Rio Doce - Os viajantes
De todas as visitas feitas à região do Rio Doce no século XIX, nenhuma foi mais surpreendente e inusitada do que a do imperador à remota e perdida Linhares, até então a única vila banhada pelas águas do Rio Doce. Fácil imaginar o alvoroço que presença tão ilustre causou.
A última semana de janeiro de 1860 foi de excitação e euforia. A população de cerca de 900 almas mergulhou em faina diuturna, sem fadiga e sem cansaços. Era um varre-varre de ruas e calçadas; senhoras empenhadas na confecção de guirlandas de cetim, às voltas com fitas e mais fitas, retroses, sedas e morins; senhores ocupados com tocheiros, luminárias, tábuas, pregos de Paris e os retoques de pintura nas fachadas das casas. A capela recebeu até mesmo um dossel de madeira com cobertura adamascada. Toda essa faina para receber D. Pedro II que chegou a Linhares numa noite de sexta-feira, 3 de fevereiro de 1860.
Em sua estada de dois dias, o imperador fez um demorado passeio pela Lagoa de Juparanã, enaltecida por Maximiliano e Saint-Hilaire, e não se conteve ao contemplar o grande rio: "Nenhum mais belo." Descontraído, fez pessoalmente um croquis da vila e do rio e retratou os selvagens que vieram visitá-lo. Quatro horas depois de descer o Rio Doce num escaler de oito remos e vela, embarcou no vapor Pirajá que o aguardava na barra. Até hoje ninguém sabe exatamente o que D. Pedro II foi fazer em Linhares, além de buscar inspiração para alguns desenhos de um dedicado amador das artes plásticas.
Razões de sobra, entretanto, tiveram outros viajantes, cientistas e artistas, para aportar à região do Rio Doce no decorrer do século XIX. Se os pioneiros concentraram-se nas áreas mais povoadas da costa brasileira e na Amazônia, depois da chegada de D. João VI ao Brasil as missões científicas e culturais tornaram-se mais abrangentes e chegaram ao Rio Doce. Como a região central da bacia era considerada "área proibida", inacessível e, ainda, dominada pelos beligerantes botocudos, os viajantes circunscreveram suas expedições às proximidades da foz e às cabeceiras do rio, onde prosperava a mineração, embora já sem o sucesso do século XVIII.
Em 1810, chegou ao Brasil o militar, geólogo e engenheiro de minas alemão Wilhelm Ludwig von Eschwege, estabelecendo-se na região das cabeceiras do Rio Doce, que conheceu melhor do que ninguém. Enquanto permaneceu no País, acompanhou e orientou todos os visitantes e missões que estiveram em Minas, tendo trabalhado com Georg Freeyeiss e Fredrich Sellow. Geólogo notável, ele deixou uma obra das mais completas e informativas, além de preciosos trabalhos de cartografia. Implantou a primeira usina de ferro a operar no Brasil e teve importante atuação na mineração brasileira, chegando a ocupar os principais cargos nessa área em Minas Gerais. Em 1831, depois de 21 anos de produtivo trabalho nas regiões das Gerais, o barão von Eschwege retornou a Portugal.
O primeiro cientista de renome a visitar a foz do Rio Doce foi o naturalista e etnólogo alemão Maximiliano Alexander Philip, príncipe de Wied-Neuwied, que subiu até Linhares em dezembro de 1815. Suas minuciosas observações foram registradas no livro Viagem ao Brasil (1820-1821), uma obra de extrema importância na qual narra impressões de viagem em estilo atraente, sem deixar de ser absolutamente científico. Dos nomes da fauna e flora à súmula das características necessárias ao futuro reconhecimento de espécies desconhecidas. Ao se referir ao Rio Doce, ele confessa: "... a estada no Rio Doce foi, sem dúvida, uma das etapas mais interessantes das minhas viagens pelo Brasil porque, à margem deste rio, de cenários tão soberbos e tão notável do ponto de vista das riquezas naturais, tem o naturalista muito com que se ocupar e experimentar as mais variadas e agradáveis emoções".
Maximiliano encantou-se com as araras e ficou impressionado com as histórias que ouviu sobre os botocudos, “a mais formidável de todas as feras e o terror destas matas impenetráveis", que ele qualificou como antropófagos. Registrou também a presença do peixe-boi nas águas do Rio Doce e de felinos de grande porte, como a onça-preta, além de assinalar que "não é fácil encontrarem-se paisagens mais deleitosas do que, por exemplo, a da Lagoa de Juparanã".
Já o naturalista e botânico francês Augustin François César Saint-Hilaire, que esteve no Brasil entre 1816 e 1822, fez duas viagens ao Rio Doce. Na primeira, realizada em fins de 1816 e início de 1817, percorreu toda a área de mineração em Minas Gerais. No final de 1818 visitou também o baixo Rio Doce, mas não conseguiu realizar seu propósito de subir o rio e teve de retornar a Linhares, à qual faz referências nada elogiosas. A certa altura de seus registros, o francês diz que "desesperando de povoar Linhares, a administração perdoou desertores, sob a condição de se fixarem no novo lugarejo; alguns aventureiros, mulheres de má vida e índios que fugiam às perseguições do Governador juntaram-se neste núcleo e eis o que forma hoje a população de Linhares". Com acentuada rudeza descreve as condições de insalubridade das margens do rio com a seguinte explicação: “As espessas florestas que sombreiam suas margens impedem a ação do sol; a evaporação das águas transbordadas se efetua lentamente, continuando de um ano para o outro, e em qualquer estação é perigoso descer ou subir o rio."
Maximiliano encantou-se com as araras e ficou impressionado com as histórias que ouviu sobre os botocudos, "a mais formidável de todas as feras e o terror dessas A viagem anterior foi mais tranqüila e Saint-Hilaire pôde percorrer a região da mineração palmo a palmo. Na zona do Rio Doce visitou Ouro Preto, Mariana, Catas Altas, Timbopeba, Caraça, Santa Bárbara, Piracicaba, Itabira, Morro do Pilar e outras localidades que descreveu com minúcias, abordando costumes e tradições locais. Em 1817, passou oito dias em Itabira, quando a produção de ouro ainda estava em plena atividade nas três lavras principais: Morro de Itabira (Cauê), Conceição e Sant'Ana. Descreveu com riqueza de detalhes locais da cidade cujos nomes persistem até hoje, como Conceição, Jirau, Periquito, Água Santa, Ribeirão da Penha, Rio do Peixe, Piçarrão, referindo-se ainda a uma fábrica de espingardas existente no valão da Penha e às forjas do Jirau que já produziram bom ferro. Conta ainda que "em 1814 gelou por oito dias seguidos nos lugares elevados, de tal forma que a água ficou coberta por uma camada de gelo da espessura de um dedo e que não derretia nem ao sol do dia...".
Os cientistas alemães Cari Friedrich Philipp von Martius, médico e botânico, e Johan Baptiste von Spix, zoólogo e naturalista, também estiveram na região do Rio Doce. Integrantes da missão austríaca que chegou ao Brasil em 1816, os dois cientistas percorreram as partes altas da bacia do Rio Doce, segundo seu relato formado "pela união do Rio Piranga com o Ribeirão do Carmo". De fevereiro a junho de 1818 visitaram as minerações de ouro, os arredores de Vila Rica e aldeias de índios coroados, cujos costumes registraram minuciosamente. Ao percorrerem a região do Caraça, visitaram o Hospício de Nossa Senhora Mãe dos Homens, fundado em 1771, anotando que "nenhum lugar da terra poderá melhor livrar a alma das inclinações e preocupações mundanas do que esta habitação solitária de piedosa contemplação". A Forja de Prata (Fábrica Patriótica) e a Fábrica Real de Ferro, em Morro do Pilar, também mereceram descrições pormenorizadas.
No lado norte da bacia, na Comarca do Serro (Vila do Príncipe), novamente tiveram contato com os índios, dessa vez com os malalis. Sobre os botocudos, registraram: "Os mais irrequietos e perigosos índios de Minas são os antropófagos botocudos que ocupam as margens do baixo Rio Doce". Com verdadeiro espírito científico, Spix e Martius coletaram amostras, descreveram e desenharam, com inegável talento, nossa flora e fauna, referindo-se com carinho ao nosso povo: "... não sem emoção profunda, deixamos a romântica região e os habitantes amigos, hospitaleiros, da nossa inesquecível Vila Rica...".
Muitos outros visitantes deixaram livros e ilustrações com informações preciosas sobre a bacia do Rio Doce. Entre eles destacam-se o mineralogista e botânico Johan Emmanoel Phol, outro membro da missão austríaca que lá esteve em 1818; o médico e naturalista Georg Heinrich von Langsdorff, em 1825; o naturalista Louis Agassiz e o geólogo Frederick Hartt, em missão financiada pelo americano Thayer; o religioso e desenhista inglês Robert Walsh, em 1828. Já o botânico e zoólogo suíço Friedrich Sellow, depois de trabalhar com Neuwied, Langsdorff e Eschwege, resolveu permanecer no Brasil até 1831, quando morreu tragicamente na Cachoeira Escura, no Rio Doce.
O pintor francês Auguste François Biard, que esteve no Brasil de 1858 a 1860, publicou em Paris, em 1862, a obra Deux années au Brésil, cujos capítulos II e III referem-se à viagem feita à Província do Espírito Santo, entre 2 de novembro de 1858 e 12 de maio de 1859. Pintor, cientista e aventureiro mais do que escritor ou memorialista, em seu relato Biard mistura o pitoresco com um senso de humor e fina ironia, como quando descreve a região de Santa Cruz, onde permaneceu mais tempo convivendo com índios, animais e florestas.
Nunca será demais ressaltar, em todo o riquíssimo acervo deixado por esses viajantes, o notável trabalho dos ilustradores, desenhistas de grande talento como Rugendas, Florence, Taunay, Thomas Ender, Debret, Édouard Riou e outros.
Entre as viagens da realeza à bacia do Rio Doce, além da mais inusitada, a de D. Pedro II a Linhares, é preciso assinalar também a do próprio Pedro II e Pedro I à região de Ouro Preto, e a da princesa alemã Tereza Carlota da Baviera, já em 1888, que subiu o Rio Doce até o Baixo Guandu.
Fonte: O Vale do Rio Doce, CVRD, 2002
Compilação: Walter de Aguiar Filho, setembro/2016
Concepção, pesquisa e coordenação/Conaption, research and coorelination
Romeu do Nascimento Teixeira
Texto/text
Jota. Dangelo
Pesquisa bibliográfica e iconográfica./ Bibliographical and iconographic research
Henrique Lobo
Edgar. N. Teixeira
Miriam Prado T. de Oliveira
Elias Botelho Coelho Dos Santos
Produção, projeto gráfico e diagramação/Proarzection, graphic desegn and layout
Ampersand Comunicação Gráfica
Reproduções forográficas/ Photogrertphic reproductions
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Aquarelas/Watercolors
Nona Salmen
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Revisão/Revised by
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