Um romance capixaba, e outro, nem tanto
Quando se atualizar a história da literatura capixaba de Afonso Cláudio, com os subsídios, principalmente de Augusto Lins e Christiano Ferreira Fraga, trabalho a que se propôs o erudito professor Dr. José Augusto Carvalho, lugar de destaque deverá caber ao médico Madeira de Freitas, que usava o pseudônimo Mendes Fradique, autêntico humorista, famoso pela História do Brasil pelo método confuso, e Gramática Portuguesa, idem.
No seu romance Doutor Voronoff, escrito entre setembro de 1923 e maio de 1924, o escritor capixaba, a par de urdir uma “Estória” de rejuvenescimento glandular, ressalta a terra e a gente do Espírito Santo (Dr. Voronoff, Livraria Editora Leite Ribeiro, 1925, na página de rosto, ou 1926, na lombada).
A personagem principal é Eduardo Marinho, “capixaba da gema, nascera em Vitória, de uns Marinhos da Ilha das Caieiras” e morava na Rua do Rosário, perto do Porto das Lanchas, e, ao pé do famoso Convento peroá, de São Benedito, e, onde “uma multidão mescladíssima de devotos festejava naquele dia (27 de dezembro) o seu padroeiro. Tremenda algazarra, em que se misturava o berreiro do mulherio, em avinhada cantoria, aos sons roufenhos de desafinada charanga, batucando dobrados epiléticos, com todo o frenesi e sua facção peroá”.
Quando menino, tomara aulas com o famoso professor Lellis, tronco de tradicional família de nossa terra, empinava papagaios nos Pelames (Convento do Carmo), pescava baiacus e furtava ariticum em Jucutuquara. Morrendo-lhe o pai, foi, por esforço da genitora (uma destas bravas viúvas de que está cheia a história e a literatura brasileiras) estudar medicina. E, formado, se fixou em Guarapari, modorrento povoado praiano (à época) onde se fez amigo do boticário Matias, dos Beiriz de Piúma. Conta-se então, e pela vez primeira nas letras pátrias, a história dos cargueiros ingleses que, como lastro, levavam o tesouro monazítico na empresa de um tal Sr. Gordon, “The monazitics sands Co. Ltd”, gerenciada pelo casal Davidson, de que o médico se torna amigo (até demais, segundo as fofoqueiras praianas) vindo a ser o Rei do Torium, com o encargo suplementar e agradável de tutelar Maria da Glória, filha da falecida Ruth Davidson.
É a partir da página 200 que o autor põe em cena Vitória dos anos vinte, época extraordinária de nossa evolução urbana, de muita riqueza, e muitas demolições (como acentuará Luiz Derenzi em Biografia de uma Ilha). Visita o já milionário Marinho em nossa cidade, sua terra natal. Vem pela Estrada de Ferro Leopoldina Railway. Encontra-se com velhos amigos como Mario Guimarães, João Nunes Coelho, Jean Zinzen, Flávio de Jesus, Mr. Barry, Monsenhor Pedrinha, o sineiro João Capuchinho, e outros, a que nos referiremos a seguir.
Entre estes, está o hospedeiro da personagem, Antonio Aguirre, médico estimado cuja casa, no Largo da Matriz, é descrita, e que “quando a política lhe levou o último fio de cabelo, de cambulhada com a última ilusão, fez-se professor de humanidades, ensinando a várias gerações de capixabas. Um amigo senador o colocara na Saúde do Porto (que, segundo o autor, não adoecia, isto é, não havia doentes para tratar) e era figura federal de destaque na Capital, com bondade ampla, perdoadora, o fez de Vitória, no dizer de Antonio Miguel (Cf. Revista do IHGES,ano 1959, nº 20).
No decorrer da narração fala-se nas peixadas de Vitória, no célebre discurso do vereador de Guarapari, “país calmoso e hereditário...” surge o criado Manoel Pepa, descreve-se, brevemente, colossal enchente em Santa Leopoldina, papagaios de papel, nossos urubus, beatas e mendigos de porta de Igreja.
O Gonzaga, comediógrafo carioca e secretário do milionário Marinho acha a terra maravilhosa (“Isto é que é terra, o mais é história...”) e logo se une à rodinha da opa do Café Globo, bebedores de todo o dia, do Café Rio Branco, das peixadas do Emílio Parra, na Praia Comprida, com luar e mosquitos. Seus companheiros são Roberto Von Krompolz, engenheiro austríaco, Aristóteles, cronista político do Diário da Manhã, Alcebíades Scheneider, Bibi Quintaes, o amplíssimo Quintaes (Aurino?) com uma cara de frade da Bhrama, na qual se esboçava a penugem de um buçozinho obsceno. Faz pescarias nas lanchas Vaticana e Procela do Andrade e Silva, matemático e coronel, freqüenta também o bar Gato Preto, a farmácia do Silveira, e o Clube das Telhas do Aguiar e do Lordelo. A festa que lhe foi dada quando de sua despedida foi no Hotel do Baldi e nela aparece como personagem o jovem Arquimino Matos, rapaz de muito talento. Do comércio, citam-se Antenor Guimarães, Cruz e Vivacqua. Gonzaga que logo pretende montar um jornal com o Vieira da Cunha não se esquece de dizer: - “Nunca pensei que Vitória fosse o que é, palavra. Que gente boa. E uma rapaziada desempenadíssima. Lê-se muito em Vitória”!
Muito interessante são os passeios à ilha do Barry, na Praia Comprida, hoje Ilha do Frade, e ao Convento da Penha. Na primeira (que se chamava também ilha do Lemote) o irlandês demonstra sua amizade pelo alemão Nicolau Von Schilgen, única concessão que fez ao hunos durante a guerra, de vez que o alto funcionário de Hard Rand é pianista e toca Lizt e Beethoven. Ensina-se a velha técnica capixaba de comer milho verde: - “cozido, ralado de leve, untada a espiga de manteiga”. Na visita à Penha são companheiros de lancha o Flávio de Jesus, da Charutaria Havanesa e uns rapazes Cerqueira Lima, muito dos Aguirres. A saída é do Eden Parque (hoje fundos do Teatro Glória) e descreve-se a baía de Vitória, o Convento de São Benedito do Rosário, o Forte de São João, o Penedo, a Pedra dos Ovos e o Monte Moreno. Antes de subir ao Santuário, cuja Sala dos Milagres tem um barco feito pelo Marinho, quando menino, dá-se na Prainha de Vila velha, encontro com o Desembargador aposentado Getúlio Serrano, cujo guarda-sol é levado pelo vento, sob os impropérios do magistrado: - “Quando o quero fechar é um custo; quando o quero abrir, emperra. É um traste velho... Mas que quer? Pode lá um desembargador, nesta terra, comprar um guarda-chuva? Ainda por cima aposentado. Se mal consegue comer...”. O Eduardo Marinho, atencioso, considera o atraso do Espírito Santo fruto da proximidade do Rio, ao que Serrano retruca que o pouco desenvolvimento decorre da pouca vergonha de nossos homens de Governo.
No que concerne a nosso Estado, este são os principais passos existentes no Dr. Voronoff, que ainda descreve a viagem marítima Vitória-Rio. Pela amostra verifica-se que nos assiste razão quando afirmamos que um estudo da obra do Dr. Madeira de Freitas se faz de mister para conhecimento completo da literatura espírito santense, que, na opinião de Christiano Fraga mereceria seu lugar na história da própria literatura brasileira (Romancista do Espírito Santo, Livraria São José, Rio, s/d).
Este o romance capixaba. E qual o outro que não é tão capixaba assim?
Trata-se de Cabocla de Ribeiro Couto, popularizado, recentemente, pela televisão. Segundo o autor, a personagem principal, carioca da gema, atacado de tuberculose, vem em busca de clima para o Espírito Santo, fazenda de um parente, rico proprietário de Córrego Fundo, perto de Vila da Mata e longe como o diabo.
Viagem de trem: “o comboio, escalando a serra, já se aproximava de Pau D’Alho a quatro léguas da Vila da Mata, apenas a estação, a casa do chefe, o sobradinho do hotel em que dormira, e umas dez casas meio esboroadas”.
Num forde por uma estrada cheia de sulcos (caldeirões de tijuco) chegam à Vila da Mata que se compunha de “uma rua única, comprida e tortuosa, a velha estrada do tempo colonial, ao longo de cujo barro as casas se foram arrumando, até formarem a cabeça da Comarca, já no tempo do Império” e onde havia a praça, rodeada de sobrados. Ao fundo era a Igreja, chata, sólida, pintada de cor de rosa. Repete-se a descrição de pau D’Alho a página 93.
Na praça, chamada de Largo da Matriz, esquina com a Rua Direita, a casa (apenas de andar térreo, com uma longa fila de janelas que os largos beirais da telha-vã protegiam) do rico primo Boanerges, doido por doce de goiaba, Presidente da Câmara, prestigioso chefe político, proprietário de engenho de cana, cafezal e plantação de fumo.
Outras figuras humanas descritas são o Vigário, Padre italiano que faz o vinho da missa, o Capitão Macário, coletor estadual, o Tabelão Xexéu, que toca órgão e é solteirão, o Tenente Raimundo, escrivão de Paz e editor do jornal humorístico “A Abelha”, impresso na Tipografia Aurora. O Juiz de Direito, que fala grosso, zumbindo como um besouro e o Promotor, alagoana, namorador, todos habitués do bate-papo da Farmácia Nossa Senhora Auxiliadora. A festa principal e a de Santa Teresinha, com Te Deum, leilão de prendas, padre do Rio, orquestra Jazz Band Capixaba de Vitória, vinda para baile na Casa da Câmara.
A alimentação é mineira: lombo de porco, couve mal passada. E o vocabulário mineiro e paulista: - Vassuncê fica logo bão”... – “Está falando c’ocê, Nhô Felício”. Zulmira, a cabocla, a Zuza, é noiva do Tobias Oliveira Pinto, mulato fiscal da Câmara, em Vitória. E, no final do romance, para irem a Santa Rita do Alto, na Serra do Caparaó os apaixonados tomam o trem para Vitória de onde continuam para seu destino.
As transcrições demonstram que se trata de um despistamento do autor para situar um romance mineiro em território capixaba: não tivemos nenhuma estrada interiorana nos tempos coloniais (exceto a do Rubim) e as Comarcas ao tempo do Império, eram só Vitória, Itapemirim e São Mateus. Quais as pistas identificatórias em nosso Estado: Bom Jesus do Itabapoana e São José do Calçado? Mimoso e Conceição do Muqui? Ponte do Itabapoana e São Pedro do Itabapoana?
A resposta nos é dada pelo ilustre magistrado Desembargador Homero Mafra, que em carta que nos escreveu informa “Ribeiro Couto foi promotor público em Pouso Alto, cidade bem velha, vizinha de Itanhandu (15 quilômetros apenas, por asfalto). É a mais antiga comarca da região e aí pela década de 20 era grande o movimento do foro, estendendo-se a sua jurisdição por muitos municípios: Itanhandu, Virgínia, São Lourenço, Passa-Quatro, Itamonte, Alagoa, São Sebastião do Rio Verde, e no século passado ia ainda mais longe. Hoje é uma “cidade morta”, de Lobato, à margem da estrada, embora continue Comarca de 3ª entrância. O ambiente de Cabocla é típico da região. As “alturas” são da majestosa Serra da Mantiqueira. Ainda hoje os queijos de Minas continuam sendo despachados para o Rio e São Paulo, acondicionados em jacazinhos de bambu, amorosamente enrolados em folhas novas de bananeiras, que é para não comprometer a maciez da massa branquinha e cremosa, fabricada do melhor leite, bem gordo e denso. Descem da Serra do Garrafão, Serra negra, Sengó, Alagoa, Colina, Morro Grande, Berberia, das grimpas de mais de 1000 e até 2000 metros de altitude, em cargueiros, conduzidos da mesma forma que há 50, 80, 100 anos”.
E conclui o ilustre magistrado “No romance de Ribeiro Couto duas ou três personagens podem identificar-se com pessoas que viveram em Pouso Alto na época em que o escritor andou por lá. O promotor alagoano, muito provavelmente é Alberto Deodato, que é sergipano de nascimento, e foi promotor de Pouso Alto, pelos idos de 20. Ele (Alberto Deodato) registra este fato num livro “Políticos e outros bichos”. Houve apenas a troca de Sergipe por Alagoas, o que para os mineiros da época pouco significava, pois chamavam a todos os que nasciam da Bahia para cima de “nortistas”. O juiz seria certamente o Dr. Ribeiro da Luz, famoso por sua severidade, sisudez, enfim o tipo do juiz fechado, grave e distante. Quanto ao Capitão Macário, viveu em Pouso Alto e advogou pelas comarcas vizinhas, um “provisionado” famoso (rábula) com esse nome”.
Diante desta informação creio que não há dúvida de que Cabocla se passa em Pouso Alto. Rubem Braga, em carta que me escreveu em 9.6.1968, acha que “o provável é que no romance ele tenha misturado personagens e casos acontecidos em vários lugares do interior, como Pouso Alto, Cunha (velha cidade paulista onde também morou), etc. E, com certeza aproveitou melhor tipos e coisas de Pouso Alto”. Pois segundo o grande cronista capixaba Ribeiro Couto passou, efetivamente, uma pequena temporada em uma estaçãozinha do Espírito Santo, na linha Cachoeiro-Vitória: Virgínia, ou Matilde, ou Guiomar. E fez também, em O homem na multidão um poema sobre a estação de Leopoldina em Cachoeiro. “O poema é escrito pelo poeta em trânsito, falando de moças na estação, e achando longo e bonito o nome da cidade”.
Quando nada, mesmo que provada a mineirice de Cabocla, a obra representa imortal homenagem de seu autor à terra que o acolheu um dia, e que por certo, foi relembrada em suas descrições da natureza exuberante.
Fonte: Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo. Nº 31/33. Ano 1980/1982
Autor: Renato Pacheco
Compilação: Walter de Aguiar Filho, dezembro/2011
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