Três Cometimentos – Por Areobaldo Lellis Horta
Foi no segundo período administrativo do Estado, após a inauguração do regime republicano, que se pensou em se pôr mãos à obra, no sentido de aumentar-se a Vitória e levarem-se a efeito alguns empreendimentos capazes de marcar uma era nova do progresso material entre nós. Quatro seriam os cometimentos realizados, se um não fracassasse logo no início, morrendo, como se costuma dizer, no nascedouro. Foi ele a projetada "cidade do Suá" onde muitos contos de réis foram enterrados, para o fim de se estabelecer ali um porto avançado da Capital, origem de uma nova cidade, ampliando assim a Vitória, à semelhança do que hoje existe. Porém, as primeiras obras esbarraram nos alicerces dos primeiros armazéns, sem mais avançar, ficando enterradas na areia, segundo os comentários da época, centenas e milhares de barricas de cimento, das quais não houve mais notícias.
Três outros empreendimentos, projetados naquele período, conseguiram ser efetuados, embora um deles só viesse a completar-se dezessete anos depois. Foi este a Estrada de Ferro Sul do Espírito Santo, cuja estação inicial foi inaugurada a 13 de julho de 1896, em Argolas, ligando aquele ponto a Viana, hoje, para confusão de toda gente, chamada Jabaeté.
Era eu menino. Mas compareci com meu pai àquela inauguração e do que vi, os fatos principais não me fugiram à memória.
Seriam sete da manhã quando, tomando um bote no Porto dos Padres, atravessamos para Argolas, onde grande já era a afluência de pessoas. Também ali se encontrava a banda de música Caramuru, da qual era regente o nosso jovem conterrâneo João Duarte. Para Viana já tinham seguido, desde cedo, a banda da Polícia e a Filarmônica Rosariense. Com o seu fardamento verde, a Caramuru ostentava uma faixa a tiracolo, em que se lia a data auspiciosa da inauguração daquele primeiro trecho ferroviário. Cerca de oito e meia, chegava a canoa presidencial, conduzindo o chefe do Estado, Dr. Muniz Freire, e seus auxiliares diretos. Chamava-se "canoa presidencial" uma grande baleeira, puxada a seis remos, destinada somente à condução do presidente do Estado. As demais autoridades já se achavam na estação, tomando todos lugar no primeiro comboio, composto de carros-salão, inclusive o oficial. O segundo era formado de vagões descobertos, cheios de bancos de madeira, pregados ao assoalho e nos quais se acomodaram os que não o puderam fazer no primeiro. À chegada, foguetes e foguetões atroaram aos ares, enquanto as bandas de música executaram o hino nacional. Recebidas as altas autoridades do Estado e federais pelos governadores municipais, teve lugar o ato da inauguração, ao qual não faltaram discursos, lavrando-se da solenidade, uma ata. Morteiros, girândolas, sons de sinos e de instrumentos musicais encheram o espaço, na fusão das alegrias, que animavam justamente todos os presentes.
Cerca de uma hora da tarde foi servido lauto almoço, em extensa mesa, no interior de um amplo armazém fronteiro à estação. Várias mesas de almoço foram servidas a quantos compareceram à cerimônia, regressando os comboios à tarde, trazendo de volta os que foram até Viana.
Uma nota interessante foi a produzida pela banda Caramuru, que foi tomada por muitos da localidade como vinda do Rio, devido à faixa a tiracolo que os músicos ostentavam. Celebrando o grande acontecimento, Antonio Manhães, nosso conterrâneo, estudante e tipógrafo do Comércio do Espírito Santo, fez publicar uma pequena poliantéia. Antonio Manhães formou-se em medicina, indo residir em São Paulo.
Os governos, que se sucederam àquela administração, levaram até Matilde os trilhos da "Sul", cuja construção objetivava a ligação Vitória a Cachoeiro de Itapemirim. No governo Henrique Coutinho foi o trecho construído vendido à "Leopoldina Railway", pela quantia de três mil contos, tendo sido inaugurada a ligação no governo Jerônimo Monteiro, quando na presidência da República o Sr. Nilo Peçanha, que realizou a cerimônia no Cachoeiro de Itapemirim, desatando o laço, à frente da estação daquela cidade, dando passagem ao comboio oficial, que, pela primeira vez, trafegou até Vitória, trazendo o chefe da Nação e o seu ministro da Viação.
O segundo cometimento foi a inauguração, a 23 de maio de 1896, do teatro Melpômene, no local onde se erguia a igreja Conceição da Prainha, desapropriada pelo governo para aquele fim. A sua pedra inaugural fora lançada ao lado do templo, a 19 de maio de 1872, pela então Sociedade Melpômene, sendo todo de madeira e possuindo iluminação elétrica própria. Inaugurou o nosso primeiro teatro a Companhia espanhola, de zarzuelas, Julia Plá. Não agradando o gênero de espetáculos, encontrou-se a trupe em sérias dificuldades financeiras, salvando-a das aperturas, o nosso saudoso conterrâneo Ubaldo Rodrigues, escrevendo a revista de costumes capixabas "Ontem e Hoje" que valeu enchentes sucessivas no nosso Melpômene.
Figurando nela os mais palpitantes assuntos de atualidade, fizeram época números como "Peroás e Caramurus", "Instituto Normalista", "Barreira de São Gonçalo", conseguindo assim, Julia Plá sair dos embaraços em que se achava com os seus companheiros. Desligando-se da Companhia, ficou entre nós um dos seus bons elementos, o Sr. Amorós com sua esposa.
Com a saída da Companhia, veio mais tarde a "Dias Braga", estreando com o "Conde de Monte Cristo", peça em que o reputado artista brasileiro tinha uma de suas mais impressionantes criações, no personagem de Edmundo Dantés. Tinha eu, então, doze anos, comprando meu pai três cadeiras na primeira fila para mim e meus dois irmãos mais moços, a fim de assistirmos à estréia. Cheio o teatro, na primeira apresentação da Companhia, à hora marcada para o início do espetáculo, surgiu na ribalta um dos artistas, pedindo aos espectadores que se retirassem com calma, porque o espetáculo não podia se realizar, visto um desarranjo havido na máquina geradora da luz elétrica, do qual poderia resultar o incêndio do teatro. Sem atropelos, o povo retirou-se, recebendo seus ingressos, para valerem na noite imediata, quando a Companhia estrearia. Na noite seguinte, lá estávamos, assistindo pela vez primeira a uma grande apresentação.
Muitos foram os artistas de renome que pisaram o palco do Melpômene. Entre eles, Dias Braga, João Barbosa, Olímpio Nogueira, Grijó, Leopoldo Froes, o maior comediante brasileiro dos últimos tempos, Chaby Pinheiro, Pepa Delgado, Cora Costa, Maria Castro, Lucília Peres, Ausenda e Cremilda de Oliveira, grandes figuras dos teatros brasileiros e portugueses. Ao espírito progressista da Gaspar Guimarães, por muitos anos arrendatário do Melpômene, devemos a passagem desses elementos artísticos pela então, nossa principal casa de espetáculos. Foi ainda sob o arrendamento de Gaspar Guimarães, que se exibiram ali "Os Duques", casal de dançarinos nacionais, após percorrerem, com sucesso, os grandes centros da velha Europa. Gaspar trouxe ainda até aqui uma ótima Companhia de operetas, constituída de fantoches, estreando com "A Gueixa", peça de costumes japoneses, muito agradando as suas exibições.
Certa vez, veio até nós uma Companhia Nacional de Revistas. Na noite da estréia, repleto o teatro, momentos antes de correr o velário, algumas pessoas, ocupando lugares na platéia e nas frisas e torrinha, começaram a bater com os pés, reclamando fosse dado o começo do espetáculo. Aparece, então, na ribalta, um artista, dando explicações da demora em ser levantado o pano. Não se conformando, os reclamantes se levantaram, dizendo que se retiravam e iam receber na bilheteria o seu dinheiro. Ato contínuo, conhecido advogado, ocupando lugar na frente de uma das frisas, levantou-se também revoltado, reclamando contra a demora. Foi quando o artista, do proscênio, lhe respondeu: - "Cavalheiro, o espetáculo já começou com esta primeira cena comigo e com os outros artistas, espalhados pela platéia, frisas e torrinhas. Justamente os que abandonaram os lugares em que ocupavam entre os espectadores. Vai prosseguir o espetáculo com a segunda cena".
E o velário correu, apresentando-se o palco com os artistas que fizeram a cena de protesto, disfarçados em espectadores. A gargalhada espocou de todos os cantos, quando o nosso advogado , ante a "rata" que praticara, desapareceu, sem dúvida maldizendo a pressa com que se metera a colaborar na primeira cena da peça.
Na administração Jerônimo Monteiro, foi o Melpômene arrendado a José Ribeiro de Souza, que fez correr ali o primeiro filme, mais tarde passando o arrendamento às mãos de Hermílio Silva, Heitor Santos e Francisco Cerqueira, entrando depois Marcondes Junior com a saída de Hermílio Silva. Foi ao tempo da administração Avidos, que se manifestou, no teatro, um começo de incêndio, na cabine de projeção, resultando a situação de pânico entre os espectadores, principalmente das torrinhas, morrendo os que se atiraram pelos óculos de ventilação ali existentes. Quando já se achava vazio o teatro, sem que o fogo não fosse adiante, apareceu na porta da rua, que dava à torrinha, um aleijadinho, que, impossibilitado de correr, deixou-se ficar lá em cima, para depois descer vagarosamente até a rua. Esse acidente encerrou a vida do Melpômene, no seu destino de casa de espetáculos, instalando-se em seu amplo foyer a Comissão de Melhoramentos de Vitória.
A treze de maio de 1896, foi inaugurado o atual quartel da Força Pública, o terceiro dos melhoramentos realizados então. Instalou-se a nossa Polícia Militar assim, em prédio próprio, pois antes, vivera em casas particulares, chegando a ocupar uma extensa casa térrea, na Rua do Sacramento, e o prédio da rua Pereira Pinto, onde funciona a marcenaria Buzato.
O mesmo quartel foi construído pelo engenheiro italiano Felintho Santorum, sobre terreno alagadiço. Como ficou dito em capítulo anterior, o canal que se estendia por onde se levantou a Avenida República alagava todo o terreno, hoje Parque Moscoso e ruas Henrique Coutinho e Washington Pessoa e Praça Misael Pena e Quartel. Na base do morro, havia uma chácara, de propriedade do conhecido capitão Cardoso, então delegado de polícia e que caprichava em deter toda rapariga, encontrada desempregada, raspando-lhe a cabeça. Foi uma maneira violenta, mas fácil, de acabar com a malandrice de tais elementos.
Em sua chácara fez o capitão Cardoso uma represa das águas do mar, que subindo o canal, iam até sua propriedade. Essa represa, à maneira de um tanque, possuía uma porta, com vários orifícios, a qual se levantava, quando a maré enchia, descendo ao iniciar-se a vazante, saindo as águas pelos orifícios. O peixe que entrava não podia sair, sendo apanhado pelo delegado e distribuído por seus amigos, quando bastante. Sendo pessoa de íntimas relações de meu pai, muitas vezes fui à sua chácara, buscar peixe. Pois sobre essa chácara foi construído o quartel da Policia, onde se instalou em definitivo a nossa Força Pública. Vale aqui um registro especial e interessante.
Pouco tempo depois de construído, as paredes do quartel começaram a rachar, cedendo assim ao seu próprio peso, revelando a pouca resistência de sua base, enquanto o edifício da Casa Americana, levantado, então, em terreno também alagadiço, jamais se fendeu, malgrado o seu enorme peso e o que o seu piso recebia e continua a receber das grandes pilhas de sacas de café, que sobre eles descansam. Foi esse prédio construído pelo nosso modesto conterrâneo Rufino Azevedo.
Em 1896, paralisaram-se as iniciativas em nossa cidade, até a administração Henrique Coutinho, quando foi inaugurada a linha de bondes da cidade baixa, pelo Sr. Aristides Navarro, cujos trilhos se estendiam do Largo da Conceição até o Forte São João. Mais tarde foi inaugurado o segundo trecho até Jucutuquara, sendo, do Forte até ali, os carros puxados por uma pequena locomotiva a vapor. Por um tempo o ponto de chegada ficou conhecido por "Carvalhinho", nome de um antigo comerciante, havia muito ali radicado. Após os avanços dos trilhos para o Suá e Praia Comprida, o Carvalhinho passou a denominar-se Cruzamento, por verificar-se ali o encontro entre os carris vindos da Praia e idos da cidade.
O nome de Praia Comprida, dado ao então ponto final da linha, resultou de um concurso realizado na ocasião, por não possuir ela ainda qualquer nome, por ser desconhecida, a não ser de alguns pescadores, os quais nunca se preocuparam em batizá-la. Várias sugestões apareceram, inclusive a de Araribóia.
Na administração Jerônimo Monteiro, passou o serviço de bondes a ser feito sob tração elétrica, dando-se a sua inauguração a 29 de janeiro de 1911. Assim, só dez anos depois apareceu o quarto cometimento.
Fonte: A Vitória do meu tempo – Academia Espírito-Santense de Letras, Secretaria Municipal de Cultura, 2007 – Vitória/ES
Autor: Areobaldo Lellis Horta
Organização e revisão: Francisco Aurelio Ribeiro
Compilação: Walter de Aguiar Filho/ maio/2020
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