Vasco – Por quê a Ilha do Frade para Valentim Nunes?
Escurece quando a Glória contorna dois cordões de arrecifes e fundeia na foz do Rio Buranhém, diante de Porto Seguro. A noite é comprida. Ansiosos por pisar em terra firme, todos mantêm os olhos abertos na guarda do nascer do sol, vigília que se revela perda de tempo quando um acontecimento inesperado retém a maioria a bordo.
Desde as chibatadas, Maciel Caolho vive num estado pastoso de provisoriedade, corroído por uma raiva silenciosa que o predispõe a fugir na primeira oportunidade. Alta madrugada, vendo chance, pula no mar e nada rumo à silhueta do litoral. Um língua de trapo o denuncia. Temendo novas deserções em terra ou mesmo uma debandada geral dos degredados, Vasco suspende todas as licenças de desembarque, arriando somente uma chalupa para seu uso e dos marinheiros que irão renovar a aguada.
Erguida sobre uma falésia entre dois rios e ladeada por praias margeadas de mata verde, a Vila de Santa Cruz do Porto Seguro é bem maior que Vasco imaginava, e o donatário Pero Tourinho dá uma idéia aproximada do tamanho ao revelar o número de almas que a habitam:
- Some aos seiscentos patrícios que eu trouxe de Lisboa os outros que há mais de trinta anos moram por aqui, suas mulheres índias, os filhos curibocas e a bugralhada que fica num vai-vém do mato para a vila, da vila para o mato, não me servindo para bosteca nenhuma!
Inimigo de descanso e divertimentos, o verborrágico Tourinho sofre de incontinência oratória, falando sem parar e sem pensar nas conseqüências do que fala. Conhece Vasco desde a juventude, gosta dele e o aconselha com franqueza:
- Tomei amor aos Brasis. Era macambúzio no Reino. Aqui não, melancolia não a tem cá senão quem a quiser cavar. Também não se morre de miséria ou inanição como em certos quarteirões de Lisboa e Paris. Só não guarde ilusão com os bugres. Andam todos nus, machos e fêmeas, sem pudor algum das vergonhas. Não têm senso de justiça, não castigam os filhos nem armazenam comida, vivendo da caça, da pesca, da catança de frutas e de plantar umas raízes a que chamam mandioca. Desconhecem o valor do dinheiro e não estimam acumular riquezas, sendo seu único tesouro, calcule que parvoíce, a plumagem da passarada!
- E na guerra, como se portam?
- Combatem numa confusão de motim, porém com destemor e agilidade, disparando seus arcos três ou quatro vezes a cada tiro nosso.
- Então já os enfrentou?
- Numa rusga contra a tribo que recebeu Pedro Álvares Cabral.
- As criaturas dóceis e pacíficas descritas pelo escrivão Vaz de Caminha?
- Pacíficos o fiofó de Judas! Não opuseram resistência na época porque Cabral não deu a conhecer nosso sentimento lusitano de posse. Mais tarde, quando descobriram que Portugal veio para ficar, o pau quebrou! Só sossegaram um pouco com a catequese dos missionários franciscanos. Bom por um lado, ruim por outro. Quero lá saber de trabalho espiritual? A mim interessa o corporal! Que reclame a padralhada, que esperneie Lisboa, em minha terra sou papa e sou rei e quem me serve, serve ao trabalho, sem guardar domingo ou dia santo!
- Homem, esse teu pavio-curto ainda te complica com a Igreja!
- Que complique! Não temo nem Deus, vou lá borrar com falação de padre?
- O que me diz de Duarte de Lemos?
- Um tolo presunçoso. Montou uma feitoria que vive às traças, abrigo de desocupados inimigos do trabalho. O que o gigante e seus asseclas sabem fazer é sonhar com esmeraldas.
- A Sabarabuçu?
- Miragens. Isso não existe. Venha, vamos provar a comidinha de Dona Inês.
A mulher de Tourinho, tão estouvada quanto o marido, serve peixe-boi, que Vasco come pela primeira vez na vida.
- Hummm... Muito bom, lembra vitela! Será que tem peixe-boi na minha capitania?
- Capaz de ter sim. O que sei com certeza que há por lá é bugre brabo e de muitas raças, em especial goitacá, guaymuré e tupiniquim. Fuja dos goitacás. São uns diabos arredios com a guerra no sangue, dos que só se comunicam na ponta da flecha!
- Como reconhecê-los para manter distância?
- Nunca os vi, não os tenho cá, felizmente. Ao que se diz, passam por altos, cabeleira comprida, pele mais clara que a das outras raças. Já os guaymuré são troncudos de quadril largo, tão primitivos que dormem ao relento, deitados em folhagens, uns servindo de travesseiro aos outros. Falam uma língua tapuia que ninguém entende e são muito ferozes. As demais tribos morrem de medo deles.
- E de suas carrancas medonhas!
- Carrancas, Dona Inês?
- Precisa ver. Os encapetados deformam a boca e as orelhas com botoques iguais a um fundo de garrafa, o que lhes vale a alcunha de botocudos.
- Benzadeus! E os tupiniquins, que aparência têm?
- Veja por si.
Dona Inês aponta um casal de índios parado à porta. O homem usa o cabelo cortado na frente como coroa de frade e, atrás, aparado em torno do pescoço. A mulher tem nas orelhas buracos preenchidos por enfeites de osso. Se os tirasse e vestisse roupa de branca, não faria má figura. Ambos estão nus, ela protegendo a genitália com uma tanguinha de sementes coloridas.
- Deixados quietos não são agressivos, mas roubam tudo em que batem os olhos!
- Não por malícia. - ressalva Tourinho - Por ignorarem o conceito de propriedade particular. Na cabeça absurda da bugrada, tudo que existe, terra, coisa, bicho, pode ser usado na hora da precisão, tomado posse não, nunca! Para eles ninguém é dono de nada nesse mundo. Aqui ó! O que é meu é meu e passo fogo em quem se meter a besta!
Nas despedidas, Tourinho embarca Maciel Caolho na chalupa de Vasco.
- Não acoito desertor em minha capitania.
Vasco mira sério no branco do olho são de Maciel e saca o punhal. Maciel empalidece, relaxando quando o punhal é usado para libertar suas mãos da corda que as trazia amarradas.
- De minha parte, caolhinho, tua fuga está perdoada. Entenda-se com os homens que ficaram retidos na Glória por tua causa.
Ousado que é, Vasco tem a tendência de valorizar a ousadia alheia. Disse o que disse, mas não deixa que façam mal a Maciel. Além de amenizar a mágoa no coração do menino, sua atitude produz um inédito desdobramento, estimulando Valentim, o degredado churrasqueiro que torrou a esposa e os amantes, a procurá-lo para uma confissão surpreendente:
- Nunca fui plebeu. Disfarcei minha condição para me proteger na cadeia. Meu nome é Valentim Nunes e sou o Senhor de Mezãofrio. Ou era. Pelo crime que cometi, o rei me destituiu. Não por ter queimado a vaca traidora que me corneou, o capitão sabe que a lei inocenta maridos desonrados. O que me desgraçou foi queimar junto os dois amantes. Um deles era irmão do comandante da Guarda Real.
- Não sabias?
- Sabia, o tinhoso era meu vizinho, mas na hora o sangue me subiu à cabeça. Devia ter dado ouvidos às minhas filhas. Elas me alertaram antes do casamento, "pai, olha o que está a fazer, a fulana não é boa bisca..." Viúvo, doido para fornicar de novo, eu não escutei, deu no que deu.
- Bem estranhei no Restelo a tristeza que tuas filhas demonstravam e a ternura com que o abraçavam, todas de porte, arrumadinhas, aparentando nobreza.
- Boas meninas. Sofreram nas garras da madrasta. Estou me abrindo com o capitão, porque não quero mentiras entre nós. Na missa da Ermida do Restelo, elas me repassaram, às escondidas, vinte mil cruzados em moedas de prata, tudo quanto sobrou da minha fortuna antiga, salvo o dote pago ao Convento da Anunciada para abrigá-las. Trouxe as moedas comigo na pretensão de recomeçar a vida no Brasil. Como sei da prerrogativa que os donatários têm para doar quinhões de terra, gostaria de...
- Receber uma sesmaria?
- Isso! Para montar uma fazenda, engenhos e trazer minhas filhas de Portugal.
Os olhos de Vasco brilham. A essa altura, um colono de posses é uma mão na roda, ainda mais senhor de quatro futuras candidatas a noivas de seus homens.
- Escolheremos de comum acordo a sesmaria que lhe convir.
Por ora, o que tens a fazer, urgente, é trazer suas tralhas cá para cima. Mesmo destituído pelo rei, em meus domínios terás honras de nobre, Dom Valentim Nunes!
Fonte: O Donatário, ano 2014
Autor: Jovany Salles Rey
Compilação: Walter de Aguiar Filho, maio/2015
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