Vitória do Futuro - Por Arlindo Vilaschi Filho
VITÓRIA DE TODOS NÓS: CONSTRUINDO VONTADES PARA O CENTRO
O passado desenhando o presente
Partindo do pressuposto de que refletir para o futuro é construir vontades, parece ser chegada a hora de construirmos vontades que valorizem o sentido de morar em uma cidade como Vitória. Este não é um exercício do qual só tem o privilégio de participar a nossa geração de todas as idades dos dias atuais. Afinal, exercícios de vontades voltadas para a cidade que agora temos foram feitos, pelo menos, em três momentos nestes últimos cem anos.
Há exatamente cem anos, Muniz Freire falava da importância de “... abrir na própria ilha novos espaços para o alargamento do centro populoso, parecendo-me que a esse destino se prestam admiravelmente as grandes planícies situadas a nordeste da baía, gozando do mais belo panorama que há em todos os nossos arredores." O nosso governante-mor de então referia-se às áreas que hoje vão de Jucutuquara até a Praia do Canto. Ali estava desenhada uma vontade de construir um futuro que desse a Vitória uma dimensão econômica maior do que a de simples capital político-administrativa para torná-la um centro comercial capaz de competir com o dinamismo de então de São Mateus e de Cachoeiro de Itapemirim.
Essa vontade centenária tem balizado alterações nas feições de nossa cidade que certamente pareciam impossíveis de serem alcançadas quando formuladas no final do século passado. Dificuldades ocorreram em muitos dos projetos (como foi o caso do Novo Arrabalde) que só passaram a ter as feições econômicas e físicas que conhecemos hoje nos últimos vinte e cinco anos.
Visto por esse ângulo, o segundo momento de destaque na configuração da Vitória de hoje é uma expansão ao mar da vontade acima citada de Muniz Freire de alargar o centro populoso da cidade. O aterro, e posterior urbanização, da Enseada do Suá criaram, a partir dos anos 70, as condições necessárias para que o pólo dinâmico do crescimento da cidade se deslocasse do ‘centro velho' para uma área que tem permitido um profundo redesenho do tecido urbano da capital.
Esse processo de redesenho está em curso e seus resultados sócio-econômicos só serão passíveis de dimensionamento no futuro. Afinal, parte considerável da Enseada do Suá ainda está por ser ocupada fisicamente e os possíveis impactos qualitativos dessa ocupação vêm mudando de intensidade e de sentido. Variáveis novas têm surgido, impossíveis de serem cogitadas quando se pensou no Novo Arrabalde há cem anos e imprevisíveis quando da elaboração, no início da década de 70, do projeto de urbanização da área.
Definições como a de construir um centro de compras de escala regional; a relocalização das sedes dos Poderes Legislativo e Judiciário; e o contínuo adensamento físico e econômico da Enseada do Suá, com possíveis obras como a de um Trade Center, são de passado recente e cujos impactos ainda estão no estágio de amadurecimento. Alguns exercícios feitos no Instituto Jones dos Santos Neves, entretanto, não permitem expectativas muito otimistas quanto à qualidade de circulação na área, caso se mantenham os atuais modelos de ocupação.
O terceiro momento de reflexão para o futuro e de construção de vontades vivido por Vitória nos últimos cem anos foi aquele de implantação de uma mentalidade de planejamento voltado para a ação integrada nos municípios que compõem a Grande Vitória. Uma das diretrizes do processo do planejamento direcionado para a humanização da aglomeração urbana — já no final dos anos 60 identificada como composta por Vitória, Vila Velha, Cariacica, Serra e Viana — era a de desconcentração concentrada.
Ou seja, o processo de ordenamento do crescimento urbano da Grande Vitória passava necessariamente pela mudança do eixo dinâmico de comércio e serviços, até então localizado na área central de Vitória (ou 'velho centro' no linguajar de cem anos atrás). Essa mudança implicava o fortalecimento de algumas áreas de comércio e serviços como a localizada no centro de Vila Velha e em Campo Grande, e na indução do surgimento de uma área comercial e de serviços no planalto de Carapina.
O principal instrumento utilizado para a efetivação desse processo de desconcentração concentrada foi o de redefinição do sistema de transporte público de passageiros. O desenho deste sistema até a década de 80 obedecia a uma lógica radial cujo destino da maioria das viagens se concentrava na área central de Vitória. O novo modelo concebido pelo Plano de Ação Imediata de Transporte e Trânsito, de 1977, serviu de referência para a implantação das linhas troncais do Transcol cujo efeito mais marcante tem sido a acentuada perda de importância do Centro de Vitória enquanto localidade central da Aglomeração Urbana.
Refletindo para o futuro
É importante destacar que os três momentos brevemente analisados acima têm como eixo comum o contínuo esvaziamento do Centro de Vitória enquanto espaço concentrador das principais atividades sócio-político-econômicas do município, da Aglomeração Urbana, do Espírito Santo, e de uma região que vai além dos limites político-administrativos do Estado. Longe de se insinuar que tenha havido alguma 'conspiração' contra o 'centro velho' e que vem se materializando através de planos, projetos e ações ao longo dos últimos cem anos.
A constatação e a explicitação dos vetores que mudaram a fisionomia de nossa cidade nos últimos tempos se fazem como alimentadoras de um novo processo de construir vontades. Vontades que tenham como eixo o redesenho das funções do Centro de Vitória. Vontades que se afirmem através de ações que levem em consideração que o que vem ocorrendo no passado recente com o Centro da cidade não tem paralelo em outras áreas urbanas.
O caso mais próximo poderia ser o do Rio de Janeiro quando deixou de ser capital federal. A não identificação no passado dos ônus sociais de um processo de deterioração progressiva de sua área central em função da perda de algumas funções político-administrativas, faz com que a Cidade Maravilhosa pague hoje um alto preço na recuperação de uma região em fase de intensa degradação.
Por que preocupar-se com o Centro? Em primeiro lugar, porque não existe cidade civilizada sem um centro com peso na construção do projeto cultural que a sociedade que nela habita quer. Para aqueles que quiserem contra-argumentar com os exemplos de Brasília e de Los Angeles, pode-se dizer que é difícil ver nelas exemplos de cidades civilizadas.
Em segundo lugar, porque do ponto de vista sócio-econômico não faz o mínimo sentido permitirmos a deterioração de um patrimônio urbano fruto do investimento sentimental daqueles que habitaram e habitam, e de aplicações financeiras que ainda têm muito retorno para dar à população.
Ou seja, refletir para o futuro construindo vontades de redesenhar sócio, cultural e economicamente o Centro não pode ser visto como simples exercício nostálgico daqueles que lamentam o desaparecimento de referências naturais e/ou construídas do que até hoje chamamos de cidade. Implica também estarmos atentos para os prejuízos financeiros em que incorremos caso continuem sendo permitidas a obsolescência precoce e a progressiva deterioração de consideráveis investimentos em infra-estrutura (sistema viário, saneamento, energia, telecomunicações etc) e imobiliários para os quais todos contribuímos direta e/ou indiretamente.
Construir vontades para o redesenho do Centro de Vitória enquanto uma referência sócio-cultural-econômica para a cidade, para a Grande Vitória, para o Espírito Santo e para a região maior por ele polarizada, passa necessariamente pela recuperação/afirmação de alguns valores que a cidade vem perdendo ao longo dos últimos anos.
Ainda é tempo de recuperarmos/valorizarmos o sentido de morar no Centro. Poucas cidades oferecem tantas áreas agradáveis para a habitação quanto o Centro de Vitória. Seja por sua topografia (o que permite uma 'concorrência' saudável entre morar na Favela de Ouro, em áreas nobres como ao redor do Parque Moscoso ou na região da Catedral, ou próximo ao Canal), seja por sua baixa densidade de ocupação, ainda há muito espaço para o repovoamento do Centro.
Para tanto, faz-se necessário mais carinho por parte das autoridades públicas, não permitindo que as ruas da área central se transformem cada vez mais em depósito de carros durante o dia e em verdadeiros desertos à noite. Mesmo que a atual configuração do Centro não permita que se pense em exclusividade para o uso habitacional na maior parte das suas ruas, a convivência entre os usos habitacional, de comércio e serviços pode ser mais amena para quem lá mora e trabalha.
Basta que se olhe o Centro com os mesmos olhos de qualidade de vida (que implica, dentre outras coisas, o prazer de andar a pé por calçadas bem tratadas e sem automóveis nelas estacionadas; em ruas mais arborizadas e, em muitos casos, exclusivas para o uso de pedestres) que temos utilizado para valorizar, por exemplo, as áreas de praias na região norte de Vitória, Não se trata de ciúme ou de chantagem emocional. É só uma questão de eqüidade na distribuição de atenção e de carinho, também importantes no trato com nossa cidade.
Precisamos, também, recuperar o valor da cidade enquanto local de encontro. Seja o encontro para atividades produtivas; seja para o cada vez mais intenso ato de comprar, seja para a valorização das trocas culturais, característica intrínseca do movimento urbano.
O Centro enquanto local de encontro depende de construirmos vontades na utilização alternativa de algumas de suas áreas. A muito curto prazo é possível — se tivermos vontade — utilizarmos algumas instalações do Porto para aproximarmos mais a cidade do mar e ali criarmos uma nova porta de entrada para o turismo de lazer.
Um armazém sequer, com sua correspondente área do cais, que seja liberado do uso atual poderá servir como varanda ao mar para a cidade. Utilizada como área de comércio e de serviço esta varanda pode abrir espaços para uma nova forma de convivência da cidade, seus habitantes e visitantes, de perto ou de longe, com a baía (espera-se em breve menos poluída). Não seria esta uma forma de valorizarmos as características de ilha de nossa capital?
Por outro lado, edificações que marcam a cidade e que lhe dão feições e caráter absolutamente peculiares, não somente no contexto de Vitória, da Grande Vitória, ou do Espírito Santo, mas também com relação a outros centros urbanos, precisam ter seus usos rapidamente repensados se quisermos valorizar nosso patrimônio edificado. Prédios como o do Saldanha, do Palácio da Justiça, da Assembléia Legislativa, do Palácio Anchieta, da Escola Normal, dentre outros, precisam ser resgatados rapidamente através de uma utilização que os valorize enquanto equipamentos voltados para a informação, para o conhecimento e para a cultura.
Pensados de forma integrada com outros prédios cuja utilização foi redefinida recentemente (como é o caso da FAFI e do antigo prédio da Imprensa Oficial), este conjunto poderá tanto complementar os esforços anteriormente mencionados de resgatar para a cidade o sentido de morar e de local de encontro, quando poderá criar a densidade necessária (a veia de economista chamaria de economia de escala e externalidades) para o surgimento de atividades culturais impossíveis de serem pensada em uma aglomeração urbana pulverizada e dispersa.
Por outro lado, a própria característica física do nosso canal pede que, na construção de vontades para o futuro, se pense na integração das duas margens de nossa baía. Assim como ao transitarmos pelo Centro abraçamos visualmente o Penedo (ainda que sob a guarda enciumada dos vizinhos canela-verdes); assim como vamos ter que incorporar ao nosso circuito cultural o Museu Ferroviário a ser implantado na antiga Pedro Nolasco, também precisamos refletir para o futuro expandindo a cidade na direção da Vila Rubim e dos domínios da CVRD na região de Porto Velho.
Essas duas áreas, até recentemente marginalizadas, tanto do ponto de vista físico quanto econômico, da dinâmica do Centro, devem ser incorporadas a este através de uma utilização nobre. Dada a sua localização privilegiada e o seu valor imobiliário ainda relativamente baixo (principalmente quando comparado com o de suas concorrentes da Zona Norte), a área que vai do de mercado da Vila Rubim até o Sambódromo, do lado de cá, e a que vai da margem sul do canal até a atual Estação da EFVM, do lado de lá, devem ser pensadas em um contexto de utilização enobrecida. Este enobrecimento pode se dar tanto sob a forma de equipamentos metropolitanos (como foi o caso da Rodoviária no passado recente e a possibilidade de valorização da área do antigo Mercado como centro de compras de alimentos variados), quanto sob a forma de uma 'âncora' tipo teleporto/trade center, a ser edificado na região do Tancredão/Porto Velho.
A construção de algumas dessas vontades, por um lado, quebra com a forma recente e negativa de ver o Centro como mero corredor de passagem, seja sob a forma de túneis no maciço central, seja sob a forma de elevados na faixa mais próxima ao mar. Pensar a cidade como mero obstáculo a ser transposto por obras de engenharia que desconhecem seu passado e seu papel no processo de construção cultural é no mínimo querer equalizar o urbano à mera somatória e circulação de veículos com construção civil.
Por outro lado, mesmo reconhecendo o fascínio exercido por este objeto de desejo que é o automóvel, refletir para o futuro construído a partir de vontades de hoje implica a necessidade de aprendermos a contê-los nos limites que impedem que a cidade a ele tudo ceda e que a ele se curve de forma acrítica. Ou seja, a exemplo do que ocorre em centros urbanos que aprendemos a apreciar quando os visitamos, é preciso que parcela ponderável do ônus ambiental provocado pelo automóvel seja paga por aqueles que por ele tanto se fascinam.
De forma semelhante ao que aconteceu com o processo de esvaziamento histórico do Centro de Vitória, o seu redesenho nos termos acima esboçados vai ter que passar necessariamente por repensarmos o sistema de transporte público que vai alimentá-lo no futuro. A construção de vontades voltadas para o resgate e a valorização dos sentidos de morar, encontrar e ‘culturar’ no Centro implica também buscarmos alternativas tecnologicamente mais adequadas à compatibilização da circulação de pessoas pelo Centro com este resgate/valorização. Esta compatibilização é hoje e será cada vez mais no futuro uma possibilidade concreta na medida em que inovações na área de transporte de massa em cidades estão ficando cada vez mais acessíveis econômica e financeiramente.
Refletir para o futuro a partir de construção de vontades que vão além do simples crescimento orgânico da cidade é, antes de uma mera prática de futurologia, um exercício de cidadania para aqueles que temos consciência do privilégio que é aqui viver.
É assim que eu te escrevo, Vitória do futuro.
Fonte: Escritos de Vitória Nº14 Vitória do Futuro, 1996
Autor: Arlindo Vilaschi Filho
Compilação: Walter de Aguiar Filho, setembro 2014
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