A Propaganda Republicana no Sul do Estado
A Propaganda Republicana no Sul do Estado (3)
Quando estudante em Vitória, pelos anos de 1897 ou 1898, certa vez vi meu pai, já então desinteressado da política e novamente votado aos misteres de mestre-escola, a contragosto intervir numa discussão da imprensa, interessada em descobrir os verdadeiros republicanos do estado. Se não me engano, de tão longe, quando não tenho como verificar as explicações então publicadas, o antigo redator de A Folha da Vitória, depois de fazer sentir que o primeiro governo estadual republicano do ilustre Dr. Afonso Cláudio não trepidara em confiar a publicação dos atos oficiais ao patriotismo daquela folha, embora declaradamente órgão do Partido Conservador, concluiu por aconselhar que se não levasse avante a pesquisa iniciada, por ser ainda muito cedo para a imparcialidade do exame de consciência, estando vivos quase todos os políticos militantes dos últimos tempos da monarquia.(4)
Havia seguro fundamento na advertência, pois “na apreciação dos fatos, disse com acerto Euclides da Cunha, o tempo substitui o espaço, para focalização das imagens: - o historiador precisa de certo afastamento dos quadros que contempla”. Não seria eu quem pretendesse agora fazer ressurgir a ingrata polêmica condenada. Testemunha, porém, da doação do importante arquivo particular do velho e venerando republicano Saldanha Marinho, feita por seu digno filho ao Arquivo da Prefeitura do Distrito Federal, vi com prazer entre os papéis catalogados, preciosos documentos da propaganda no sul desta então província. A respeito deles, decidi compor esta ligeira notícia, sem outro intuito senão o de partilhar do trabalho daqueles que, fazendo a devida justiça aos pioneiros da propaganda, protestam contra o juízo dos que ligeiramente pretendem ver na vitória incruenta de 89 simples expansão das tropas ou indigna e inaceitável exploração das forças armadas, diante do povo, bestializado, na frase infeliz de Aristides Lobo, ministro do próprio Governo Provisório. Falando da queda do antigo regime, não é justo repetir timidamente, como Viveiros de Castro, por exemplo, que, “tendo perdido inteiramente a fé no regime monárquico, o povo brasileiro assistiu diferente (e não bestializado) à sua queda porque estava convencido de que não era possível piorar”. Esta é quase a explicação suspeita do príncipe de Orleans no livro Sob o Cruzeiro do Sul: “a verdade é que durante toda a revolução o povo brasileiro, inteiramente alheio ao movimento das classes armadas, permaneceu sob a impressão de um assombro que o impediu de manifestar sua opinião sobre os fatos consumados”.
A propósito ainda dessa frase, dessa crítica, à vista da documentação que vai sendo recolhida, pode-se mesmo admitir a contradita de Alfredo Varela quando, expondo a situação do povo, observa que “a propaganda que há de muito lhe fazia esperar e desejar a República”. (5)
A propaganda fora sincera e elevada. Não importa que os frutos não correspondessem de todo às esperanças da sementeira trabalhada, nem que os sonhos pregados fossem depois em parte desiludidos. Os erros experimentados, as provações curtidas ensinam, talvez, a voltar atrás, a procurar ainda os espíritos restantes da dedicada propaganda, os pregadores devotados da missão, para confiar à pureza de suas convicções arraigadas, à nobreza decisiva dos sentimentos liberais, a obra gloriosa de 15 de novembro, porque afinal, já o disse Rui Barbosa – “a República não precisa de ser elevada à altura de um sonho, para não ser o que é!...”
No sul do Espírito Santo, a propaganda tornou-se notável principalmente no Cachoeiro de Itapemirim, no Alegre e em São José do Calçado. Encontra-se agora dali alguma documentação de interesse.
A 23 de maio de 1887 fundava-se o Clube Republicano de Cachoeiro de Itapemirim. Em ofício de 8 de junho, dirigido a Saldanha Marinho, como “chefe do Poder Executivo do Partido Republicano do Município Neutro”, agradece o presidente do clube as congratulações enviadas por ele, em resposta a notícia da recente fundação, e anuncia aumentar, dia a dia, o número de sócios, contando-se mesmo alguns estrangeiros, “pois o nosso clube, dizia o documento, não distingue nacionalidades nos obreiros do progresso”. O presidente do clube era o ilustre Dr. Joaquim Pires de Amorim.
Da mesma data e de idêntica procedência, outro ofício responde à circular enviada pelo acatado chefe do Partido acerca das deliberações do Congresso Republicano do Município Neutro. (6)
Por cópia autenticada da ata da assembleia geral em 20 de junho de 1887, sabe-se do seguinte resultado da eleição realizada no clube para dois deputados e outros tantos suplentes ao Congresso Nacional Republicano a reunir-se no Município Neutro em 30 do referido mês: deputados – José Romaguera da Cunha Correia e Henrique Deslandes, por 16 votos, ambos residentes no Rio. Para suplentes foram designados o Dr. Raimundo de Sá Vale, por 16 votos, e o Dr. Eugênio Valadão Catta Pretta, por 10. O Dr. Júlio Borges Diniz obtivera apenas 6 votos. Dessa cópia, além da assinatura do citado presidente, consta, como secretário, a de João de Loiola, o proprietário do velho O Cachoeirano.
Na sessão comemorativa do aniversário da fundação do clube, em 23 de maio de 1888, foi eleita a nova diretoria, assim constituída: presidente Dr. Antônio Gomes Aguirre; secretário, farmacêutico Bernardo Horta de Araújo; tesoureiro, Henrique Wanderley; e subsecretário, João de Loiola. Essa notícia era trazida por ofício de 9 de junho de 1888, quando se anunciavam, para o mesmo mês, as primeiras conferências de propaganda. Bernardo Horta, secretário, na comunicação usava da expressiva fórmula “paz e fraternidade”. (7)
Outro ofício significativo, de 26 de junho de 1888, respondendo à circular de 10, afirma solidariedade no dever de hostilizar francamente o terceiro reinado “em todo e qualquer terreno”. Dizendo em seguida a revolução de só votar em correligionários indicados por escrutínio prévio, ilustrava logo: “O exemplo recentemente dado pelo Clube Republicano Rio-Grandense, da eliminação de republicanos que auxiliarem candidatos monarquistas, nós já o praticamos em 18 de janeiro de 1888 com um associado nosso que teve igual procedimento”. (8)
Com esse mesmo ofício figura a cópia da ata da eleição dos representantes do clube ao congresso republicano, no biênio 1889-90, tendo sido reeleitos por maioria absoluta de votos os mesmos deputados, e como suplentes, desta vez, Leopoldo Rocha e o Dr. Raimundo de Sá Vale.
Em aditamento há uma lista de 37 nomes, tantos eram os sócios naquele tempo.
Ao Instituto Histórico do estado cabe promover a cópia dessa relação honrosa e de todos os citados documentos da valiosa “Coleção Saldanha Marinho”, quando não seja mais possível obter o próprio arquivo do operoso Clube Republicano do Itapemirim;(9) nisso haveria um gesto nobre de patriotismo, enaltecendo e venerando nomes dos lutadores da hora incerta do perigo, os paladinos desinteressados da democracia, como fácil recompensa merecida e preito devido. (10)
Do mesmo clube há ainda um ofício nº 30 de 8 de agosto de 1888. É longo e de interesse. Começa por se referir à publicação no órgão do partido, O Cachoeirano, das bases para a reunião do Congresso Provincial que teria de eleger cinco delegados ao Federal; a respeito do assunto, a diretoria se comunicava com as seguintes localidades “onde existem, dizia, quer clubes, quer núcleos republicanos: Anchieta, Vitória, São Mateus, Alfredo Chaves, Vila do Itapemirim, Alegre, Calçado, Itabapoana, Conceição do Muqui, Rio Pardo e Espírito Santo do Rio Pardo”.(11) Anunciava para o dia 15 próximo a instalação de um novo clube em Conceição do Muqui e para o dia 19 a de outro em São Pedro de Itabapoana, seguidos de mais dois: um no Castelo e outro no Espírito Santo do Rio Pardo.
O trabalho desenvolvido no Cachoeiro refletia-se no Calçado com notória vantagem.
A moção congratulatória que, pela Abolição, dirigira o Clube Republicano Tiradentes Calçadense a Saldanha Marinho e a Quintino Bocaiúva traz as assinaturas do Dr. Germano Chaves Tiradentes, como presidente; de Pedro J. Fernandes Medeiros, como vice-presidente; do 1º secretário, Aureliano Medina; do 2º secretário, João Guilherme de Souza; do procurador, Marcolino Celestino Vieira; e de mais 22 sócios.
Do Clube Republicano São João da Escócia, fundado na freguesia de São Pedro de Alcântara do Rio Pardo, em 24 de junho de 1888, por iniciativa do capitão Francisco Lopes Pimenta e do tenente Florentino Gomes da Silva Laura, existe uma comunicação em manifesto de 30 de julho dizendo constituída a direção, tendo o último como presidente, Domingos José de Oliveira como secretário, o capitão Carlos Rodrigues Pereira, subsecretário, e Tibúrcio Ribeiro Velasco, como tesoureiro.
Há, finalmente, curiosa carta de certo lavrador republicano do município, pedindo para inserir aqui no O País reclamações que formula acerca de uma questão particular por medição de terras. Falando energicamente de haverem sido todos “roubados com os pretos com a má lei de 13 de maio”, depois de dizer mesmo que a monarquia “só serviu para iludir a lavoura”, conclui por afiançar – que, por isso, a do município do Cachoeiro de Itapemirim era toda republicana: “ficamos pobres, referia, e por isso a monarquia tome rumo; o governo deve ser feito pelo povo”.(12)
Aí está um depoimento que deve interessar a quantos, esquecendo a evidente corrupção visceral do próprio organismo, o malogro da instituição que não condizia com os sentimentos do povo, com as aspirações liberais traduzidas de modo eloquente, em repetidos feitos gloriosos, buscam só atribuir a queda do Império ao explorado desgosto dos militares, ao despeito do clero, e sobretudo, ao prejuízo sofrido pelos poderes e ricos senhores de escravos...(13)
Muito longe disso: a República da propaganda vinha sendo sonhada desde 1789, chegou a concretizar-se um dia no norte, na generosa revolução de 1817, e depois, no sul, em 1836, na República Piratini. Idealizada pelo espírito superior de José Bonifácio, só por julgar ainda inevitável ao tempo a escravidão, não se decidiu por ela o patriarca quando orientou a obra de 22 – a independência da Pátria.
NOTAS
(3) – [Recorte do jornal] Diário da Manhã, Vitória, 24 de janeiro de 1918. No mesmo Diário da Manhã, nº 107, em dezembro de 1916, escrevi “A Independência na antiga Capitania”. – Vide Vida Capichaba, 15 de novembro de 1925. [O autor refere-se a seu artigo “Principais clubes republicanos no sul do estado”, reproduzido adiante].
(4) – Na vila de São Carlos (Campinas), vereadores que se diziam “republicanos” em 9 de julho de 1808 atestavam a irrepreensível conduta do padre Diogo Antônio Feijó, enquanto se preparava para o estado eclesiástico, dava aulas de gramática latina (Otávio Tarquínio de Souza, Diogo Antônio Feijó, 18). – Apurou Beneventino (Dr. Eurípedes Queiroz do Valle) que os escravos de um português, em Guarapari, ao saberem-se no falecido em Portugal, apoderaram-se da respectiva fazenda, declararam-se libertos, e se constituíram em República. Seriam mais de 200. O fato teria ocorrido em 1834 [em 1819, na verdade], e afirma referido vagamente no Dicionário Histórico e Geográfico. Registrou-o o príncipe de Wied-Neuwied [em sua visita de 1819 à capitania]. – Em 24 de abril de 1884, no Centro Abolicionista, de Vitória, “Peçanha Póvoa” e, depois, “João Clímaco” (nome do deputado pelo Espírito Santo, autor de um projeto de abolição), compareceu a republicana dona Isabel Santos, parenta de João Clímaco, casada com o escrivão e tabelião Martinho dos Santos. Bordou depois o estandarte da sociedade (Folha da Vitória, [sem data] abril e 22 de maio de 1884).
(5) – Amâncio Pereira refere a fundação, em Vitória, do Clube Republicano “Saldanha Marinho” em 1879, por ele e outros alunos do Ateneu Provincial, entre os quais Antônio Ataíde, Urbano de Vasconcelos, Eduardo e Luiz Chapot, José Gameiro, Edgardo Daemon, Lídio Mululo, Pedro Lírio, Antônio Rodrigues de Miranda, Cândido de Santana, Virgílio Moraes, Tito Costa, Virgílio Barbosa.
(6) – De 5 de julho de 1887, o manifesto desse Congresso preconizava: a federação; descentralização administrativa; o sufrágio universal; a liberdade religiosa, de pensamento e de ensino; abolição de privilégios pessoais e títulos nobiliárquicos; o poder jurídico, delegação ou soberania nacional e outras conquistas modernas (Felício Buarque, Origens Republicanas, 88.)
(7) – [Trecho retirado: “mais elevada e mais séria de que o pitoresco modernismo pachola da ‘paz e amor”].
(8) – No ofício, aqui citado, de 26 de junho de 1888, o Clube Republicano do Cachoeiro de Itapemirim referia-se aos do Alegre e de São José do Calçado. – Descrevendo apressadamente a proclamação da República no Diário Popular de São Paulo em 18 de novembro de 1889, Aristides Lobo escreveu o seguinte: “O povo assistiu aquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava” (apud Afonso Celso, Visconde de Ouro Preto, 398-9).
(9) – [Não seria Clube Republicano de Cachoeiro de Itapemirim?].
(10) – [Trecho retirado: “já que o regime afinal só veio aproveitar, como no provérbio popular, a quem não se deu ao trabalho perigoso e fatigante de fazer o bocado”].
(11) – Fala de um artigo publicado, por aqueles dias, no O País, acerca da propaganda na província. [Rio Pardo, atual Iúna e Espírito Santo do Rio Pardo, agora Muniz Freire]
(12) – Protesto semelhante a propósito da lei de 1871 (Nabuco, Estadista).
(13) – Instalou-se no Rio, a 1 de maio de 1889, o Congresso do Partido Liberal que adotou a ideia da federação. – Atacado em 16 de agosto de 1889 o Clube Republicano de Benevente, recordava a Folha da Vitória em 22 de junho de 1890: o fato ocorrera durante a conferência de Coelho Lisboa, comemorativa do aniversário do clube, provocado por capangas do governo liberal. – “Muito poucas nações estão preparadas para o sistema de governo para que se caminha; e eu, de certo poderia ser melhor e mais feliz presidente da República do que imperador constitucional”, escrevera Pedro II à Barral.
Fonte: A República no Espírito Santo e outros estudos, IHGES – 2017
Autor: Mário Aristides Freire; organização de Fernando Achiamé
Compilação: Walter de Aguiar Filho, outubro/2018
Pero de Magalhães de Gândavo, autor da 1ª História do Brasil, em português, impressa em Lisboa, no ano de 1576
Ver ArtigoA obra de Graça Aranha, escrita no Espírito Santo, foi o primeiro impulso do atual movimento literário brasileiro
Ver ArtigoPara prover às despesas Vasco Coutinho vendeu a quinta de Alenquer à Real Fazenda
Ver ArtigoNo final do século XIX, principalmente por causa da produção cafeeira, o Brasil, e o Espírito Santo, em particular, passaram por profundas transformações
Ver ArtigoO nome, Espírito Santo, para a capitania, está estabelecido devido a chegada de Vasco Coutinho num domingo de Pentecoste, 23 de maio de 1535, dia da festa cristã do Divino Espírito Santo, entretanto...
Ver Artigo