Terra natal: cidade presépio – Por Ana Maria Machado
Menina ainda, leitora havia pouco tempo, ia descobrindo que cada palavra era capaz de me transportar por viagens, insuspeitadas. Às voltas com essa decifração fascinante e misteriosa, enfrentei uma vez na escola um formulário a preencher. Nome, endereço, bairro, essas coisas. Carioca, moradora do Rio no bairro de Santa Teresa, fui completando as lacunas com capricho. Aniversário: 24 de dezembro (junto com natal, um presente só, lembrei). Um item dizia: Cidade Natal. Não tive a menor dúvida e sapequei: Vitória. Embarcava naturalmente nas lembranças de Vitória e do Natal.
Era em Vitória que todo ano eu passava o aniversário e as festas de fim de ano, antes de irmos para as férias de verão em Manguinhos. Sempre na casa do vovô Ceciliano. Um casarão inesquecível, perto do Parque Moscoso, numa rua que antes de se chamar Marcos de Azevedo fora simplesmente Avenida José Carlos, assim mesmo sem sobrenome, com jeito de qualquer Zé Carlos companheiro de brincadeira.
Na frente da casa, com canteiros e caminhos de tijolos, havia um jardim carinhosamente criado por minha avó, das violentinhas que floriam escondidas no frescor sombreado de suas folhas verde-escuras, às acácias que se derramavam em cachos amarelos, oferecidos aos passantes para enfeitar as mesas do Ano Bom. E os mais cheirosos manacás, delicadas begônias, rosas perfumadas, orquídeas espetaculares amarradas pelos troncos dos arbustos. Nas laterais e nos fundos, dividindo espaço com galinheiro e viveiro, uma chácara-pomar, com dezenas de mangueiras e goiabeiras, e a fartura de romãs, mamões, perinhos, cajás, pinhas, sapotis, cajus e frutapães, árvores que subiam pela pedreira e ofereciam, lá nas garimpas, uma deslumbrante visão dos morros que nos cercavam, com suas casas encarapitadas, seus postes esparsos, suas escadarias em ziguezague, suas eternas pipas procurando as nuvens, suas pedras negras brotando no chão, salpicadas de bromélias.
Quando chegávamos para as férias, na segunda quinzena de dezembro, era hora de preparar a casa para as festas. Montar árvore de Natal, abrir guirlandas pelas salas... E, principalmente, armar o presépio – atribuição infantil. Sempre havia um adulto para ajudar no início. Num canto da grande sala de jantar, junto à porta fechada por dentro com a pesada tranca de madeira, encostava-se uma mesa da copa, uma mesinha de outra altura que ficava na varanda, alguma outra coisa que pudesse servir para criar níveis diferentes – caixotes, banquinhos, uma eventual barrica. Depois, aquilo tudo era coberto como um planejamento pesado de lona ou cobertor velho e jornais abertos. Ficava uma superfície irregular e acidentada, que então recobríamos de papel crepon verde e de musgo cuidadosamente recolhido nas pedreiras do quintal, nos tijolos úmidos dos cantos do jardim. No ponto mais alto, ficava a casinha com a manjedoura, o galo equilibrado no telhado, e uma estrela de purpurina pendurada do teto por um fio. Em volta, espalhavam-se pastores e reis magos, anjos e animais de todo tipo, oásis com palmeiras e laguinhos de espelho onde nadavam patinhos. Pelos cantos, em toda dobra capaz de abrigar uma touceira, cuidadosamente pilhas de pedrinhas ocultavam pires de água onde sementes de alpiste brotavam e se transformavam em matagais verdinhos até a Noite de Natal. Ficava uma beleza. Para nós, talvez até mais bonito do que o presépio da Catedral, com seu boizinho que balançava a cabeça quando recebia uma moeda – milagre que nos encantava quando vovô nos levava para vê-los após a Missa do Galo. Mas o nosso era obra nossa. Lindo, mágico, deslumbrante. Parecia até a cidade lá fora.
Porque a perfeição encantatória desse cantinho é que ele era um presépio dentro de um presépio. Nunca esquecíamos disso. Nem que quiséssemos íamos conseguir. Porque toda vez que voltávamos para casa após o anoitecer, principalmente se o passeio nos levara de bonde até Vila Velha ou se tínhamos ido a casa de tia Dolinha lá para os lados de Cariacica, quando íamos chegando à ilha do Príncipe vovô olhava para os lados de Santo Antônio, o resto da ilha se desdobrando atrás e mostrava:
- É mesmo uma cidade-presépio! Perfeita! Tão linda!
Ficávamos todos contemplando extasiados. As luzes fracas dentro das janelas pareciam piscar, de longe. A iluminação das ruas, mais forte, organizava uns caminhos vagos, mas tudo era meio desordenado, presépio conhecido e imaginado, estrelas do céu caídas na terra em constelações derramadas pelas encostas dos morros, um encantamento que trazia o Natal para os outros dias do ano e misturava céu e terra.
E dava para a gente passear dentro desse presépio de verdade! Pouco antes, quando eu estudara em Vitória, com dona Nádia no primeiro ano B do Carmo, fazia o caminho das ladeiras do presépio. Todo dia, elas me esperavam, abertas em escolhas diferentes. Mas primeiro eu tinha que atravessar o bosque encantado do parque Moscoso. Logo depois do almoço, ainda com gostinho de feijão com arroz na boca, lá ia eu pela sombra das imensas árvores de fícus, com suas raízes penduradas e aspecto secular (que me lembravam o poema “Velhas árvores”, que fazia parte das Poesias Infantis, de Olavo Bilac, com seu inesquecível verso: vencedoras da idade e das procelas). Pisando no macio e sensual tapete de bolinhas de fícus, tão gostosas de esmagar, eu passava pelo lado do orquidário, atravessava a clareira (onde tia Marília e tio Guilherme uma vez me levaram para ver um barco ancorado no seco e ouvir uma porção de marinheiros cantando e dançando, numa Marujada vigorosa que até hoje vive em minha memória) e, finalmente, alcançava as pontes com cerquinhas de galhos de cimento, ligando ilhas, arqueadas sobre lagos onde os patos acorriam para comer as sobras de miolo de pão que eu lhes trazia. Só depois desses rituais todos é que eu saía do outro lado do Parque. E entrava no presépio.
Não eram ruas com nomes (exceto a Dom Fernando, com esse nome que para mim era de príncipe e não de bispo), eram caminhos do presépio. Podia escolher, e cada dia seguia por um. Podia passar por baixo do viaduto e chegar lá no alto por perto da Igreja de São Gonçalo. Podia sair pela direita e subir uma escadaria, numa volta maior, mas comprando bolacha de água e sal ou rosquinha na Padaria Sarlo. Podia ir bem pela esquerda, por perto do quartel, subindo a Dom Fernando desde o começo, caminho especialmente preferido na volta da escola, quando eu podia me desviar, subir outro morro ao lado e dar uma paradinha na casa de tio Nelson e tia Mabel para filar uma merenda. Ou podia enfrentar a ladeira mais íngreme e pegar a Dom Fernando pelo meio, saindo em frente da casa da família Vello, cheia de amigos meus. Podia até ir de bonde. De qualquer modo, em pouco tempo estaria lá em cima, nas culminâncias do Cristo Rei, vendo o outro lado do presépio se esparramar morro abaixo por novas ladeiras. Aí, era só passar em frente da casa de tia Silvinha, sempre com espirradeiras floridas saindo para a rua pelo meio das grades e do jardim. E chegava ao Carmo. Fazia um sinal da cruz em frente a gruta (Bernardete e Nossa Senhora dentro da cidade-presépio eram outro encanto mágico), subia as escadas, cumprimentava minha querida irmã Zoé e pronto! Acordava. Hora de aula. Saía do presépio de novo. Até voltar para casa na hora da saída.
- Ana Maria, mas que ideia é essa? Por que você disse que nasceu em Vitória? Isso não é verdade! – corrigiu minha mãe quando viu meu formulário preenchido.
- Eu nunca disse isso...
Como não? Está aqui, com sua letra. Cidade natal: Vitória. E você sabe que nasceu no Rio...
- Mas Vitória não é cidade-presépio? Não é a mesma coisa?
Não, não era. Só então, entendi. Entendemos as duas. Retificamos.
Mas não se retifica memória nem coração. Por isso, para mim (que quase me chamei Natália, e que quase acabei tendo um nome que homenageava a avó e a mãe do Menino Jesus do presépio), menina nascida na véspera de Natal, Vitória e única. Vitória, terra da minha mãe e da casa da minha avó, eterna cidade-presépio, para todo o sempre um pouco minha cidade-Natal.
Escritos de Vitória – Uma publicação da Secretaria de Cultura e Turismo da Prefeitura Municipal de Vitória-ES, 1997
Prefeito Municipal: Paulo Hartung
Vice-Prefeita Municipal: Luzia Alves Toledo
Secretária Municipal de Cultura: Cláudia Cabral
Sub-secretária Municipal de Cultura: Verônica Gomes
Diretor do Departamento de Cultura: Joca Simonetti
Adm da Biblioteca de Adelpho Poli Monjardim: Lígia Maria Mello Nagato
Bibliotecárias: Elizete Terezinha Caser Rocha, Lourdes Badke Ferreira
Conselho Editorial: Álvaro José Silva, José Valporto Tatagiba, Maria Helena Hees Alves, Renato Pacheco
Revisão: Gilson Soares
Capa: Ângela Cristina Xavier
Editoração: FCAA
Impressão: Gráfica ITA
Fonte: Escritos de Vitória, nº 18 – Cidade Presépio, Secretaria Municipal de Cultura e Turismo – PMV, 1997
Texto: Ana Maria Machado
Compilação: Walter de Aguiar Filho, outubro/2018
Nascida no Rio de Janeiro (RJ)
Doutora em linguística, professora, jornalista e escritora
Publicou mais de 50 livros, vários deles premiados no Brasil e no exterior. Desde a infância cultiva o hábito de passar férias em Manguinhos.
O ano que passou, o ano que está chegando ao seu fim já não desperta mais interesse; ele é água passada e água passada não toca moinho, lá diz o ditado
Ver ArtigoPapai Noel só me trouxe avisos bancários anunciando próximos vencimentos e o meu Dever está maior do que o meu Haver
Ver Artigo4) Areobaldo Lelis Horta. Médico, jornalista e historiador. Escreveu: “Vitória de meu tempo” (Crônicas históricas). 1951
Ver ArtigoEstava programado um jogo de futebol, no campo do Fluminense, entre as seleções dos Cariocas e a dos Capixabas
Ver ArtigoLogo, nele pode existir povo, cidade e tudo o que haja mister para a realização do sonho do artista
Ver Artigo