Também Eles - Por Judith Leão Castelo Ribeiro
Éramos treze... não estou parodiando o romancista. Éramos, de fato, treze irmãos. Tudo veio do interior e ficou numa casa de sobrado, na extinta Rua José Marcelino, engaiolado. Entre o bando de crianças estava eu. Viemos estudar. Como contávamos os dias, esperando as férias! Até que, metidos, numa canoa, deixávamos o cais Schmit. O Lameirão, imenso. A embarcação mais parecia uma palha à flor d’água. Depois, a beleza azul e branca do Santa Maria, que se arroga o direito de fazer ondinhas. Adiante, as escuras águas do Una, bem como assinala o nome indígena. Aí, a canoa passava por cima da vegetação aquática. Nenúfares brancos, iguais a xícaras, sobre folhas redondas, verdes, picotadas de vermelho.
Depois, a estrada, velha conhecida, um carro de bois e todos nós dentro dele. A Serra aparecia, horas depois, lá embaixo, no pé da ladeira do Saco.
Bons tempos aqueles. Quanta saudade... Nas caladas da noite, o congo a ensaiar, anunciando à festa de São Benedito, o mastro, a noite de Natal... Vinham os dias. As festas chegavam. O mastro era “enfincado”. Eu chorava sempre, naquele fim de festa. Tinha saudade, não sei de que... Mas pouco durava. Em janeiro, tudo estava preparado para irmos aproveitar o segundo mês de férias, em Jacaraípe.
Que pulsações eu sentia, no coração, ao rever, de memória, o mar, as praias festonadas de campânulas dos cipós floridos! Sentia, não sei como, o cheiro de salsugem vindo da brisa do mar. Tinha, nítida, nos olhos, a imagem das algas crespinhas, verde mar, aos montes, na praia. Via o rendilhado dos pezinhos dos aitis brancos, marcado na areia molhada.
Como faziam bem, papai e mamãe, tudo sacrificando, para nos dar pedaços de vida naquelas férias passadas em contato com a natureza!
A nossa casa de palha ficava pouco acima do cômodo da praia. Era sempre novo o espetáculo do acordar do sol, quando deixava o lençol do mar, pondo de fora a cabeça, ainda sem a coroa de raios, lançando a primeira mensagem à terra por sobre as ondas, numa faixa de luz trêmula.
Que dias esplêndidos passávamos em Jacaraípe! A casa só servia para dormir. O dia todo, praia, mar, rio. Com os pescadores, puxávamos as redes. Recebíamos o nosso quinhão. A “comidinha”, como diziam os pescadores, “é dos meninos”. E toda a miuçalha que vinha passava para os nossos samburás. Deixava de ser a “comidinha” de peixe grande, para ser regalo de crianças. No rio, além do banho, chamariz forte havia no apanhar “mixora”, com um lençol aberto, contra a correnteza, na boca da barra. Ali, o dia se findava. E, com ele, milhares de filhotes, uma “mixórdia” de peixes que descia da lagoa Jucunen, em busca do mar, tinha, também, seu fim. Apesar da proibição, que havia em casa, nunca deixávamos de esperar os cardumes... Era bem divertido e rendoso. Às escondidas, secávamos com sal, em jiraus, os minúsculos filhotes de rebolos e de tainhas e os fritávamos, com fubá, fazendo pacotes, bem parecidos com os de amendoim torradinho. Muita experiência adquirem as crianças quando postas diante das páginas vivas da grande mestra, a natureza. Como seria bom que todos tivessem a felicidade que nós, as treze crianças, tivemos!
Umas férias, como tudo pode acontecer, tive de passá-las estudando. Queria ganhar a vida. Ajudar a papai e a mamãe, que queriam que “todos eles fossem doutores”, como diz a mãe preta, daquela canção. Era um ideal. Bem, naquelas férias, saía de casa, ia para as praias isoladas. Fugia às tentações. A ponta do Irema, com o seu riacho verde-gaio, sombreada de murtinhas redondas, verde-negras, cheia de recifes roxos, era o lugar preferido. Ali eu ficava até a hora que começava o preamar. E foi naquele recanto que recebi a mais eloqüente lição de sociologia. A viração começava a soprar mais forte. As ondas já lambiam, lá embaixo, os primeiros rochedos. Dispunha-se a deixar meu esconderijo. Debrucei-me sobre a orla dos recifes e vi um rosário de caracóis, arroxeados, marchetados de ponto brancos, brilhantes, iguais aos quartzo dos rochedos. Via-se, logo, que eram dali. Pois bem, entre a chanfrandura dos recifes, na areia grossa, arrastava-se o cortejo rumo ao pé do recife. Subiu o primeiro até certa altura, mas, pouco depois, caiu. Ficou um risco brilhante, na pedra. Outro veio, subindo, naquela babugem ajeitou-se, foi mais além. Mas, também, caiu, deixando um traço maior. Agora, atrás do que subia, outros seguiam e se firmavam, vencendo, aos poucos, a escalada. Nenhum ficou na areia. Subia a corrente roxa e, no alto, nas cavidades abertas em minúsculos labirintos, se meteram os caracóis. As ondas já entravam se abrindo em leques de espuma, nos recifes. As águas contornavam o rochedo, molhando-me, mas os caramujos estavam longe, para serem atingidos. Fiquei a pensar naquela lição viva sobre a tese – valores ou forças sociais. Ali, estava um exemplo de quanto vale a solidariedade, como valor social, mantenedora da sobrevivência, da perpetuação da espécie. A estabilidade social é, freqüentemente, alterada para o bem ou para o mal, por essa grande força moral e, por isto, conjuguemos os nossos, impulsos no sentido de garantirmos, conscientemente, não apenas por instinto, como fazem os caramujos, a sobrevivência da humanidade. Cultivemos, para a realização de todos os outros valores sociais, a harmonia e a ordem. Incentivemos, nos jovens, a Gratidão à Justiça, fazendo-os abominar a mentira, o engano, a fraude, tudo que corrompe as relações de cooperação, tudo que é desfavorável à ordem social. Formemos os ideais de Justiça, condição básica para a realização de todos os valores sociais, os quais levam à felicidade, ao progresso, a sociedade. Lembremo-nos que, graças à solidariedade, nem quando brigam as ondas com os rochedos, perecem, desaparecem os caramujos.
Fonte: Presença, 1980
Autora: Judith Leão Castello Ribeiro
Compilação: Walter de Aguiar Filho, setembro/2014
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