Morro do Moreno: Desde 1535
Site: Divulgando desde 2000 a Cultura e História Capixaba

Também Eles - Por Judith Leão Castelo Ribeiro

Capa do Livro: Presença, 1980 - Autora: Judith Leão Castello Ribeiro

Éramos treze... não estou parodiando o romancista. Éramos, de fato, treze irmãos. Tudo veio do interior e ficou numa casa de sobrado, na extinta Rua José Marcelino, engaiolado. Entre o bando de crianças estava eu. Viemos estudar. Como contávamos os dias, esperando as férias! Até que, metidos, numa canoa, deixávamos o cais Schmit. O Lameirão, imenso. A embarcação mais parecia uma palha à flor d’água. Depois, a beleza azul e branca do Santa Maria, que se arroga o direito de fazer ondinhas. Adiante, as escuras águas do Una, bem como assinala o nome indígena. Aí, a canoa passava por cima da vegetação aquática. Nenúfares brancos, iguais a xícaras, sobre folhas redondas, verdes, picotadas de vermelho.

Depois, a estrada, velha conhecida, um carro de bois e todos nós dentro dele. A Serra aparecia, horas depois, lá embaixo, no pé da ladeira do Saco.

Bons tempos aqueles. Quanta saudade... Nas caladas da noite, o congo a ensaiar, anunciando à festa de São Benedito, o mastro, a noite de Natal... Vinham os dias. As festas chegavam. O mastro era “enfincado”. Eu chorava sempre, naquele fim de festa. Tinha saudade, não sei de que... Mas pouco durava. Em janeiro, tudo estava preparado para irmos aproveitar o segundo mês de férias, em Jacaraípe.

Que pulsações eu sentia, no coração, ao rever, de memória, o mar, as praias festonadas de campânulas dos cipós floridos! Sentia, não sei como, o cheiro de salsugem vindo da brisa do mar. Tinha, nítida, nos olhos, a imagem das algas crespinhas, verde mar, aos montes, na praia. Via o rendilhado dos pezinhos dos aitis brancos, marcado na areia molhada.

Como faziam bem, papai e mamãe, tudo sacrificando, para nos dar pedaços de vida naquelas férias passadas em contato com a natureza!

A nossa casa de palha ficava pouco acima do cômodo da praia. Era sempre novo o espetáculo do acordar do sol, quando deixava o lençol do mar, pondo de fora a cabeça, ainda sem a coroa de raios, lançando a primeira mensagem à terra por sobre as ondas, numa faixa de luz trêmula.

Que dias esplêndidos passávamos em Jacaraípe! A casa só servia para dormir. O dia todo, praia, mar, rio. Com os pescadores, puxávamos as redes. Recebíamos o nosso quinhão. A “comidinha”, como diziam os pescadores, “é dos meninos”. E toda a miuçalha que vinha passava para os nossos samburás. Deixava de ser a “comidinha” de peixe grande, para ser regalo de crianças. No rio, além do banho, chamariz forte havia no apanhar “mixora”, com um lençol aberto, contra a correnteza, na boca da barra. Ali, o dia se findava. E, com ele, milhares de filhotes, uma “mixórdia” de peixes que descia da lagoa Jucunen, em busca do mar, tinha, também, seu fim. Apesar da proibição, que havia em casa, nunca deixávamos de esperar os cardumes... Era bem divertido e rendoso. Às escondidas, secávamos com sal, em jiraus, os minúsculos filhotes de rebolos e de tainhas e os fritávamos, com fubá, fazendo pacotes, bem parecidos com os de amendoim torradinho. Muita experiência adquirem as crianças quando postas diante das páginas vivas da grande mestra, a natureza. Como seria bom que todos tivessem a felicidade que nós, as treze crianças, tivemos!

Umas férias, como tudo pode acontecer, tive de passá-las estudando. Queria ganhar a vida. Ajudar a papai e a mamãe, que queriam que “todos eles fossem doutores”, como diz a mãe preta, daquela canção. Era um ideal. Bem, naquelas férias, saía de casa, ia para as praias isoladas. Fugia às tentações. A ponta do Irema, com o seu riacho verde-gaio, sombreada de murtinhas redondas, verde-negras, cheia de recifes roxos, era o lugar preferido. Ali eu ficava até a hora que começava o preamar. E foi naquele recanto que recebi a mais eloqüente lição de sociologia. A viração começava a soprar mais forte. As ondas já lambiam, lá embaixo, os primeiros rochedos. Dispunha-se a deixar meu esconderijo. Debrucei-me sobre a orla dos recifes e vi um rosário de caracóis, arroxeados, marchetados de ponto brancos, brilhantes, iguais aos quartzo dos rochedos. Via-se, logo, que eram dali. Pois bem, entre a chanfrandura dos recifes, na areia grossa, arrastava-se o cortejo rumo ao pé do recife. Subiu o primeiro até certa altura, mas, pouco depois, caiu. Ficou um risco brilhante, na pedra. Outro veio, subindo, naquela babugem ajeitou-se, foi mais além. Mas, também, caiu, deixando um traço maior. Agora, atrás do que subia, outros seguiam e se firmavam, vencendo, aos poucos, a escalada. Nenhum ficou na areia. Subia a corrente roxa e, no alto, nas cavidades abertas em minúsculos labirintos, se meteram os caracóis. As ondas já entravam se abrindo em leques de espuma, nos recifes. As águas contornavam o rochedo, molhando-me, mas os caramujos estavam longe, para serem atingidos. Fiquei a pensar naquela lição viva sobre a tese – valores ou forças sociais. Ali, estava um exemplo de quanto vale a solidariedade, como valor social, mantenedora da sobrevivência, da perpetuação da espécie. A estabilidade social é, freqüentemente, alterada para o bem ou para o mal, por essa grande força moral e, por isto, conjuguemos os nossos, impulsos no sentido de garantirmos, conscientemente, não apenas por instinto, como fazem os caramujos, a sobrevivência da humanidade. Cultivemos, para a realização de todos os outros valores sociais, a harmonia e a ordem. Incentivemos, nos jovens, a Gratidão à Justiça, fazendo-os abominar a mentira, o engano, a fraude, tudo que corrompe as relações de cooperação, tudo que é desfavorável à ordem social. Formemos os ideais de Justiça, condição básica para a realização de todos os valores sociais, os quais levam à felicidade, ao progresso, a sociedade. Lembremo-nos que, graças à solidariedade, nem quando brigam as ondas com os rochedos, perecem, desaparecem os caramujos.

 

Fonte: Presença, 1980
Autora: Judith Leão Castello Ribeiro
Compilação: Walter de Aguiar Filho, setembro/2014

Literatura e Crônicas

Cemitério dos Escravos - Por Francisco Aurélio Ribeiro

Cemitério dos Escravos - Por Francisco Aurélio Ribeiro

Distante dos túmulos suntuosos dos patrões, o cemitério é marcado por um quadrado formado por quatro gigantescos cáctus, a marcar a paisagem com a memória de aridez e sofrimento por que passaram seus antigos moradores

Pesquisa

Facebook

Matérias Relacionadas

As precursoras de uma literatura feita por mulheres no ES

Francisco Aurélio Ribeiro comprova em seu livro, A Literatura do Espírito Santo, que no final do século passado a tônica era machista. As mulheres podiam fazer versos, desde que não os publicassem...

Ver Artigo
Judith Leão Castello Ribeiro - Uma Mulher de Talento

Uma mulher dedicada à política partidária, um espírito de liderança e uma soma respeitável de serviços prestados à sua terra. Justa a homenagem da Comenda Jerônimo Monteiro

Ver Artigo
As revolucionárias nos anos 30 - Por Francisco Aurélio Ribeiro

Maria Stella de Novaes (1894-1990) e Haydée Nicolussi (1905-1970) são da mesma geração e foram revolucionárias de seu tempo, cada uma a sua maneira

Ver Artigo
Filosofia e Poesia - Por General Pacheco de Queiroz

O Jornal do Comércio traz um artigo sobre os livros Alma e Deus e Travos em Trovas, do nosso conterrâneo Kosciuszko Barbosa Leão

Ver Artigo
PRESENÇA, Lição de Vida - Por Theomar Jones

A exemplo da Academia Brasileira de Letras a Academia Espírito-santense de Letras deveria ser a Casa de Kosciuszko Barbosa Leão

Ver Artigo
Kosciuszko Barbosa Leão - nascido em 12-09-1889

Foi o único capixaba que figurou na enciclopédia Delta Larousse e publicou dez livros abrangendo temas políticos, filosóficos e religiosos

Ver Artigo
O velho e o novo - Academia Espírito-santense de Letras

A morte do professor Kosciuszko Barbosa Leão, um dos mais destacados participantes da Academia Espírito-santense de Letras (a quem doou a casa de sua propriedade) reabriu-se o debate em torno do movimento cultural no Espírito Santo

Ver Artigo
Não cantamos parabéns! - Por Judith Leão Castello Ribeiro

Em maio, mês em que se colhem flores para os altares da Virgem Maria, num domingo azul, sol morninho, lindo dia, tio Kosciuszko, com olhos de poeta, via o bailado negro das andorinhas no espaço, num painel de ampla janela aberta do seu quarto

Ver Artigo
Evocação - Por Theomar Jones

Depois, visito Vitória e revejo Kosciuszko, o grande “causeur”, o mestre da língua. Poeta, o versejador de fina sensibilidade. Orador, o magnetizador dos auditórios.

Ver Artigo