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Setor Informal (1985): O mata-borrão da Economia

Participação aparente uma contingência - Foto: Jales Júnior

Na América Latina já se tem uma larga tradição em termos de estudos e pesquisas sobre o problema da marginalidade, não sendo novas, portanto, as questões que lhes são pertinentes, como é o caso do setor informal.

A expansão do setor informal nos últimos dez anos não é gratuita. Ela é decorrência das transformações econômicas e sociais que vêm se processando. A magnitude e a dinâmica assumidas, desde então, por este setor, é a expressão do exacerbamento das contradições do capitalismo dependente, cujo setor moderno se baseia na maturação de processos industriais oriundos dos países centrais, utilitários de altos níveis tecnológicos que, por sua vez, também não correspondem a processos evolutivos latino-americanos.

Na medida em que o setor moderno vê reduzida a sua já precária capacidade de geração de ocupações adequadas, aliada às quebras de empresas e demissões, como é freqüente ocorrer nestas ocasiões, o setor informal, que já funciona como um mata-borrão dentro da economia, absorvendo as parcelas de mão-de-obra não utilizadas pelo setor formal, passa a ser o amortizador do impacto da crise.

Este papel, que o setor informal desempenha é muito lógico, visto sua estreita relação com o resto da economia. A forma assumida pelo desenvolvimento industrial na América Latina gestou e mantém todo este quadro de ambigüidades concernentes às formas produtivas e de acumulação.

Dada a natural dificuldade de expansão das atividades do setor informal através dos canais econômicos e da precariedade dos ganhos dos que delas se ocupam, é importante que se procure entender o como e o porquê da expansão deste setor, verificadas nesta última década.

Ali, o que se tem observado é um aumento do nível global dos ganhos gerados pelas atividades informais, aumento este que, no entanto, não se reflete positivamente sobre os ganhos individuais, ou seja, a nível per capita o resultado produzido é inverso. Os trabalhadores informais hoje, mais do que ontem, necessitam prolongar sua jornada de trabalho para poder manter o mesmo nível de ganhos. Isto significa uma perda considerável por parte dos trabalhadores.

Se não há uma elevação dos ganhos individuais funcionando como atrativo no setor informal, que mecanismos induzem a sua expansão?

Ora, esta é conseqüência direta da expansão do excedente estrutural da mão-de-obra.

A afluência massiva de pessoas para o setor informal está gerando sérios problemas referentes à própria sobrevivência de uma parcela considerável da população, dada a inelasticidade da capacidade de absorção da mão-de-obra deste setor.

Em conseqüência, as pressões originadas são muito grandes, não encontrando uma válvula de escape, uma via de saída para as tensões geradas pois, aquele setor é, na verdade o último reduto a que recorrem todos os que não encontram trabalho no setor formal.

A crise, portanto, veio agonizar uma situação já problemática. Se antes este setor atuava em precárias condições, a partir da crise se registra um desmantelamento da "ordem estabelecida", ou seja, entra-se em um período crítico, até que uma nova ordem venha a se estabelecer. Assim, a crise do sistema é a crise do setor informal desde que o informal é parte inseparável do próprio sistema.

A partir do momento em que a crise se instalou, os países centrais passaram a atuar de forma a transladar os resíduos negativos da mesma para os países periféricos, conseguindo amortecer em suas próprias economias, a maior parte daqueles efeitos.  Da mesma forma, nos países periféricos, o setor moderno está jogando para o setor mais atrasado, o informal e aqueles extratos débeis da economia, os conseqüentes resultados negativos. Este setor, entretanto, não tem flexibilidade suficiente para absorvê-los e não tem, por outro lado, a quem repassá-los, o que leva a um recrudescimento de velhas questões econômicas e sociais. Estas, mais visíveis e contundentes, ficam impossíveis de serem acobertadas.

É nesse momento que o Estado passa a se preocupar com as populações marginalizadas e a intervir sistematicamente nas áreas de baixa renda.

Inicialmente a atuação se dá através de projetos bem específicos e pontuais, geralmente pela prestação de serviços básicos e obras de infra-estrutura, um tanto desconectados entre si em função dos movimentos reivindicativos das populações.

À medida em que as populações se conscientizam e se organizam as reivindicações assumem um caráter mais político, dando mais peso aos movimentos que, além da água e da luz, passam a exigir uma série de outros benefícios bem como a sua participação na seleção das prioridades a serem eleitas, na localização das mesmas e o acompanhamento dos fluxos de recursos destinados aqueles projetos e àquelas áreas específicas, entre outras posições assumidas pela população.

A partir deste momento o poder público assume uma postura mais agressiva, no sentido de reduzir as tensões sociais. A via de acesso é o conhecimento da realidade, passando, então, a financiar estudos e pesquisas e, posteriormente, a desenvolver, a nível de planejamento técnico, uma série de programas destinados àquelas áreas.

Nossa experiência de trabalho tem demonstrado que a maturação dos processos sociais em curso são pesquisados, analisados, dissecados e revestidos com uma linguagem acadêmica para fundamentar o discurso do poder estabelecido, só fazendo sentido dentro do sistema, por servir exclusivamente à sua própria manutenção. Longe de pretender transformações, o planejamento técnico, traduzido em programas econômicos e sociais destinados às áreas de baixa renda, tem como objetivo o entendimento da realidade para poder manipular as forças sociais em movimento, canalizando-as e conduzindo as ações populares para o âmbito do seu controle, solapando, desta forma, as manifestações mais genuínas da sociedade e que poderiam endereçar seus desejos e anseios para caminhos alternativos e mais igualitários, porque mais abrangentes.

As ações governamentais, ao repassarem estes benefícios, se revestem de uma aura paternalista, filtrando, perante as populações alvo, uma imagem distorcida da realidade, induzindo-as a acreditar que elas não têm direito a estes benefícios e que, em contrapartida, não é um dever do poder público fornecê-Ios.

As populações, por seu turno, têm assumido posturas mais críticas e radicais. Como resposta a este planejamento técnico (autoritário) e aos projetos implantados, há toda uma rejeição por parte de muitas comunidades, chegando ao ponto de, algumas vezes, não se utilizarem dos equipamentos comunitários instalados à sua revelia.

Após inúmeras tentativas e uma seqüência de fracassos retoma-se a questão, desde o ponto de vista de um planejamento participativo.

Esta tentativa nos coloca numa situação de alerta pois já não é possível uma defesa de nossa parte, enquanto técnicos do setor público, exercendo atividades de planejamento e executando os referidos programas, baseados na ingenuidade. É necessário que sejamos críticos quanto ao nosso envolvimento, à nossa participação e conivência.

Conhecemos a natureza intervencionista dos atos do Governo (tanto a nível Federal, Estadual, como Municipal) nas áreas de baixa renda e sabemos que os programas realizados são, quando muito, meramente paliativos, não conduzindo a nenhuma solução substantiva dos problemas daquelas áreas (e respectivas populações), mesmo porque não é uma atuação direcionada para a manifestação de um fenômeno que vai alterá-lo ou eliminá-lo.

Com toda certeza esta nova tentativa de atuação envolvendo as populações em um fictício planejamento participativo deixa margem a uma série de questões. Não é mais possível assumir uma postura esquiva, de meros espectadores por um lado e, por outro, de agentes executores, cedendo a uma situação de ambigüidade, tentando anular o vínculo com o nosso trabalho e que vem a expressar o compromisso social, onde todos somos agentes da História. Não existe, portanto, isenção de nossa parte. A nossa atuação vai repercutir sobre esta realidade de qualquer forma. Isto significa que, tanto como meros tarefeiros ou como agentes sociais conscientes, nossa atuação é sempre política, tendo um peso constante, seja positivo ou negativo. Não querer assumir um compromisso com a sociedade nos conduz a um comprometimento maior, pois nos colocamos como agentes reprodutores do sistema. Esta é a função do “tarefeiro” que acredita, erroneamente, estar livre do peso de uma participação efetiva e comprometedora.

Por esta razão queremos entender o que vem a ser um planejamento participativo, quando participar se limita a poder dizer sim ou não aquilo que já está antecipadamente planejado e programado pelo Estado: em creches e uma praça em vez de duas praças uma creche.

Isto não é planejar e muito menos participar. É avalizar as realizações do poder público. Significa que a população passou a endossar os atos do Estado, reduzindo assim a sua própria capacidade de luta, porque soma os seus interesses os interesses do Estado. E a este reduz a participação popular a situações específicas dadas como permissíveis. O ato de permitir desvirtua o caráter político da participação popular no jogo da luta de classes.

O Estado, por seu turno, só permite "participação" popular naquelas instâncias que não venham a comprometer sua própria estabilidade. O questionamento possível, sempre direcionado para as atividades relativas à prestação de serviços por parte do setor público: luz, água, esgoto, calçamento e demais equipamentos comunitários. Os aspectos fundamentais da atuação do Estado são simplesmente esquecidos, como por exemplo, o papel de agente que garante a reprodução ampliada do capital.

O voltar-se para os problemas de pobreza absoluta de grandes parcelas da população e, principalmente a investida que se tem notado nos últimos anos para o que se convencionou denominar de setor informal, não passa de mistificação do próprio papel assumido pelo Estado. O setor informal é conseqüência direta do capitalismo e a sua magnitude decorre da forma dependente com que este capitalismo se desenvolveu e das funções assumidas por ele, dentro do Brasil, como parte integrante do cenário internacional, tendo o Estado como seu instrumento legal.

Qualquer tentativa de "melhoria" de condições de vida daqueles que sobrevivem do setor informal e qualquer ação para “beneficiar" o setor informal, não irá além disso, ou seja, vai simplesmente permitir a existência do setor informal com certa formalidade. O que não implicará na redução e muito menos, na eliminação do mesmo (que só seria possível com a eliminação do próprio sistema).

A pobreza, portanto, continuará a existir e a se reproduzir da mesma forma, só que agora, com o conhecimento oficial e o consentimento do Estado, enquadrado nas normas burocráticas e tratado via planejamento participativo e, assim, todos viverão felizes para sempre.

 

Fonte: Revista Fundação Jones dos Santos Neves ANO IV, nº 1 – Jan/Mar de 1985, Vitória – Espírito Santo
Autora: Carmem Edy Loss Casotti - Economista – Pós-Graduação em Sociologia do Desenvolvimento - Funcionária da Coordenação Estadual do Planejamento do Estado do Espírito Santo.
Compilação: Walter de Aguiar Filho, julho/2017

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