Sobre Paulo Torre, uma semana depois de sua morte
Não tive a sorte de conviver com Paulo Torre por muito tempo. Vinte anos mais novo do que ele, só o conheci pessoalmente quando entrei para A Gazeta, em fevereiro de 1992, levado por João Torezani e Rubinho Gomes. Soube mais tarde que Rubinho era um de seus maiores amigos. Paulo e eu não tivemos nem quatro anos de convivência, mas foi o suficiente para aprender a admirá-lo. O contato era diário, às vezes até tarde da noite.
Como observaram seus amigos mais próximos nas matérias de repercussão da sua morte, Paulo era tímido, reservado. Resistia a entregar-se à amizade, inicialmente. Era seletivo. Acredito ter furado o bloqueio. Havia alguma intimidade entre a gente. De vez em quando, tomávamos uma na Conceição, no Bordel, em festas. Falávamos sobre filmes, livros, discos, mulheres, todo tipo de conversa fiada. Ele me contava histórias de sua experiência como repórter de O Globo na Argentina, no Rio, em Brasília, da repressão militar, de seus filmes, de seus projetos literários. Sempre gostou de escrever.
Nestes últimos dias (*) os mais chegados já disseram muito da personalidade de Paulo: debochado, bem-humorado, inteligência acima da média, bom de copo e de papo. Na relação profissional, o que mais me marcava era a sua capacidade de discernimento, a clareza de raciocínio para estabelecer o que havia de relevante para ser publicado, ou para orientar os próximos passos de uma apuração.
Às vezes eu me embolava para definir a angulação de uma matéria, ou para prosseguir numa apuração, e pedia socorro ao chefe. Ele destrinchava o quebra-cabeça, dava sugestões ou autorizava: "Isso dá para publicar. Essa questão é outra matéria, merece mais apuração." Tinha um quê de autoritário. Não digo isso a título de elogio ou crítica. Era um atributo. Emitia opiniões como se fossem a verdade suprema.
Nosso último encontro foi na quarta-feira, dia 11 de outubro de 1995, seis dias antes de sua morte, um dia depois da de Amylton de Almeida, que o abalou muito. Falávamos da edição de uma matéria sobre um polêmico acordo que permitiu a utilização de depósitos judiciais pelo governo do Estado, sem a autorização das partes contrárias, baseada exclusivamente num acordo entre os chefes do Executivo e do Judiciário. Me deixa agoniado lembrar que eu tinha um monte de coisas para falar com ele na segunda-feira, dia 16, sobre essa reportagem, e sobre o curso que fizemos no Porto do Sol com Beth Rodrigues. Às segundas, também, eu ouvia sua avaliação sobre a edição das páginas de Política, que eu fechava aos domingos. Mas ele acabou não aparecendo na segunda, porque se sentira mal. Morreu na madrugada de terça.
Não me resta o conforto de acreditar que um dia o verei novamente. Não confio muito na existência de Deus, muito menos na de outra vida. O que fica mesmo é o que vivemos juntos aqui neste mundo, que penso ser o único que conheceremos. Serão invejáveis, os que têm fé cega?
Vou me lembrar de sua risada, a voz ligeiramente anasalada e às vezes arrastada, de sua mania de chegar o queixo para a frente quando conversava, ou de empurrar os dentes tortos com a ponta da língua, os óculos na ponta do nariz, a boca entreaberta.
Sinto não ter tido tempo para estreitar a amizade, que só se consolida com os anos. Sinto falta do profissional de brilho privilegiado. A morte é uma porrada de surpresa. Deixa atordoado. Uma sensação de rasteira. Recebi a notícia de maneira impessoal, fria: pela TV. Acabara de acordar e assistia ao Bom Dia, quando ouvi o Abdo Chequer dizer que ele havia morrido, "uma semana depois de Amylton". Ninguém havia ainda assimilado o primeiro golpe.
Larguei o café, vesti uma calça e fui direto para o cemitério. Tonto e com os olhos turvos, troquei de velório em Santo Antônio. Chorei de soluço, como um menino em desamparo, ao lado do corpo de D. Dirce Prado, pensando em Paulo. Nunca a tinha visto antes. Ela também seria sepultada naquele dia, poucas horas antes de Paulo. Os familiares devem ter ficado intrigados com aquele rapaz desconhecido, aos prantos entre estranhos. Terezinha Calixte viu tudo, correu e contou para Maura Miranda. Dois minutos depois todos sabiam. Riso inevitável, mesmo naquele momento. É preciso uma dose de humor negro para achar graça na situação. Creio que Paulo acharia.
(*) Nota: este texto foi escrito originalmente para a edição de outubro de 1995 do Caderno 3, publicação interna da Rede Gazeta de Comunicações – sofreu pequenas alterações. Paulo Eduardo Torre morreu na madrugada do dia 17 de outubro de 1995, uma terça-feira, aos 48 anos. Ele era diretor de Redação do jornal A Gazeta.
Fonte: ESCRITOS DE VITÓRIA — Volume 17 - Imprensa - Uma publicação da Secretaria de Cultura e Turismo da Prefeitura Municipal de Vitória-ES, 1996.
Prefeito Municipal - Paulo Hartung
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Editoração Eletrônica - Edson Maltez Heringer
Impressão - Gráfica e Encadernadora Sodré
Compilação: Walter de Aguiar Filho, janeiro/2018
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