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Ao encontro da Surucucu – Por Auguste François Biard (Parte V)

A cobra surucucu que Biard encontrou na mata de Santa Cruz, ES

Em caminho vim imaginando o desenho dessa festa grotesca, mas para levá-lo a efeito precisava de pormenores que só me seria dado obter com o auxílio do Sr. X. Dessa vez ele me cedeu um dos seus índios. Digo assim porque é costume na província do Espírito Santo tomar-se conta dessas criaturas desde meninos, embora pertençam a alguma instituição orfanológica; comprometem-se a criá-los e vigiá-los até uma determinada idade, não como escravos, mas apenas como empregados. A começo obtive generosamente um modelo para meu quadro, porém depois tudo transcorreu como anteriormente: os pormenores, o chapéu de sol vermelho, os tambores, a vestimenta, o chapéu de dois bicos com o emblema cor de cerejas, nada pude obter e tive de suspender o trabalho.

É de imaginar os desgostos que me traziam esses entraves, enquanto o tempo corria. Afinal, um dia recebi uma carta do bondoso Sr. Taunay, verdadeiro contraste do espírito malevolente do italiano que me hospedava. Uma espécie de pressentimento, não há dúvida, levara o Sr. Taunay a me enviar algum dinheiro. Desde o nosso primeiro e feliz encontro calculei que, no decorrer desta minha história, o seu nome se ofereceria várias vezes à minha pena, porque nunca, em minhas relações com esse digno homem, houve entre nós qualquer motivo de desconfiança. A soma que me remetera não seria bastante para permitir a continuação de minha viagem, mas, quando já pensava em dar por finda a excursão, me vem às mãos outra importância maior e logo depois uma terceira remessa. Ele me enviara esse dinheiro propositadamente em parcelas, a fim de evitar que, dando-se um extravio no caminho, o prejuízo não me fosse total.

 

Achava-me finalmente bem provido monetariamente e restava-me agora obter uma canoa e alguns homens para me tirarem daquela casa de maribondos, e, enquanto não me chegava o momento de partida, ia aumentando minhas coleções. Haviam botado abaixo muitas árvores numa vasta extensão de terreno, e era ali que eu apanhava os insetos porque o sol os atrai mais do que a sombra das matas. Depois de abatidas as árvores preparavam-se para lançar-lhes fogo, rematando a obra destruidora do machado; para tal, entretanto, era mister aguardar certas condições favoráveis como fossem um dia bem quente e um vento de leste. Certa manhã me vieram prevenir de que se me ofereceria o espetáculo da queimada e tratei logo de me colocar num ponto em que pudesse reproduzir numa tela essa cena grandiosa. Todos os servidores na casa afluíram igualmente para assistir à queimada, atraídos pela curiosidade e não menos pela cachaça que é distribuída nesses momentos. Embora me visse embaraçado por alguns instantes em escolher bom lugar, coloquei-me convenientemente entre a assistência. A um só tempo inflamaram-se os velhos troncos, os montes de galhos, as folhas secas, tudo aquilo que durante os seis meses estivera exposto aos raios solares. Cada criado com um facho alimentava as chamas onde elas davam sinal de esmorecimento. E esses homens pretos e vermelhos, movimentando-se entre as labaredas, davam uma idéia de feiticeiros numa cena de sabat. As chamas serpenteando pelos cimos das árvores não derrubadas simulavam inúmeras gigantescas tochas, e de tal modo os turbilhões de fogo se multiplicavam que eu não sabia como principiar a pintá-los. Eu me encostara a um tronco de árvore há tempos abatida e tão grosso que o deixaram no ponto em que caíra antigamente. Essa escolha quase me foi fatal, pois, enquanto estava a pintar, rapidamente o vento mudou de direção e as labaredas avançaram para meu lado. Vi-me coberto de centelhas a me queimar a pele e quase me atingiam os olhos; sem poder cerrá-los, porque tinha de procurar caminho para a fuga, ainda por cima me vi em dificuldades para transpor o tronco que me servira de abrigo, o qual tinha mais de quatro metros de grossura e mais de 20 de comprimento. Corri ao longo dele, deixando em abandono meu chapéu e meu banco portátil, mas salvei milagrosamente a caixa de tintas e o papel. Cheguei a casa coberto de cinzas, que a custo me saíram do corpo e da roupa. Uma chuva inesperada veio diminuir o efeito da queimada; muitos galhos ficaram meio consumidos pelo fogo.

À noite voltei ao local do incêndio e, dessa vez, sentado à vontade, pude contemplar sem riscos o admirável espetáculo: entre aquelas árvores queimadas existiam outras ainda de pé, esperando apenas que o vento as derrubasse, uma vez que o fogo as ia corroendo pelas bases pouco a pouco. Eu fechava por instantes os olhos, enquanto o fogo prosseguia no seu trabalho de solapamento; esperava ouvir o fragor do tronco vindo ao chão. O estrépito da queda era repetido pelo eco; nuvens de cinza e de fagulhas se erguiam para o céu e ao longe gritos cortavam os ares, sem dúvida de onças e de macacos abandonando amedrontados suas antigas moradas. O homem selvagem já cedera o passo à civilização; agora era o turno dos animais. Mais tarde viriam outros invasores tomar conta destas terras que hoje estavam sendo desbastadas. Ao ver por todos os lados caírem ao solo aquelas árvores, meu pensamento andava longe da cena que se me apresentava aos olhos.

Presenciara inúmeras vezes discussões políticas, nem sempre compreendidas direito. Diziam uns que o Brasil seria um dia presa de aventureiros americanos; afirmavam outros que em breve o Norte se separaria do Sul, tornando-se uma república, forma de governo aliás que o resto acabaria também adotando. Sobretudo achavam que tais acontecimentos seriam conseqüências da dificuldade de se substituir a raça negra, máxime não houvesse um auxílio de colonos. Faltavam braços e que futuro poderia ter uma terra que não produzisse? Ouvira muitas outras coisas e talvez todos, ao mesmo tempo, tivessem razões. Por minha parte, depois que passara a viver nas florestas, arriscava também minha opinião política, a meu jeito, e minhas reflexões, desta vez, encontravam berço na história das invasões.

O Brasil fora conquistado pelos portugueses; por algum tempo os holandeses dominaram aqui, mas depois os portugueses conseguiram desalojá-los; da fusão destes últimos com os indígenas se originou a raça brasileira. As tribos selvagens foram pouco a pouco se refugiando no interior do País e, dizem, virá uma época em que outros povos substituirão os brasileiros. De mim julgava que, se tal acontecer, inevitáveis inimigos, a seu tempo, porão em fuga vencedores e vencidos e ficarão unicamente os senhores desta bela e magnífica terra. Incontáveis legiões cavam há anos minas subterrâneas; exércitos mais numerosos que as areias das praias se espalham sem que possam ser contidos; tangidos de um lado, eles voltam mais encarniçados de outra parte. Eis os verdadeiros inimigos do Brasil: os que têm compelido tribos inteiras a se mudar de uma zona para outra, abandonando suas casas e o solo em que nasceram – são as formigas. Falo seriamente: vi móveis maciços e enormes portas de madeira resistente como o ferro se desmancharem em pó; vi plantações devastadas numa noite. As formigas dividem-se em dois grupos: um deles trepa as árvores e corta-lhes as folhas; o outro carrega a colheita para seus abrigos. Constroem formigueiros tão grandes que não se podem descrever e chegam a causar medo. Presenciei os preparativos de combate a um montículo que era a “panela” de um formigueiro tão numeroso que a um quarto de légua de distância ainda se encontravam ramificações subterrâneas. Ao cair da noite esses exércitos saem dos buracos e a eles regressam carregados. O combate aos bichinhos terríveis é feito com o auxilio de toda a espécie de matérias combustíveis; os índios, armados de varas, remexem as entradas dos formigueiros e lançam-lhes fogo no interior, destruindo os ovos que às vezes formam volumes maiores do que elefantes. As formigas fogem dos esconderijos tontas pela fumaça, enquanto os ovos crepitam. Porém, passado um mês, os formigueiros estão novamente formados. Não se pode andar nas matas sem se encontrar verdadeiros tapetes de folhas verdes cortadas pelas formigas e por elas transportadas. A princípio, ao ver aquelas folhas em marcha, julguei se tratasse de uma espécie de insetos. Os bandos chegam a interceptar a passagem dos pés humanos. Se encontram a meio do caminho um galho ou um tronco, elas os transpõem umas atrás das outras. Quem quiser colher uma orquídea deve antes de tocá-la se prevenir. Ganhei experiência própria: as formigas lá se acham aninhadas nas flores. Costumam-se ver, por todos os lados, no chão, nas árvores, umas protuberâncias escuras, duras, espessas, de 4 e 6 pés de altura; fazei-lhes um furo e de dentro sairão legiões de formigas armadas de venenosas mandíbulas. Não se pode imaginar bem as precauções que me foi necessário tomar para proteger minhas coleções desses bichinhos terríveis; não menos minha comida e a água que bebia... Eles se metiam por toda parte e tive um dia a prova, bem triste, do quanto de mal podiam produzir. Certa vez, querendo apanhar um ninho, vi-me coberto de formigas da cabeça aos pés. E penso já haver dito bastante acerca deste assunto, ao qual não terei, tão cedo, oportunidade de voltar.

Meti-me um dia a visitar o sertão, na região do rio Doce onde vivem os botocudos. Não ignorava as dificuldades que teria de enfrentar, mas tomei precauções; caminhamos dois dias sempre dentro da mata, mas por veredas abertas pelos pés humanos. Antes que tudo era preciso reunir os índios que deviam fazer a viagem comigo. Se de Vitória a Santa Cruz várias ocasiões tivemos de nos meter dentro d’água, desta vez era na lama que deveríamos andar; freqüentemente tínhamos de puxar os cavalos atolados até as barrigas... Quanto mais avançávamos, mais as árvores aumentavam de porte; atravessamos clareiras onde cada árvore tinha a sua copa inteiramente florida; de quando em quando me apeava para caçar alguns pássaros. Dormimos numa barraca semelhante às que são armadas pelos trabalhadores de estradas, e apesar dos seus inconvenientes meu sono foi tranqüilo, embora perto houvesse uma estrepitosa cascata. No segundo dia de jornada atingimos uma cabana habitada por índios que procuravam por ali o jacarandá; os troncos dessa madeira eram arrastados por bois, até à beira do rio. Havia em re - dor dessa habitação baixas de capim para esses animais. Eles são de tal modo necessários ali para o trabalho que o meu amável hospedeiro preferia privar-se de beber leite a ter uma só vaca que comesse o capim reservado aos bois.

Como eu caminhava muitas vezes a pé, confiara meu cavalo a um índio: este seguira na frente e não se preocupou mais comigo, de modo que tive de me agüentar, assim, pela detestável estrada, até o fim do percurso, chegando todo enlameado, muito cansado; isto, todavia, não me impediu de tratar logo do embalsamamento das aves que matara. Deitei-me numas tábuas. Os índios, não satisfeitos com o calor que fazia, atearam mais uma enorme fogueira perto da qual se deitaram. Quase morri abafado e assaltaram-me pesadelos. Ao clarear, partimos de novo; desta vez com o propósito de explorar matas mais impenetráveis do que aquelas por onde já tínhamos andado. Cada um de nós se armou com uma machadinha e golpeava, derrubando para um lado e para outro. As aranhas desalojadas caíam-nos em cima, e houve ocasiões de ficar com uma dúzia delas agarradas ao corpo e ao rosto. Após termos vencido longo trecho, desta maneira, vencendo ligeira ladeira, atingimos rampas tão íngremes que não as podíamos subir sem auxilio das árvores e dos cipós. Enquanto realizávamos essa ascensão, os cães que nos acompanhavam faziam exercícios de caça: certa ocasião latiram de tal modo que julgamos terem feito algum sensacional encontro. Era um quati; antes de ser morto havia rasgado a barriga de dois dos seus agressores. A premência do tempo não permitiu que os índios derrubassem uma árvore onde havia uma colméia; o fato contrariou bastante pois contavam se aproveitar do mel. As abelhas tinham feito na árvore um buraco como a boca de uma corneta. À medida que avançávamos, mais áspero se ia tornando o caminho, retardando-nos os passos.

Os braços sentiam-se cansados de manejar as machadinhas; vimo-nos dentro de um bambual cerradíssimo; abrimos uma passagem a muito custo, ferindo-nos bastante, sobretudo nos pés, porque tínhamos de caminhar sobre inúmeros galhos que cobriam o chão. Atingimos um riacho sem nome; ele corria muito abaixo do ponto em que nos encontrávamos. Para chegar-lhe perto era necessário nos suspendermos aos ramos das árvores com risco de nos arrebentarmos todos se os pontos de apoio falhassem. Eu já me acostumara com as contusões; meus pés estavam mais ou menos sarados; e, assim, pulei como vira os outros pularem. Quando chegamos lá em baixo, todos se encontravam estafados sem poder dar um passo a mais; sentamo-nos em pleno sol num monte de areia e ali descansamos e almoçamos. Resolveu-se, durante essa etapa, que, se não se conseguisse voltar à mata, tentar-se-ia subir o riacho, o que se fez. A princípio eu não tinha água senão até a cintura, mas ao cabo de mais algum tempo fui obrigado a me despir todo e a fazer da roupa um embrulho, que amarrei às costas com a espingarda. Não era cômodo esse trambolho para viajar, tanto mais quando ia aumentando o peso com os meus utensílios de caçador; veio-me arrependimento de tê-los levado. Todos os esforços eram necessários para não molhar minha bagagem, o que nem sempre era fácil conseguir. Acompanhava de longe os companheiros e, quando a água não me chegava ao pescoço, erguia os braços e fazia vagarosamente um esboço, lamentando não viesse atrás de mim um colega de pintura para apanhar minha figura, assim metido n’água, com a roupa e a espingarda penduradas às costas, e de braços no ar a desenhar. Seria muito pitoresco. Não me detinha a desenhar aspectos já familiares, mas ao transpor um trecho bosquejado de bambus e enfeitado de trepadeiras, quando divisava as orquídeas a se balançarem como os lustres de uma catedral, sem quase se distinguir os delgados cipós que as sustinham, não podia deixar de deter os passos e desenhar; realizava apenas um croqui numa proporção relativa de cada margem, porque os braços elevados depressa se fatigavam e tinha de deixar o trabalho mal iniciado. Após algumas horas desse passeio aquático, principiamos a encontrar obstáculos: troncos de árvores, grandes pedras. Era forçoso voltar às matas e como nessa época as enchentes encharcam as terras marginais, quando tentávamos um solo firme, atolávamo-nos na lama até as coxas. E bem de sorte nos julgávamos ao descobrir esses caminhozinhos feitos pelas antas para irem matar a sede nos rios. Percorríamos alguns quilômetros por dentro da mata, com dificuldades, pois nem podíamos manejar os machados, e, depois, reentrávamos no rio. Como meu vestuário era dos mais rudimentares, meu corpo se enchia de arranhões. Mas, íamos caminhando por essa líquida estrada, como patos, enquanto as águas só nos atingiam os queixos. E o dia todo decorreu assim, a subir esse riozinho, com intervalos de caminhadas pela mata. Já quase no fim da jornada, um índio que ia na minha frente fez-me parar, estendendo a mão: um enorme tronco barrava-nos a passagem. Esse índio só tinha o seu revólver a proteger da água e sempre o conservava protegido; apontou a arma para qualquer coisa que eu não distinguira ainda e atirou. O que me apareceu então fez-me recuar tão precipitadamente que caí num espinheiro. A dor fez com que me levantasse o mais rápido possível, tanto mais quanto eu estava em presença, pela primeira vez, de uma terrível surucucu, serpente venenosíssima. Porém ela se achava mortalmente ferida. Tinha bem uma dúzia de pés de comprimento; com a cauda quebrava tudo ao seu alcance; a cabeça, do tamanho de um focinho de porco, ainda se erguia e fazia esforços para se atirar contra nós, mas em vão porque estava com a coluna vertebral partida. Ainda me lembro, como se fosse hoje, da impressão que me causou aquela goela escancarada, mostrando dois ferrões venenosos, que, uma vez atingindo alguém, lhe dá uma morte quase instantânea. Debateu-se a cobra por espaço de meia hora. Os índios queriam esmagá-la, mas me opus por desejar levá-la comigo o mais perfeita possível. Quando a vimos inerte, cortei um cipó e me aproximei, pois não pensava sequer em pedir aos índios para me ajudar nesse trabalho; fi-lo com todas as precauções, mexi-lhe com o cipó na cabeça e, certo de que se achava mesmo morta, amarrei-a pelo pescoço. Em silêncio os índios me observavam. Pus-me a arrastar o monstro, o que não me era muito cômodo, porquanto já levava outras coisas pesadas às costas. Contudo o índio que matara a serpente e que, entre parênteses, fora o meu único modelo, me auxiliou um pouco, foi-me bem útil, pois talvez sozinho não conseguisse realizar o meu intento de conduzir o monstruoso animal. Afinal chegáramos a um sítio em que teríamos definitivamente de abandonar o rio. Eu tinha os pés de tal modo inchados que muito me custou enfiar as botinas. Não obstante as cautelas tomadas, a bagagem se molhara toda e a pólvora se inutilizara.

A caminhada pela mata foi longa; meti-me de novo nas roupas, embora encharcadas d’água; e recomeçamos a luta contra os cipós e os espinhos. Os índios, com seu instinto de bichos do mato, nos guiavam direito, apesar da escuridão; todavia, de quando em quando esbarrávamos em obstáculos. Animais quase invisíveis corriam diante de nossos passos; os cães mantinham-se aos nossos lados; por toda parte viam-se sombras aterrorizadoras; bem assim luzes erradias parecidas com os fogos fátuos que metem medo aos viajantes. Tive a curiosidade de conhecer a razão dessas luzes; mexi nuns troncos apodrecidos e apanhei uma porção de vermes brilhantes. Mais tarde quando quis ver-lhes o efeito o fósforo havia desaparecido.

Ora sozinho, ora com o auxílio do índio, conseguira arrastar a surucucu, e ao darmos com uma clareira na mata, achando-nos perto de uma habitação, os outros indígenas me pediram para deixar ali a serpente a fim de não atrair, com o cheiro do sangue, outros animais da mesma espécie. Atendi ao pedido, mas na manhã seguinte, com meu escalpelo e meu canivete, entreguei-me ao trabalho pretendido. Amarrei a surucucu num alto galho e, depois de lhe ter cortado a cabeça, coloquei-a num grande frasco cheio de álcool. Quando os selvagens compreenderam o que eu ia fazer, meteram-se na mata e de longe acompanhavam com seus olhos assustados minha tarefa de arrancar o couro da cobra. Terminada a operação, todos voltaram à cabana e, apesar de lhes afirmar que não havia encontrado nenhum ferrão na cauda do réptil, ninguém acreditou em mim. Ao findar esse serviço, verifiquei, com tristeza, haver perdido meus óculos. Cometera a imprudência de não ter levado outros sobressalentes, mas apenas vidros, e fiz esforços vãos para ajustá-los aos olhos. Minhas habilidades óticas estavam quase esgotadas quando me trouxeram afinal os óculos que perdera.

Dias após, a desconfortável casa que me agasalhava recebeu novos hóspedes. Trouxeram numa rede, gravemente enfermo em conseqüência da longa excursão que fizéramos por dentro do rio, um dos índios, e, também, outro, quase morto. Este era o pobre Almeida, o que matara a cobra e me ajudara a trazê-la. Dois dias decorridos, ele morria. Soube, ao me levantar, que tinham avisado aos parentes, e esses viriam sem demora buscar o cadáver. Como não conseguira pintar índios vivos, vali-me da triste oportunidade para pintar um selvagem morto e, nesse propósito, fui até ao aposento onde haviam colocado, sobre duas tábuas, o inditoso rapaz. Servia-lhe de cama habitual velha esteira. Deitaram-no com as mãos em cruz no peito; vestiram-lhe uma blusa azulada, mas conservava as coxas e as pernas nuas. Ao lado desse compartimento de casa ficava a cozinha e ali os companheiros do defunto conversavam e riam, enquanto numa fogueira assavam peixes. Ao pé do cadáver, Rosa, sua mãe, entoava baixinho uma oração, sem que, contudo, deixasse de ir de quando em quando buscar um peixe na cozinha, voltando a mastigá-lo. Fora meu intento, ao ir fazer o meu desenho, retirar-me logo chegassem os parentes do morto; surpreendeu-me, porém, notar que a mãe dele não só nada tivera que me dizer a respeito do trabalho que eu executava como até me forneceu alguns objetos de que necessitara e lhe pedira. Não era, portanto, verdadeira minha suposição de encontrar quaisquer entraves à pintura e, por isso, tratei de aproveitar do melhor modo o meu tempo. Estava a terminar quando ouvi o anúncio de virem próximo os índios. Apressei o trabalho, com pesar, o que não obstou a intervenção intempestiva e grosseira do meu hospedeiro: “Vamos, vamos, acabe com isso; retire-se!” E ao lhe ponderar que a mãe do selvagem falecido nada tivera a alegar contra meu desenho, o homenzinho replicou aos berros: “Termine essa história de uma vez. Quero lá me indispor com os índios por sua causa?” Perco a serenidade quando me perturbam o trabalho, e para transbordar minha paciência não precisava tanto. A indignação há muito contida explodiu e, agarrando tudo quanto levara para aquela câmara mortuária, passei pela frente daquele tipo que tantas vezes me havia provocado, sem lhe dar uma palavra, mas jurando a mim mesmo preferir morrer dentro das matas a permanecer mais um dia sob seu teto. Entrei no meu quarto, arrumei as bagagens, pus a chave das malas no bolso e retirei-me para não mais voltar. “Sim, dizia com meus botões, embora sucumba de fome, sede e cansaço, é preferível tudo a essa ignóbil hospitalidade.” Na véspera, ao caçar, colhera umas vinte goiabas; sentei-me perto de um regato e ali fiz frugal refeição; depois continuei a andar por entre os arvoredos. Caía a noite; ouvia já sons bem conhecidos; sentia-me fatigadíssimo. Fui fraquejando nos propósitos que me haviam encorajado até agora. Se não saísse depressa da mata, teria de dormir ali, deitado no chão, o que não seria nem agradável nem seguro. Felizmente alcançara uma clareira; em roda, árvores derrubadas: um roçado onde já brotavam mandiocais. Uma cabana mais parecida com uma gaiola em começo de construção me apareceu; não vi nem ouvi a ninguém. Ao penetrar nela, vários animais espantados fugiram e foram se esconder no escuro da noite. Conseguira um abrigo, afinal! Fui me deitar sob a parte já coberta e malgrado a fome dormi perfeitamente até o amanhecer, quando fora despertado por um bando de morcegos a me roçarem o rosto com as asas. Ergui-me de rompante, tentando agarrar um deles, espécie que me falta na coleção. Esqueci-me por instante de minha deplorável situação e somente dela tive noção exata depois de haver fracassado minha caça aos morcegos. Sabia que para aquelas bandas existiam algumas habitações espalhadas, mas nunca dirigira os passos nessa direção e temia não acertar com o caminho; arrependia-me mesmo de não ter preferido outro rumo mais da minha familiaridade. Evitara-o, desejoso de não me encontrar de novo com o indivíduo cuja casa abandonara.

Eis-me em busca de um agasalho. Tive a sorte de encontrar por perto goiabeiras carregadas de frutos e enchi com eles os bolsos. Servir-me-iam de alimento se não achasse coisa melhor mais tarde. E toco a andar. Por fim ouvi uns latidos e orientei meus passos para o local de onde partiam. Vi uma casinha de cujo telhado saía fumaça. Uma meia dúzia de cachorros atacou-me, rosnando, mas bastante mofinos para correrem diante de meus gestos de defesa. Entrei na habitação sem dificuldade nem cerimônias; dentro, nem viva alma! Contudo os donos da casa não andariam longe porquanto descobri sobre a cinza quente, a assarem, grandes bananas que geralmente não se comem cruas. Se no dia anterior houvesse achado uma guloseima daquelas, ter-me-ia servido independente de convite, porém agora poderia esperar. Fiquei ali sozinho meia hora. Novos latidos da cachorrada avisaram-me de que iria ter companheiros, e efetivamente dois homens armados de espingardas entraram, acompanhando três mulheres, das quais uma muito idosa, sem dúvida a que estava preparando as bananas. Falavam português e fiz-me entender do melhor modo possível, cumprimentando-os; como soubera haver por essas bandas um velho europeu, perguntei-lhes se o conheciam. Não pude ser logo entendido, não sei se por culpa minha ou dos meus interlocutores. Os homens trocaram entre si umas frases, enquanto as mulheres, certas de terem defensores, atiçavam o fogo, viravam as bananas e enrolavam duas das mais bonitas numa folha de mandioca; uma delas veio me oferecer o petisco, ao tempo em que os homens encostaram as armas na parede. Pareceu-me que os cachorros aguardavam esse gesto dos seus donos para cessar as hostilidades, porque desde minha chegada não tinham deixado de grunhir. Um a um entraram na casa de rabo murcho. Não obtivera, entretanto, resposta à pergunta que lhes fizera. Por fim, um dos índios confessou-me não me ter entendido direito, e então achei acertado acrescentar ao meu ruim português um quê de mímica capaz de esclarecer o sentido de minha interrogação acerca do branco que procurava; levei a ponta do dedo ao meu rosto e disse numa linguagem rudimentar mais ou menos assim: “Onde mora um homem que é branco como eu sou?” Não levava em conta estar tão queimado quanto os que me atendiam, e me mostrava vaidoso. Afinal, fossem as palavras, fossem os gestos, pude ser compreendido, pois um dos homens retomou a espingarda e me fez um gesto para acompanhá-lo. Uma hora de caminhada, em meio de terrenos outrora cultivados, mas agora em abandono, por causa das formigas, segundo vim a saber depois; por fim, meu guia bateu a uma porta de barraca e dali saiu um homem a quem tive vontade de beijar, pois me perguntou em francês o que eu queria. Conversamos bastante, e, ao saber de minha decisão de viver naqueles matos se encontrasse onde me alojar, desencorajou-me, disse-me ser impossível a realização de tal propósito. Todavia, instei para que me acompanhasse até certo sítio onde existiam apenas dois casebres; nele eu ficaria, como almejava, somente com os índios. Ao chegarmos ao local, acrescentavam a uma das casas uma nova peça. Desprovida de janelas, compunha-se a habitação, como de costume, de alguns pequenos troncos de árvores, de uma porta e de um telhado de palhas de coqueiro. As paredes eram feitas de pequenos caibros dispostos horizontalmente e presos uns aos outros com cipós, enchendo-se os espaços com barro molhado; este ao secar forma uma espécie de reboco, fácil no entanto de sair aos pedaços a qualquer choque mais forte. Haviam tirado do próprio solo da casa o barro empregado nas paredes, de modo que ao entrar me enterrei até aos joelhos num buraco. Ao dizerem ao proprietário que eu desejava viver ali, ponderou que eu queria era morrer. “Ninguém pode morar aqui antes de um mês, principalmente à noite, sob pena de correr um grande perigo.” A mim, porém, tudo era preferível ao teto que deixara. E como o risco era somente meu, meti-me nesse úmido casebre, por sinal gratuitamente; graças a meu intérprete, deram-me como companheiro um rapaz chamado Manuel. Servia-me de criado, cozinhava e carregava uma parte de meu material fotográfico quando eu ia percorrer as matas. Consegui três homens e uma canoa para irem buscar minha bagagem, porquanto, sem o supor, levara quase dois dias para voltar às vizinhanças do rio do qual me julgava muito afastado. Essa circunstância simplificava minha mudança, tirando-me da cabeça funda preocupação, uma vez que, ao percorrer a esmo as matas, avaliava quanto de embaraços surgiriam ao transporte dessa bagagem por um terreno inçado de dificuldades. Realizara em perspectiva os projetos de estudo há tempos acariciados em vão. Numa hora apenas encontrara uma casa, um criado, homens e canoas para o transporte desejado. Ia viver entre vários tipos de modelos e estava convicto de torná-los menos supersticiosos, embora tivesse de me valer da prodigalidade na cachaça de que faria larga provisão. Entrementes o meu compatriota me oferecera um banco para que dele fizesse cama e algumas bananas para me facilitar a digestão de um pedaço de toucinho muito gordo. Tive de me contentar dessa vez com um punhado de farinha seca e ainda dei graças a Deus pois na casa onde estivera hospedado fora obrigado a comer umas bolachas untadas de banha e passadas ao fogo. O momento não era oportuno para procurar dificuldades.

Partiram os canoeiros de madrugada e no outro dia estavam de volta com minha bagagem. Vim a saber que me haviam procurado bastante no dia de meu desaparecimento; essa fuga trouxera graves conseqüências porque o meu hospedeiro possuía por toda parte inimigos e fizera de mim uma proteção contra eles, espalhando que eu era uma personagem muito importante e deveria ser acatada por todos. Essa patranha fora-lhe fácil espalhar e dela tirar proveitos. Que iriam, porém, pensar agora ao me verem abrigado num casebre, mal tendo o que comer, e sem outra proteção que não fosse a da minha espingarda?

Pouco me importava. O essencial era me ver livre do italiano. Dinheiro não me faltava mercê da generosidade do Sr. Taunay, e com esses recursos enviei dois índios, numa canoa, até Santa Cruz a fim de fazerem ali um sortimento de feijão, carne-seca, fósforos, vinagre, sal, toucinho e comprar uma panela. Enquanto esperava a volta dos índios, tratei de arrumar a casa com a ajuda do Manuel. Minha “toca” compunha-se de duas peças: no que era menos claro, depois de ter nivelado o solo, dispus meus frascos a um canto, protegendo-os com pedras. Para trabalhar, ali, era obrigado a ficar de joelhos e para maior comodidade fiz um buraco no chão. Ali não havia tábuas como em casa do Sr. X; tive, assim, no propósito de proteger outros objetos, de me valer de pequenos troncos de palmeira que cortei e estendi sobre pedras a alguns pés do solo. Alguns pregos serviram-me de cabides para roupas. Adquiri dos índios umas curiosas bacias cavadas como as canoas em uns pedaços de árvores. Tendo a experiência me ensinado a me garantir contra os assaltos das formigas, enchi d’água uma dessas vasilhas, a maior, coloquei um pote no meio, pus uma tábua em cima e desse jeito ficaram em segurança minhas provisões. No telhado estendi cordas untadas de sabão arsenical, e nas extremidades de cada uma cartuchos de papel que receberiam os animais ainda não embalsamados. Pendurei a rede, presente que me fizeram há tempos os competentes naturalistas Eduardo e Júlio Verreaux. Construí também uma mesa, valendo-me sempre dos troncos de palmito, árvore preciosa cujo galho terminal me serviria igualmente de jantar. Dispunha de alguns pedaços de tela para pintura; ao ficar pronta a mesa, estendi sobre ela um pedaço dessa tela à guisa de toalha. Senti-me satisfeito com a obra realizada; minha cadeira de viagem completou o mobiliário da sala de refeições. Mas, onde colocar o resto da bagagem? Não devia pensar em pôr no chão certas coisas; apodreceriam em poucos dias com a umidade. Onde afinal colocá-las? Andando para cá e para lá descobri uns restos de velha canoa imprestável e com o auxílio de Manuel trouxe-os para casa, e por felicidade pude transformá-la num móvel que me faltava. Tinha agora não somente o necessário, porém um quê de luxo, uma vez que esse esqueleto de canoa, economizando o espaço de meus pacotes, proporcionara-me um canapé que eu tornara tão macio quanto um sibarita o exigisse, forrando-o com uma espécie de crina que se dependurava das árvores por toda parte. Apenas uma depressão incômoda ao centro da canoa me obrigava a manter as pernas suspensas.

Com a volta dos índios, minha cabana tornou-se uma delícia; nada lhe faltava. A maior parte de meus utensílios estavam pendurados e protegidos da umidade, e o sol, em breve, com seu benfazejo calor acabaria de secar a minha habitação. Um belo dia mudei-me para lá, dizendo adeus ao meu velho patrício. E à noite deitei-me na minha rede, cercado de um conforto estranho aos casebres habitados pelos pobres selvagens. Nessa noite, porém, um temporal desabou com chuva grossa e trovoada, e não pude dormir. Ao construírem aquele casebre tinham feito uns montes de barro e de madeira por trás do prédio, com o intuito de posteriormente retirá-los dali. A enxurrada arrastou tudo aquilo e inundou o meu interior, obrigando-me a cavar uma espécie de rego para dar vazão às águas. Felizmente não tive prejuízos materiais pois colocara todos os meus objetos de uso acima do solo. Fui dormir muito tarde, cansadíssimo, mas acordei bem disposto. Tudo que me cercava havia sido fruto do meu esforço, e um modesto presente pagaria o aluguel ao meu humilde proprietário. O resto não me despertava preocupações. Ao levantar-me cuidei alegremente de umas outras arrumações e sem maior retardo fui fazer um desenho. Enquanto trabalhava, pude apanhar um bonito inseto a que dão o nome de arlequim. A casa ficava, como geralmente acontece, numa eminência distante do rio. Renunciei a tomar banho nesse rio porque teria de me meter também na lama. Em roda de mim as montanhas cobertas de vegetação formavam um círculo recortando-se no azul do horizonte. Ao longe avistava-se outra habitação erguida no terreno despido de árvores e nela os índios iam aos domingos beber aguardente. À força de transitarem por perto do meu teto eles se familiarizaram comigo; vendo-me caçar insetos, quadrúpedes e reptis, acabaram por trazer-me os que iam apanhando, e como eu os gratificava tornou-se-me fácil ir lhes pedindo espécies que me interessassem. Esses índios, de ambos os sexos, acostumaram-se a vir me visitar aos domingos, e eu lhes oferecia cachaça. Aproveitei essas visitas para fazer-lhes os retratos desejados e, com poucas exceções, encontrava a melhor boa vontade, desaparecidas as dificuldades de outrora. Pude escolher os tipos que me convinha pintar. Trabalhava diariamente, caçava ao amanhecer, antes de manejar os pincéis, alimentava-me do que caçava, e do que me vendiam, aumentava minhas coleções... Que poderia desejar mais?...

Levava, entretanto, vida meio sedentária; passaram-se dias e semanas sem me dispor a me afastar dali, sem correr as matas, e era-me preciso recuperar o tempo perdido. Deixei um pouco a pintura, e, reunindo o material fotográfico, procurei matas ainda poupadas pelos machados, de vez que vivia cercado de matos rasteiros e plantações destruídas pelas formigas. Gastava mais de uma hora para atingir a floresta virgem. Manuel ajudava-me a transportar a máquina fotográfica e os apetrechos necessários. Eu conduzia também um saco cheio de frascos; a tiracolo uma bolsa de caçador com uma porção de coisas: vinte estacas para armar a barraca, meu caderno de esboços, chumbo, pólvora em grande quantidade, para que a caça não me faltasse, laranjas, bananas, farinha, um fogareiro, fósforos, um novelo de cordão, tesouras, um tubo com álcali, garrafas d’água, nitrato de prata, ácido pirogálico, hiposulfito de sódio, etc. Presos ao cinturão, um facão, uma espingarda de caçadores de Orléans emprestada pelo velho Francisco. Não sei como essa arma lhe foi parar às mãos; serviu-me, porém, bastante, pois minha carabina me explodira nas mãos sem me ferir felizmente. Estimaria fosse menos pesada, porque a soma do peso dos objetos que carregava me fatigava sobremodo. Levantava-me ao cantar dos galos, preparava a bagagem e muito antes de Manuel me punha a caminho. Primeiro tinha de subir uma ladeira e depois, sempre em terreno acidentado, penetrava na mata até atingir um planalto, o que conseguia antes de sair o sol, porém já bastante suado. Durante muito tempo não prestei grande atenção a uns pássaros chamados sabiás, cuja plumagem não oferece atrativos, mas agora, como se tratava de aproveitá-los como alimento, não os poupei, e se me tornava fácil caçá-los, não somente a eles como a engole-ventos que são aves que aparecem quer de manhã quer à tarde. Bastava me baixar um pouco, arriar o saco no chão, apontar a carabina suavemente e as provisões não me faltavam. Caminhando sem grandes etapas de descanso, atingia o coração das florestas, em meio das raízes descobertas pelas chuvas. Enquanto aguardava a chegada de Manuel, com minha máquina, preparava o terreno para recebê-la, o que nem sempre era fácil devido às grossas raízes. Mal chegava, o criado dispunha tudo para o trabalho a realizar, salvo se os mosquitos intervinham. Falo freqüentemente nesses dípteros porque nas matas eles têm um papel saliente. Procurava apanhar umas vistas, mas infelizmente quase sempre era impedido pela grande proximidade do sítio visado. Punha-me de joelhos na barraca para trabalhar. Às vezes descobria um belo efeito de luz, corria até junto da máquina e ao ir tirar a fotografia o sol havia se escondido. Passava o dia inteiro à sombra, sem repouso, comendo em pé, bebendo água. Freqüentemente um temporal nos surpreendia e era preciso arrumar tudo às pressas e partir por veredas transformadas em riachos impetuosos. Chegava-se a casa num estado digno de lástima. Bebíamos então uns goles de aguardente e depois de mudar de roupa estirava-me na rede, enquanto Manuel ia pôr a sua calça para enxugar. Nesses dias de chuvas eu aproveitava o tempo para pintar uma cabeça de índio, fosse homem ou mulher, e não saía de casa. De outras vezes embalsamava animais para minha coleção. Não posso dizer ao certo qual fosse mais penosa, se minhas voltas da mata em dias de temporal, todo molhado, se nas tardes de sol ardente, ensopado de suor como uma esponja. Nem por isso, após um quarto de hora de descanso, deixava perder qualquer modelo que se me apresentasse às vistas.

Um dia, ao manejar uns frascos com colódio, perto do fogo, a chama comunicou-se a um litro de éter. Felizmente ainda dessa vez a explosão não me atingiu, mas o fogo ganhou o teto da casa e, não fora a rapidez com que me lancei a uma bacia cheia d’água, o incêndio seria total. Mesmo assim queimei um pouco os cabelos e as pontas dos dedos. Com o resto de meus produtos químicos reconstitui o carregamento habitual de meu saco de viagem e achava-me justamente nesse dia de joelhos na minha barraca, entregue a um serviço, quando vi lá fora vozes a dialogarem com meu criado Manuel. E qual não foi meu espanto ao meter a cabeça pela porta: vi não um caçador armado de fuzil, como às vezes acontecia, porém uma dúzia de índios botocudos com seus beiços deformados e suas enormes orelhas. Eles sem dúvida não poderiam nunca compreender o que eu fazia nessa tenda onde em pleno dia havia uma luz artificial. E mais admirados teriam ficado ao verem sair dali, de rastros, uma cabeça raspada e uma comprida barba. Manuel já lhes teria dito quem eu era, mas seu entendimento das coisas não iria ao ponto de traduzir o que eu fazia. Esses botocudos procediam de Vitória, aonde tinham ido, numa embaixada, até a presença do presidente da capitania. Haviam entrado na cidade completamente nus; trouxeram-lhes, no entanto, pressurosamente, calças e camisas, deram-lhes carabinas, pólvora e chumbo, acrescentando aos donativos belas frases e excelentes promessas, de que não se recordariam depois, e mandaram-nos embora. Mal os selvagens se apanharam fora da povoação, como se sentissem incomodados com os trajos, fizeram o que eu também lá fizera na travessia aquática de que falei anteriormente: transformaram tudo numa trouxa. As espingardas levavam a tiracolo, mas os arcos, às mãos. Eu possuía na barraca alguns pequenos objetos sem grande importância, como por exemplo uma faca e uma lima para unhas, comprados em Paris numa daquelas feiras de fim de ano. Presenteei o chefe do grupo com esses utensílios, e tornamo-nos logo amigos, pois recebi também como lembrança um arco e três flechas. Ainda os convidei para compartilhar de meu almoço, o que aceitaram. Tive recompensa dessa boa ação pelo que pude verificar: esse índio tinha, como os outros, metido num furo feito no lábio inferior uma rodela de cactos um pouco maior do que uma moeda de 5 francos. Servia-se dessa roda como de um prato cortando em cima dela, com a faca que lhe dera, um pedaço de carne-de-sol presa antes de levá-la à boca. Essa maneira de transformar o beiço num prato pareceu-me realmente de imensa comodidade. Os indígenas cujo conhecimento eu estava fazendo usavam igualmente outras rodelas de pau às orelhas. Sem esses enfeites, as orelhas diminuiriam um meio pé de tamanho. O encontro com os botocudos me alegrou bastante, porquanto, embora a zona que habitavam não ficasse muito distanciada da em que me achava, talvez não me fora dado ir até lá.

O dia estava reservado às aventuras. Ao voltar a meu trabalho dentro da barraca ouvi Manuel gritar: “Seu Bia, um bacorinho!” Era um porco. Corri para fora da barraca, agarrei a espingarda com certa emoção. Um porco! Oferecer-me-ia o animal, se não errasse o tiro, alimentação para um bocado de tempo. “Ali, Senhor! Ali dentro do mato!” Agi com prudência, pois não constituía propriamente uma brincadeira expor-me a esse bicho brabo; carreguei a arma com duas balas. Toda cautela era aconselhável. Não contava muito com a coragem do Manuel, que se trepara a uma árvore, aguardando os acontecimentos. Do seu posto podia ver tudo melhor do que eu, uma vez que devassava com a vista o seio da mata. E quando eu procurava descobrir o porco do mato, o inteligente Manuel pôs-se a berrar.

Um instante após vi se mexer entre as ervas uma família de porquinhos conduzidos pela mãe. Pertenciam sem dúvida, pude compreendê-lo, a alguma casa não distante dali. Meu criado ia me levando a fazer “um bonito serviço”! Era o feitio da sua raça: gente de uma selvagem intrepidez, mas ingratos, indolentes e indiferentes ao mal que recaía sobre os outros, embora do seu próprio sangue.

Há muito vinham as formigas me visitar. Quando davam em percorrer o caminho que ia ter ao meu ateliê, era inútil continuar o trabalho. Tinha de esperar que acabassem de passar. Certa vez, dois índios caçadores vieram até junto de nós sem se aperceber das formigas e só deram com elas quando já se achavam cobertos dos pés às cabeças. Manuel não tivera uma palavra para avisar os patrícios do perigo, e, no entanto, quando tinha medo de qualquer coisa, gritava como um perdido. Esse costume, todavia, tinha sua utilidade. Um dia, ao me achar numa touceira de cipós, ouvi Manuel gritar nas minhas costa: “Seu Bia, uma cobra! E já o criado se aproximava de mim sempre a exclamar: “Seu Bia, uma cobra!” Achava-me realmente a dois passos de uma serpente verde, que, de pé, vinha em minha direção. A cor da cobra confundia-se com a da folhagem, e não fora o grito de alerta de Manuel ficaria ao seu alcance sem dar por tal. Era um animal bem grosso e não foi pequeno o trabalho para lhe tirar o couro. Os índios dão-lhe nome de marouba.

Além de medroso, Manuel era preguiçoso. Há muito tempo eu desejava comer ao jantar um guisado de palmitos, e estava sempre a mandar o criado colher esse legume que, como se sabe, é o gomo terminal de uma palmeira. Ora, o meu Manuel tinha preguiça de ir apanhar o palmito a quarenta pés de altura e contentava-se em arrancar na mata uns brotos de palmeiras; e teria sido necessário centenas desses filhotes para se preparar um guisado. Mandei-o buscar mais; não voltou a casa por mais que me esgoelasse em chamá-lo. Nesse dia meu jantar compôs-se de bananas. Se Manuel me aparecesse nessa ocasião, teria feito uma dupla asneira, pois, além da surra que lhe daria, acabaria sendo eu cozinheiro de mim mesmo. No dia seguinte, como de costume, madruguei e parti para a floresta; dali a pouco Manuel surgiu com minha máquina às costas como se nada houvesse acontecido na véspera. Por conveniência eu também me fiz de desentendido.

Como era natural, acabaram-se os meus produtos químicos. Muito trabalho para minguados resultados. Dispondo apenas de uma dúzia de chapas, poucas vezes fui feliz nas provas fotográficas, ora por inexperiência, ora por causa do calor, da umidade, de mil outras circunstâncias imprevistas. No último dia de minhas excursões fotográficas Manuel me veio a falar num sítio onde existiam muitas laranjeiras carregadas de frutos. Deixei minha bagagem na mata e partimos os dois em busca das laranjas. Um tanto ao acaso pois o índio não sabia bem o rumo a seguir. Tivemos de abrir caminho, com um facão, e após uma hora atingimos uma clareira entre altas plantas que se tornavam a cerrar logo que as afastávamos para passar. Consoante já fiz sentir, as aves e os insetos gostam mais dos terrenos já desbastados do que do interior das matas. As aves do Brasil alimentam-se dos brotos dessas plantas que renascem. Geralmente se nutrem de frutos, ao invés de sementes, o que torna quase impossível seu transporte para a Europa. No local em que nos encontrávamos, meu trabalho era somente o da escolha: via pássaros de todas as cores. Um deles me atraiu particularmente a atenção, de um belíssimo azul. Levei-o em triunfo a Manuel, que me disse logo: “É um passarinho verde.” Sunguei os ombros e pedi-lhe que me mostrasse as tais laranjeiras. A vegetação rodeante era mais alta do que nossas cabeças, e se tornava difícil uma orientação. Afinal chegamos perto de uma tapera, e em frente havia de fato laranjeiras e limoeiros cobertos de frutos, porém ainda mais de folhas, o que lhes dava singular aspecto. Ali, como em outras partes, as formigas tinham obrigado os moradores a uma mudança. Fiz um desenho e chupei algumas laranjas. Não me sendo possível apanhar umas chapas, projetei logo voltar ali uma manhã a fim de aumentar minha coleção de pássaros. Regressamos a casa, nessa tarde, muito cansados da jornada, e, ao examinar a colheita que fizera, fiquei espantado de verificar que o pássaro azul virara verde-mar. “Manuel tinha razão”, disse com meus botões. Nesse momento o criado entrava no meu quarto e por sua vez conveio em que a ave era mesmo azul. Tratava-se afinal de um efeito de posição das penas da ave com relação à luz, de tal modo que vista de um outro ponto pareciam violeta. Trouxe para a Europa vários desses pássaros.

Tornei a visitar o sítio das laranjeiras e orientando-me melhor descobri um dos mais encantadores recantos que um caçador possa desejar: uma espécie de caminho protegido por sombreadoras árvores e ladeado de capoeiras. Ali era-me obra fácil escolher as aves de minha maior predileção, pois elas vinham descansar à sombra das ramagens depois de suas excursões costumadas. Eu passeava sem fadiga; caçava um pouco e depois sentava-me num tronco qualquer para saborear umas laranjas. Nos intervalos desenhava flores, folhas, copas de árvores. Como em regra não fazia muito ruído, certa vez ouvi qualquer coisa se mover no capim. Voltei-me vagarosamente e avistei um belo gato-do-mato. Dava uns pulinhos, agarrava-se aos cipós, e de quando em quando soltava suaves miados. Era o primeiro gato-do-mato que eu via de tão perto. Trazia sempre no bolso balas e chumbo grosso; carreguei a espingarda. Ao me levantar porém o gato deu um salto e foi se esconder num galho bem alto de uma árvore. Mesmo assim atirei quase ao acaso e com surpresa vi o animal cair querendo ainda se agarrar aos ramos. Ao bater no chão estava morto. O dia me enchera as medidas e eu voltei a casa com uma pesada caça às costas.

 

Conforme o costume, os índios já me esperavam, sentados à minha porta. Eles não me temiam mais. Entre esses selvagens figuravam os parentes do pobre Almeida, aqueles mesmos que, na opinião do meu ex-hospedeiro, eram tão supersticiosos e tinham sido causa de minha saída de lá. Pintei diante de todos eles, e de quando em quando exclamavam cheios de admiração: “Tal e qual! Tal e qual!” Se quisesse continuar no trabalho, não teria dificuldades em conseguir modelos. Pagava uma pataca a cada um, ou sejam, 16 sous. Depois distribuía cachaça; primeiro, os homens, após, as mulheres. Era generoso, pois de cada vez gastava uma garrafa. Quando esta ficava vazia, todos se retiravam, sem mesmo se despedir de “seu Bia”. Eu tinha algumas protegidas, que ainda não haviam posado. Para essas, reservava uns cálices de cachaça, às escondidas. Uma delas, certa vez, aproveitando-se de minha distração, roubou-me uma garrafa e bebeu-a inteirinha. Ao terminar começou a gritar e a rolar pelo chão em contorções horríveis. Compreendi que dizia estar envenenada; que bebera uma das minhas drogas. Eu realmente costumava afirmar existirem nas minhas garrafas tóxicos violentíssimos, a fim de que não procurassem furtá-las. Meus dedos, manchados de nitrato de prata, atestavam quanto os líquidos de que me servia eram perigosos. Mas, no caso, eu sabia bem tratar-se de bebedeiras, e como o marido da ébria principiasse também a berrar em coro com a mulher fui obrigado a pô-lo fora de casa.

Procurei provar tudo quanto por ali se come e experimentar todos os objetos de que se utilizam. Fora testemunha dos extraordinários resultados obtidos com arcos de duas cordas chamados bodoques, os quais, em vez de serem armados com flechas, são-nos com pedras ou com bolas de argila seca. Nenhum fuzil consegue atirar mais longe do que esses bodoques. Fiz experiências, mas confesso não ter conseguido grande proveito. O mais que obtive foi jogar uma pedra a dez passos em um alvo de vinte pés de superfície.

 

Fonte: Dois anos no Brasil, Auguste François Biard, 1862
Compilação: Walter de Aguiar Filho, outubro/2016

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Mário Aristides Freire – Secretário da Fazenda (1930-1943)

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