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Peroás e Caramurus – Por Areobaldo Lellis Horta

Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos guarda a venerada imagem de São Benedito, que provocou a histórica luta entre Peroás e Caramurus Cartão Postal de 1906

Muito se tem falado e escrito sobre "Peroás" e "Caramurus" e, à proporção que os tempos passam, o assunto se impõe a gerações que surgem, como uma das mais ruidosas tradições.

Se os Caramurus desapareceram, em consequência de um incidente havido entre a irmandade de São Benedito de São Francisco e um dos nossos bispos, os Peroás resistem à obra demolidora da civilização e em cujo benefício as tradições, nas várias regiões do país, vão-se extinguindo, para ceder lugar a hábitos novos, como elementos do progresso.

Sabe toda a gente que "Peroás" e "Caramurus" constituíram, por muito tempo, dois grandes partidos populares, de caráter eminentemente religioso e social, em que se dividiam os habitantes de Vitória. Era difícil, senão impossível, encontrar-se um apolítico, que visse com indiferença a emulação e as lutas entusiásticas entre ambas as organizações partidárias. Parece que só mesmo os sacerdotes se mantinham equidistantes delas, por dever do oficio. Talvez algum fosse "Peroá", no íntimo de cada qual deles, sem que pudessem explodir em manifestações positivas, francas, definidoras de uma atitude iniludível.

Movimento de ardorosa fé religiosa, que se desenvolvia em torno do poder miraculoso de São Benedito, o taumaturgo da Sicília, empolgando todas as almas, o movimento dividiu a pequenina Vitória em duas porções distintas, no tocante a esses partidos: da Capixaba — principal reduto — até o Largo da Conceição, atual Praça Costa Pereira, e mais adjacentes, residia quem era "peroá", em sua quase totalidade; da parte alta da cidade à Avenida Schmidt, morava o grosso dos "caramurus".

Uma pergunta se impõe, toda vez que se conversa sobre o aparecimento dos dois grandes partidos: - Qual teria sido sua origem legítima?

Nasceram eles, em consequência de haver sido furtada do Convento de São Francisco a imagem do preto milagroso.

- Como se teria dado o desaparecimento?

Segundo o boato, que se avolumou na opinião pública, com força de convicção, havia no Convento duas imagens do santo. Uma, no altar, à nave esquerda do templo. Outra, desprezada, a um canto do refeitório, do Convento, servindo de cabide em que se depositavam, ora chapéus, ora toalhas.

Havia ali, como serviçal, um crioulo de nome Antônio que, mal satisfeito com o trato dispensado à imagem em abandono, em combinação com a provedoria da irmandade de N.S. do Rosário, retirou-a, certa noite, do refeitório para levá-la ao velho templo levantado no morro da Vigia - O Rosário.

A imagem teria ido para a Corte, hoje Capital Federal, a fim de reencarnar, isto é, para renovar-se, só se dando início ao culto após seu regresso. Foi ela colocada em altar, à nave direita do templo, sustendo no braço a imagem do Menino Jesus.

Essa lenda que se formou em torno do desaparecimento da imagem, e que mais se acentuou, com vírus de verdade, quando o crioulo Antônio começou a apresentar anquilose em um dos braços. Passou ele a ser, então, conhecido pela alcunha de “Antônio braço grosso", atribuindo-se sua doença a um castigo pelo ato pecaminoso que praticara.

Semelhante historia fixou-se na credulidade popular da época, sendo que, entre pescadores do meu tempo de menino, ouvi várias vezes, este relato.

Porém, a verdade é outra, sendo possível que o preto Antônio fosse, de fato, o portador da imagem, não por iniciativa própria, mas em obediência à determinação dos verdadeiros autores da retirada do santo daquele Convento. Assim, não era exato existissem duas imagens no templo dos franciscanos, porém uma a do altar da igreja, objeto de culto.

Agora, o caso, em sua veracidade.

Desde 1822, ano da nossa independência, vinham sendo celebradas, no Convento de São Francisco, festividades em comemoração ao nascimento de Jesus, realizando-se ali, a 27 de dezembro, a festa de São Benedito. Como se vê, o culto de São Benedito foi iniciado naquele Convento, sendo sua irmandade constituída quase exclusivamente de homens de cor.

Chegara o ano de 1832 e os fiéis de São Benedito se preparavam para levar ao melhor êxito as festas de seu padroeiro, após as comemorações do natal. O dia 27 de dezembro daquele ano amanhecera chuvoso: a princípio uma chuva que os capixabas ainda não costumam chamar de "criadeira" como se a natureza lançasse de tal processo, para irrigar a vegetação nascente, ou em crescimento.

Porém, para a tarde, as coisas mudaram, caindo a água em bátegas. A missa solene, apesar da chuva miúda, se realizara com a pompa habitual, cheia a nave da igreja de fiéis. Todavia, os aguaceiros da tarde, repetidos, tendiam a impossibilitar o taumaturgo de percorrer as ruas da cidade para receber as homenagens de seus devotos.

Desde cedo, a imagem havia sido retirada do altar e colocada na charola, ricamente adornada, para o cortejo triunfal. À hora costumeira, cheia a igreja e o adro de pessoas, presentes as demais corporações religiosas, que deviam tomar parte na procissão, Frei Manuel de Santa Úrsula, ante a insistência da chuva, determinou não saísse o préstito religioso, a fim de não expor a imagem, nem os que iam tomar parte no cortejo, inclusive o público que o acompanharia, à inclemência do tempo. Frei Manuel era o guardião do Convento, com autoridade bastante para agir daquela maneira. Porém, a fé, que remove montanhas, fez valer sua força no coração de grande número de componentes da irmandade, levando-os à se oporem às determinações do frade.

"São Benedito, - asseveravam eles - é milagroso, e fará cessar os aguaceiros, logo se organize a procissão".

O guardião, porém, ficou intransigente em seu ponto de vista. Alguns membros da irmandade apoiaram a suas ponderações. Na discussão, alguns ânimos se exaltaram, quase degenerando em conflito, enquanto lá fora, a chuva caia em aguaceiros, lavando as ruas e de enxurrada levando as folhas de mangueira que as atapetavam para sobre elas passar o andor do milagroso São Benedito. As girándolas, que deviam espoucar pelas ruas do Fogo, General Osório, Porto dos Padres e demais, por onde a procissão passaria, esperavam o repicar dos sinos do Convento, anunciador da saída do préstito, para serem pregadas nos paus, já fincados ao meio da rua.

Afinal, a palavra do guardião foi respeitada, não saindo a procissão.

Era demais, para os que possuíam fé no poder miraculoso do santo. O guardião, diante da rebeldia havida, dissolveu a irmandade, para organizar outra Mesa Administrativa, com os elementos que o apoiaram. Em face disto, os rebelados houveram por bem retirar do Convento a imagem de São Benedito, às caladas da noite, levando-a para a igreja de Nossa Senhora do Rosário. A coisa rebentou, no dia imediato, com as proporções naturais de um escândalo a encher as conversas dos dias seguintes, apelando-se mesmo para as autoridades policiais, dada a forma deselegante que o santo foi retirado do Convento. Porém, nada mais foi possível fazer-se para a sua volta ao São Francisco.

Tendo à frente os pretos que organizavam a transferência do Santo para o Rosário, foi então fundada a irmandade de São Benedito do Rosário, aliciando-se para ela todos os moradores do bairro da Capixaba e adjacências, passando o milagroso siciliano a ser chamado, entre os seus devotos, pelo nome de "Bino", com que ainda é popularmente designado entre nós.

Nessa espécie de aventura do rapto do Santo pelos seus crentes, que não se conformaram com a atitude de frei Manuel, na tarde de 27 de dezembro de 1832, é possível que se possa incluir Antônio "braço grosso", pois bem podia ter sido ele quem conduziu a imagem para o Rosário. Antônio, de quem ainda hoje se fala entre os peroás da velha guarda, foi, naturalmente, acometido de reumatismo deformante que, anquilosando-lhe a articulação do cotovelo, a deformou, dando o volume que lhe valeu o apelido.

Ao negociante e armador dessa Praça José Ribeiro Coelho, de nacionalidade portuguesa, deveu ao Convento de São Francisco a nova imagem de São Benedito com que puderam ser restabelecidas as antigas festividades, que ali se realizavam desde o ano de nossa emancipação política.

Havia, entretanto, conveniências em que não coincidissem no mesmo dia, dado que, sendo as antigas festividades do São Francisco efetuadas a 27 de dezembro, com o dia 26 consagrado ao Menino Jesus, as do Rosário continuaram com a mesma data para sua realização.

Com a presença das duas imagens uma em cada igreja e com o seu culto e seus devotos distintos, estabelecendo-se verdadeira emulação entre ambas as vocações, tanto no que diz com o brilho das festas como na força miraculosa de cada qual delas, organizaram-se, então, dois partidos — "Peroás" e "Caramurus" — os primeiros escolhendo a cor azul para seu símbolo, os segundo, a cor verde.

Entre os Caramurus, a cor foi sempre conservada na murça das opas da irmandade, sendo da mesma cor o guião, o que não se dava com os Peroás. O guião da irmandade do Bino foi sempre de um amarelo de ouro, com a murça de suas opas em cor arroxeada.

O fato de não se realizarem, nos mesmos dias de dezembro, as festividades em ambas as igrejas só pode ser explicada por um acordo ou convênio, estabelecido sob os auspícios do vigário da cidade, de modo que fosse conservada a divisão do ano religioso, em referência àquelas celebrações, em dois períodos: o dos Caramurus, de primeiro de janeiro a 30 de junho; o dos Peroás, de primeiro de julho a 31 de dezembro. Essa convenção foi sistematicamente mantida até o desaparecimento dos Caramurus.

 

 

Fonte: A Vitória do meu tempo – Academia Espírito-Santense de Letras, Secretaria Municipal de Cultura, 2007 – Vitória/ES
Autor: Areobaldo Lellis Horta
Organização e revisão: Francisco Aurélio Ribeiro
Compilação: Walter de Aguiar Filho/ maio/2020

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