazermos serenatas em Vila Velha. O Tamba Trio veio com Ronaldo Boscoli fazer um show com a também capixaba Maysa e acabaram alugando uma casa e ficaram por aqui. Foram muitos os exemplos, como estes, que ofereceram chance aos músicos capixabas de se atualizar com as novidades musicais.
Jorge Saade, antes mesmo dos 18 anos, já coordenava ao piano o conjunto Jorginho Saad, recém-criado com Afonso Abreu, um irreverente, irrequieto e muito alegre contrabaixista, e o Mário Rui, baterista que foi seduzido por Afonso a trocar de conjunto, saindo do Gato Preto. Integrava ainda o grupo Honório Ramalho (Zé Colméia) que, apesar de excelente saxofonista, foi obrigado, a deixar o time porque, com freqüência, o Afonso se divertia roçando por trás, pela perna dele acima, a baqueta do baterista, sempre nas horas dos agudos, deslizando-a até os lugares mais delicados do corpo. Além do Honório, Afonso também teve momentos de frustração ao ver, tempos depois, o seu baixo acústico navegando e naufragando nas águas do Iate. Quanta brincadeira de mau gosto!
O conjunto de Hélio Mendes era o mais solicitado e também mais tradicional, com Maurício Oliveira (guitarra), Cícero Ferreira (trompete e vocal), Marinho Carlos (acordeon), Moacyr Barros (sax e clarinete), Betinho (bateria) e Edílio (baixo). Tinha uma agenda cheia que os obrigava a ficar com o pé na estrada.
João Virgílio, de um excepcional bom gosto, comandava um excelente grupo que, por sinal, foi o primeiro do Espírito Santo a fazer urna gravação de valor.
Lembro-me de alguns de seus companheiros, como Belinho (bateria), Américo Garrafão (baixo), Valdir, excelente acordeonista, José Adalberto, ótimo no sax, e o ritmista Jackson (Frieira), apelido que não entendo como adquiriu.
O Gato Preto, que atuava muito na região do Parque Moscoso, era também um conjunto inovador, e tinha no titular, José Anselmo, o seu grande charme. Ele tocava um violino lindo e afinado, instrumento que estava sendo apresentado à música popular por Fafa Lemos, nacionalmente aplaudido na época por participar das inigualáveis apresentações do Trio Surdina. O bandolim era também uma das habilidades musicais de José Anselmo, que continua produzindo no piano lindas melodias.
Bossa Nova: A Porta da Coincidência
Andávamos pelo final da década de 50 e eu levava uma vida duríssima, porque além da faculdade, tinha os meus deveres na cavalaria do CPOR (Centro Preparatório de Oficiais da Reserva). Eu havia arranjado pistolão para servir o Exército porque, depois de seguidos adiamentos, os militares me consideravam meio velho para isso. Hoje não me arrependo, mas na época me lamentava seguidamente do meu gesto, classificando-o, no mínimo, de idiota, coisa de asno, já que vivia na estrebaria.
Nos dias em que tinha serviço era impossível acompanhar a onda da Bossa Nova, pois a hora de chegar ao quartel era mais ou menos às cinco da manhã. Nem por isso ficava sem me divertir. Ia fardado para a boite Carroussel por volta das 10 da noite, onde trocava a parte superior da farda por uma camisa minha que ficava lá. Pouco depois das quatro fazia o inverso, colocava ainda o quepe e pegava o lotação para o quartel. A boite reunia garotas de programa, músicos, jovens, todos apreciadores do som. Só havia um piano e o turno era de 40 minutos para um pianista e 20 para o outro. Eu ficava amolado porque o turno do Gaúcho, que me deixava cantar à vontade, era o menor. O outro pianista era um cara mais para baixo do que alto, mais para gordo do que magro, usava um óculos grosso de tartaruga e era muito mal-encarado.
Digamos que ele parecia um cachorro bull-dog, mas, apesar de tudo, era de aparência bonita. Diferentemente do Gaúcho, ele não fazia a harmonia tradicional, ultrapassada. A olhos vistos ele tinha outro berço e até pela leveza e simplicidade da melodia dava para notar. Eu já me considerava como um utensílio da casa, conhecido das freqüentadoras, dos garçons e clientes, razão pela qual me intrigava o bloqueio que me separava daquele cara. Apesar do fosso, um dia resolvi arriscar. Ele estava dedilhando o piano no intervalo de músicas como quem aguardasse para decidir o que tocar. Percebendo com clareza que esta era a minha grande chance, sussurrei no ouvido dele: "Posso dar uma canjinha?" Ele foi sintético e disparou, sem qualquer intenção de me agradar: "O quê?"; "VOCÊ MORREU PRA MIM", balbuciei humilde. "Qual o tom?", perguntou. Instintivamente comecei a cantarolar a música no seu ouvido, respondendo indiretamente o que não sabia. Acomodamo-nos então em um ré maior, o que não foi difícil para um pianista daquela envergadura encontrar rapidamente... Além da grande alegria daquele momento, jamais poderia imaginar a profundidade e a importância que esse relacionamento viria a me tocar pelo resto da vida. Terminada a música, ele me perguntou: "Você sabe de quem é essa música?" "É de Newton Mendonça", não pestanejei. "Pois muito prazer, amigo. Você 'NASCEU PRA MIM'. Eu sou Newton Mendonça".
"Mendas", como passei a lhe chamar, era o apelido carinhoso que seu maior parceiro e amigo Tom Jobim lhe dera, assim como "Vinas" a Vinícius de Moraes, seu outro parceiro mais famoso. Ele tinha uma notória propensão para sintetizar as coisas, razão que explica seu fantástico sucesso como compositor. A grande obra do Tom, assim como sua atuação em instrumentos musicais, são de uma simplicidade inigualável. Até os corais que organizou para seus próprios shows eram muito bonitos e originais mas em uníssono, sem ou quase sem a sofisticação tradicional da combinação de vozes.
Foram tempos de exuberante êxtase espiritual que vivemos na casa do Tom e do Mendonça, onde nasciam, por atacado, músicas de excepcional qualidade como Desafinado, Samba de Uma Nota Só, Caminhos Cruzados, Discussão e muitas outras que se tornaram grandes sucessos internacionais.
Gêmeos na Música
O tempo e a intensa convivência consolidaram nossa amizade de tal forma, que já havia batizado um dos dois filhos do Mendonça quando ele teve que se mudar. De um quarto e sala minúsculos em Ipanema, perto da casa do Tom, ele foi para um dois quartos melhor em Vila Isabel, mas ficou longe de todos. A distância não afetou a amizade entre os dois, mas é claro que prejudicou muito a parceria. A convivência era mais difícil porque encurtou o tempo disponível do Mendas, que trabalhava das 9 às 17 e das 22 às 4 da manhã. Todos os sábados e domingos, estando no Rio, eu ia para a casa dele, que ficava horas seguidas no piano compondo ou revendo suas músicas e eu ao lado, peruando, discretamente, e só opinando se solicitado. Quando o Tom eventualmente ia comigo, a produção era muito mais fértil. Os dois tinham uma sinergia tão forte que a impressão que davam era a de que pensavam da mesma maneira ao mesmo tempo e sabiam exatamente o que queriam fazer com a letra e a música. Eram gêmeos na música. Isso desgraçadamente não durou muito. Um infarto afastou Mendonça por algum tempo do trabalho e seis meses depois de forma definitiva, fulminantemente. Ele era branco, mas morto, ficou pretinho. Instantaneamente.
Até hoje não me libertei da convivência inteligente, criativa e folclórica dele. Certa noite vagávamos sem rumo pela madrugada, quem sabe em direção à casa do Tom, depois de tomarmos muito conhaque nacional, daqueles baratíssimos, e, portanto, muito ordinários. Passávamos um tanto o quanto chapados em frente à uma farmácia aberta e ele ordenou: "Espera aí, Carlinhos". Ele agora já estava com as mangas arregaçadas, com o braço estirado e virado para cima sobre o balcão. Entretanto, olhava no sentido inverso ao do braço como quem, apesar do medo, estivesse pronto para levar uma agulhada na veia. Ele gritava repetidamente lá para dentro, até aparecer alguém. "Me solta uma Necroton aí, o meu". Essa injeção era um complexo vitamínico que curava o porre de qualquer um logo e, ainda, evitava a ressaca. Não estranhava, portanto, que o Mendonça a conhecesse. O folclórico era a maneira inédita e sui generis dele encomendar aquela mercadoria. Com a morte de Mendonça vi também sepultados os meus programas de sábados, domingos e as eventuais noites na Carroussel, onde nunca mais tive coragem de pisar.
Vida Nova
Sobrou-me, então, tempo para conviver mais com muitos outros amigos ligados à música, como a Silvia Telles, então a intérprete maior da Bossa Nova, e seu ex-marido Candinho, um compositor inspiradíssimo mas que nunca se preocupou em divulgar a sua obra. Onde cada um deles estivesse assim como os demais astros da Bossa Nova, certamente haveria um ambiente ligado à música, o que me fascinava crescentemente.
Festival Capixaba, um Marco
Tanto que não resisti a me inscrever no primeiro festival de música popular capixaba, embora meio constrangido por ser secretário do governador, meu pai. Com duas músicas classificadas, uma com Carmélia Maria de Souza, e outra com Sônia Paixão Barros, estava ansioso pela chegada da grande festa final. O maestro Datan Coelho orquestrou com competência as minhas músicas e várias dos demais concorrentes. Ele sofreu nas minhas mãos em função da insistência com que desejava saber o resultado da comparação das minhas músicas com as dos demais concorrentes. Mas foi bastante profissional e fez o certo, não me dizendo nada.
O ginásio estava lotadíssimo e o ambiente era de alegria e confraternização. A tal ponto que as pessoas, cediam parte de suas mesas para acomodar amigos e conhecidos carentes de espaço. Um ritual precedeu o início da festa, com a leitura do nome das músicas classificadas, e de seus autores, sem indicação da colocação. A ordem só seria conhecida na medida em que fossem cantadas, sendo, portanto, a última delas a vencedora. Uma das minhas músicas, a que mais fazia fé, foi logo cantada, o que me desanimou. Já a outra não saía, não saía, até ao ponto de eu pensar que haviam esquecido dela ou a desclassificado.Tomei grande ânimo quando percebi que só faltavam duas músicas.
Nunca me amargurei com o fato de ter ficado em segundo lugar, o que, para mim, foi muito honroso, principalmente porque a ganhadora, Meio Mastro, é um primor de letra e música. De autoria de Chico Lessa e Tina Tirone foi gravada depois por Valeska e, mais recentemente, pelo próprio Chico. Só o fato de ter as músicas classificadas já me recompensava.
Vã Tentativa
A Silvinha já era amiga muito íntima e eu vivia indo ao seu apartamento para estar com ela e a sua patota. Não demorou muito tempo para ela perceber que eu era fanático por música e que adoraria ser cantor. (O FHC anda dizendo que também!). O seu segundo marido, com quem se casou nos Estados Unidos, era nada menos do que a maior e mais importante figura na área de produção e gravação musical naquela época.
Quando Aloísio de Oliveira montou a Elenco, segundo se dizia ajudado pelo seu próprio talento, mas também pelo bafejo de uma linda mulher muito influente no Governo, parecia que estava arrebatando toda a melhor música para a sua gravadora. Para ter destaque, quem quer que fosse, era imprescindível gravar na Elenco, usufruindo das primorosas orquestrações que o bom gosto do Aloísio cuidava de monitorar.
Foi obra de Silvinha, claro, um encontro meu com Aloísio no apartamento dela, dias depois de um carnaval. Ele não era expansivo com quem não conhecia e evitou qualquer gesto para me descontrair. Eu, com o violão de Silvia pronto, aguardando instruções e ele sentado na minha frente. Canta um samba, pediu ele. Eu atendi. Uma valsa. Embora um pouco rouco ainda do carnaval, justifiquei, mas senti que fui bem.
Eu tinha naquele momento uma preocupação e uma dúvida: a preocupação era a de me policiar para não tocar e cantar, como constantemente fazia, nenhuma das lindas músicas do Candinho, primeiro marido da Silvia, portanto, rival do dono da Elenco. Já a dúvida era se deveria ou não confessar a ele, de antemão, que a minha voz é inconfiável, volúvel e irregular, de tal forma que às vezes está boa e freqüentemente de ruim para péssima. Pior ainda era não saber por que e se havia jeito para consertar isso. Vejam que complicação para me tornar cantor: para gravar teria de ser na hora em que a voz quisesse e não eu ou a Gravadora, como de praxe. Portanto, também os músicos e estúdios que aguardassem pelo momento da voz. No caso de shows só poderiam ser aceitos sem data e hora marcados tendo, também, que esperar pela voz. Uma insensatez e imprevidência no mínimo, imaginar que poderia me tornar um cantor. O que me estimulava a insistir no ramo era a possibilidade de investigar e descobrir como a máfia americana consertou a voz de Frank Sinatra, que estava sumindo completamente no auge da sua carreira.
Este episódio eu soube lendo "O Poderoso Chefão", onde o cantor aparece com pseudônimo. Se ele conseguiu, por que eu não podia? Este era como que meu último cartucho a ser detonado. Preferencialmente com os médicos e sem a interferência da máfia. Como já tivéssemos alguns empecilhos suficientes, optei por me calar naquele momento sobre o problema da voz, adiando este tema para depois. Foram quatro músicas, e ele queria que eu ficasse um mês no Rio para gravar logo. Contornada a inconveniente impossibilidade de eu ficar no Rio, fizemos, com a interferência da Silvinha, um acordo; e ele aceitou as minhas ponderações de que tinha de estar sempre em Vitória. Mesmo eu não podendo ficar no Rio, ele sentenciou: "Vou lançar num LP você e, do outro lado, outro capixaba, a Nara Leão". Fiquei calado, claro. Mas, muito presunçoso, eu não conseguia avaliar se seria bom ou ruim pra mim aquela companhia no mesmo disco. Afinal, a voz que eu ouvira nas reuniões da bossa me parecia fraquinha, embora muito bonita, diferente e afinadíssima.
Ladeira Abaixo
Eu trabalhava para o Governo do Estado e por isso ia muito ao Rio para arrancar dinheiro do Governo Federal com autorizações já concedidas pelo Presidente Juscelino. Não raro precisava ficar semanas entre o Ministério da Fazenda e o Banco do Brasil, gestionando para a grana sair. Era um saco, mas em compensação me alegrava bastante o fato de permanecer seguidamente no olho do furacão da bossa.
Neste eixo, estava o Ministério da Agricultura, do qual Candinho, rival do Aloísio, era procurador. Logo depois de meu vitorioso encontro com Aloísio, avistei por acaso o Candinho saindo de seu Ministério, e exultante lhe contei que estava a um passo de gravar. Ele foi impiedoso: "Você é meu amigo ou do Aloísio? Eu também estou montando uma gravadora, a Relil, selo Relíquia". "Olha, ponderei, eu não tenho compromisso de exclusividade. Posso gravar com você também. Faremos um disco apenas de suas músicas, que gosto tanto de cantar", eu lhe disse.
Para aproveitar a empolgação, fomos direto à casa do Tom pedir-lhe para fazer as orquestrações.
Era um lindo fim de tarde ensolarada de verão, e ele estava sozinho, dedilhando o piano e tomando uísque numa xícara dessas de louça de botequim, usualmente para café. Candinho explicou o que queríamos sem fazer referência à minha expectativa em relação à Elenco. Tom agradeceu gentilmente, mas adiantou que ia naquela noite para Los Angeles, a fim de gravar com Frank Sinatra, cujo encontro pegava mal desmarcar, esclareceu com ligeiro ar de gozação.
Explicou que estava bebendo um pouco mais, atrás de conseguir coragem para enfrentar o avião. Havia muitos outros arranjadores a quem poderíamos recorrer, embora nenhum igual ao Tom. Ficamos ali trocando idéias sobre isso, quando a chegada do Aloísio de Oliveira causou um indisfarçável constrangimento em todo o ambiente. Tom, talvez para desanuviar, falou: "Aloísio, você já sabe que o Carlinhos vai gravar?" Aloísio assentiu com a cabeça, imaginando que se tratasse de sua gravadora Elenco, é claro. Ao que o maestro prosseguiu: "Na Relíquia do Candinho, Selo Relil, que ele está montando". Este vacilo me afastou definitivamente da possibilidade de ser um profissional do ramo. Percebi logo que a Nara Leão perdera o parceiro do disco. Apostei, então, todas as fichas nessa miragem que era a gravadora Relíquia.
Amarga Relíquia
Fomos direto à casa de Luizinho Eça, nossa segunda opção.
Esperamos, já de noite, ele voltar de uma pescaria de pampo, mas nossa visita não surtiu efeito porque ele também tinha compromissos. Depois de rodarmos, lembramo-nos de um ótimo arranjador, que tinha um famoso conjunto: Hugo Marota. Candinho passou-lhe, ao violão, como sempre de forma impecável, suas exuberantes melodias das quatro músicas que comporiam o compacto. Só que, apesar de minha insistência, ele nunca voltou lá na casa do Hugo para pegar as partituras e seguir fazendo o disco. Ainda liguei para ele seguidas vezes, e cada vez dava uma desculpa diferente. Na última, ele atendeu respondendo com uma voz enroladíssima: "AAAqui é da bolsa de Nova Iorque". E desligou. Tentei uma vez mais, simulando querer comprar ações. Ele respondeu que era engano.
Este episódio que me proporcionou o encontro casual com o grande amigo Candinho e alterou o meu destino musical, foi há uns 40 anos. Desde então, sofri pelo menos mais dois duros golpes com a morte de Silvinha e muito depois a de Maysa, cada qual no seu próprio acidente de carro... Há menos de dez anos, portanto trinta anos depois do episódio, atendi a um telefonema, à noite, e a pessoa me falou do outro lado da linha:
"Aqui é o Hugo Marota. Você se lembra? Vim a Vitória para lhe entregar as partituras, já que não consigo encontrar o Candinho".
O fantástico gozador não avaliava a extensão das repercussões de meu equívoco no momento de debutar na música. Mas pelo menos eu tentei, e como...
Passado todo esse tempo, já conformado com a idéia de que não entendo de música nem tampouco tenho competência para ser cantor, fico me perguntando curioso: será que se não tivesse acontecido o episódio da casa do Tom eu teria ido no vácuo da Nara, que virou a grande musa da bossa? E se tivesse ocorrido a gravação na Elenco, teria sido melhor ou pior para mim? Só me resta uma certeza: a de que seria muito diferente. De resto, concluí, tardiamente, que a minha carreira musical não passou mesmo de uma miragem natimorta chamada Relíquia, selo Relil.
Como vocês percebem o que era assunto para ser uma despretensiosa crônica, produzida apenas para desmistificar suposições, virou um MEGA DESABAFO. Mas, afinal, quando nada, serve para eu formular como que um generalizado pedido formal de desculpas e despachar um aviso para alertar principalmente aos incautos que, apesar dessas explicações, ainda pensem equivocadamente que entendo de música.
Fonte: Vitória de Todos os Ritmos, coleção Escritos de Vitória, Nº 19, ano 2000
Autor: Carlos Lindenberg Filho (Cariê)
Compilação: Walter de Aguiar Filho, janeiro/2015
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