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De Santa Cruz à Vitória/RJ – Por Auguste François Biard ( Final)

Encontro com um sapo-boi na floresta de Santa Cruz, ES

Compunha-se a tripulação do nosso barco de um negro e dois índios, sem falar em Domingos. Partimos às 3 horas da manhã e fomos correndo sobre essa casca de noz com um tempo esplêndido. Ia Domingos ao leme entoando sem cessar cantigas edificantes, e tudo decorreu sem anormalidades até ao anoitecer, quando cessou o vento repentinamente, prenunciando uma tormenta ou uma calmaria, duas circunstâncias pouco tranqüilizadoras. Continuaram os cantos, o que não evitava um balanço que ora me atirava para um lado ora para outro. Todavia, consegui adormecer profundamente, mesmo porque precisava recompensar a quase vigília da noite anterior. E foi bom dormir, pois mais tarde o vento voltou a soprar, e pela manhã entrávamos no porto de Vitória. Tornei a ver o homem do porta-voz, a fortaleza, e afinal a cidade. Lançou-se o ferro defronte da casa do dono da embarcação, e ao deixá-la penetramos num armazém repleto de objetos dos mais díspares: montes de louça de barro, pequenos mastros, rolos de cordas, etc., tudo numa confusão do outro mundo. Havia ao fundo uma escada de madeira que dava para os aposentos da família de Domingos, e lá em cima existiam vários quartos separados por tabiques e de paredes nuas. Por todos os lados, redes penduradas.

Apresentaram-me à dona da casa, que não demorou seu oferecimento de hospitalidade. Aceitei-a, embora preferindo me instalar no armazém. Para comer trazia o meu pato e ele me daria para aguardar a chegada de Mucuri, velho conhecido, o que se daria dentro de dois dias. Podia, portanto, dar-me ares de Lúculo, sem economizar alimentação. Mandei apenas comprar bananas e pão; ainda dispunha de um pouco de açúcar; deram-me uns limões e com eles preparei uma gostosa limonada, bebida de que nunca me esqueci, pois me curara de um começo de doença trazida do Rio. Com o auxílio de um jovem indígena, tipo risonho e amável, construí uma espécie de estrado, valendo-me de algumas tábuas existentes no armazém, e tudo me correu bem. A esse indiozinho, em gracejo, costumava dizer ir empalhá-lo como fazia com meus passarinhos; ele ria-se à vontade, o dia inteiro, com a minha ameaça e quase demonstrava esperanças de que ela se viesse a objetivar. Torcia-se de riso quando eu o agarrava pela roupa e fingia ir abrir-lhe a barriga com toda precaução para não estragar-lhe a plumagem... Abria tanto a boca, nas risadas, que eu tinha a impressão de que suas orelhas exerciam a função de evitar que os lábios distendidos dessem volta pela sua nuca. Era também um perito marinheiro, esse rapaz. Queria se encarregar de minhas encomendas e não me deixar nunca, mas o dono temia tanto quanto o próprio rapaz ser pegado para servir no Exército, como acontecia freqüentemente com os indígenas. Deste jeito ele não arredava pé da embarcação nem do armazém: virara meu cão de guarda. E assim se comportou durante todo o tempo de minha estada ali, que por sinal se prolongara por haver se atrasado na chegada o navio em que deveria embarcar.

Se nesse armazém em que me hospedara gozava de inteira liberdade, contudo não me pude poupar inteiramente a alguns aborrecimentos: os meninos de Domingos dormiam num aposento por cima do meu; as tábuas do soalho não eram bem calafetadas, e daí certas coisas desagradáveis que caíam lá do alto causavam transtornos... Procurei armar a rede num sítio menos exposto, convencendo-me do erro de tê-la antes pendurado bem embaixo das camas das crianças...

Fui visitar a família Penaud e desculpar-me de não ter aceito a hospedagem oferecida. Conhecera, já, como se sabe, de que natureza era a hospitalidade dos europeus e preferia a do armazém, não obstante certos episódios noturnos. Uma manhã, por exemplo, encontrei dentro do meu chapéu uma galinha acocorada e um ovo fresquinho. Pouco a pouco, entretanto, a família Penaud conseguiu desarmar minhas prevenções e tanto insistiram nas amabilidades que fui a sua casa jantar, caçar e passar as noites até que o vapor chegasse. Consegui matar, ali, dois interessantes macacos, de uns que têm a cara branca cercada por uma cabeleira preta como o azeviche.

Certa vez, ao entrar em casa, encontrei, sentados sobre tonéis, as três principais autoridades da terra: o juiz de direito, o capitão do porto e o subdelegado. Meu amigo José, como se chamava o caboclinho, mantinha-se respeitosamente de pé, ao fundo do armazém, após haver anunciado às visitas que eu não demoraria. Por mais que me lisonjeasse essa deferência das autoridades, senti-me também um pouco humilhado. Vinham me oferecer igualmente hospedagem; fui obrigado a recusá-la, mesmo porque partiria no dia seguinte.

Afinal, o navio chegou. O Sr. Penaud e seus filhos tiveram a gentileza de conduzir minha bagagem a bordo, e depois de terem-na acomodado bem iam se despedir, quando me pediram o passaporte. Eu o havia entregue à polícia ao chegar, e é de praxe a autoridade devolver esse documento ao seu dono no barco em que pretender regressar. Dera-se, porém, uma confusão qualquer, e o passaporte não fora encontrado a bordo; teria de desembarcar com a minha bagagem. Foi quando o Sr. Penaud correu a terra, foi à polícia, e de volta me trouxe não somente o papel como o funcionário negligente que quase se ajoelhava a meus pés, pedindo-me não o botasse a perder.

Reconheci na maior parte a tripulação do barco que me levava; o comandante, porém, era outro, um homem gordo, coxo, sempre amparado numa bengala, ao andar. Perguntei-lhe que fora feito dos quatro feridos do acidente de 4 de novembro. O capitão bateu de leve com a bengala na cabeça de um negro que ia passando perto de nós e puxou-o pela camisa:

– Vem cá, Moricaud.

Era exatamente o mais grave dos feridos, aquele cuja morte o médico prognosticara. Tinha a pele toda cheia de cicatrizes, de manchas brancas semelhantes às de vitiligem. Fiquei contente de tornar a ver esse pobre diabo, e ele para agradecer nossa atenção abria a boca num largo riso e mostrava duas fileiras de dentes pontudos como os das feras. Não negava sua origem africana.

Após três dias e meio de travessia, entrávamos nessa imensa baía do Rio, sobre a qual se chocam sempre as opiniões. Uns a dão como maravilhosa, outros como não possuindo nada de extraordinário. Penso ter alcançado as razões dessas divergências. Os primeiros transpuseram a Guanabara ao cair do sol; a temperatura é suave; os vários planos das montanhas tomam os mais empolgantes matizes; não há monotonia na paisagem; revela-se a natureza brasileira em sua máxima pompa. Os outros, deprimidos e irritados pelo calor, não sabem ver bem as coisas. Seus olhos injetados percebem o cenário de um modo fatigante; tudo lhes parece triste, monótono, de um tom violáceo a envolver as serras.

Esta sensação eu experimentava desta vez contrariamente à que se me proporcionara no dia em que pela primeira vez entrara nesta baía, ao amanhecer, depois de ter caído rápida chuva a refrescar o ar.

Veio ao nosso encontro um bote tripulado por negros a fim de receber os passageiros que desembarcavam antes do navio ir ancorar ao seu ponto de costume. Logo que saltei em terra, fui ao palácio, mas sem o intuito de ali me aboletar. Asseguraram-me: os cupins haviam atacado de tal modo o edifício que o iam em breve demolir. Pouca gente o habitava; os negros que me serviram de criados não mais se encontravam ali; assim, depois de ter deixado minhas malas no antigo aposento, procurei um hotel. Apoderara-se de mim intensa tristeza, nesse primeiro dia, e pus-me a passear a esmo pelo largo do palácio, comparando meus pensamentos de agora com os que me enchiam a cabeça durante os seis meses passados nesta mesma cidade. Não via mais a civilização pelo mesmo prisma olhado antigamente. Perdera no âmago das florestas todo meu entusiasmo por este país a que poderiam tornar tão florescente e que, nesse instante de injusta melancolia, deixara de possuir a meus olhos o encanto de outrora. No dia seguinte lia-se num jornal:

“Ontem, um indivíduo mal vestido passeava em silêncio com as mãos às costas. Usava uma longa barba, como um profeta, e parecia estar tramando qualquer plano sinistro. Os meninos, ao vê-lo, se afastavam medrosos. Alguns polícias seguiam com as vistas os movimentos desse tipo suspeito e estavam prontos a contê-lo se acaso ensaiasse qualquer gesto criminoso.”

E no dia subseqüente outra folha anunciava:

“A eminente personalidade a que aludiu ontem de modo tão desatencioso nosso confrade..., é o famoso artista francês Biard, que regressou há pouco de longa excursão pelas matas da província do Espírito Santo etc., etc.” Eu estava reabilitado.

Tratei logo de cortar a barba; um perito cabeleireiro francês penteou-me e frisou-me o bigode; comprei-lhe um preparado para afiar navalhas e procurei apagar do melhor modo a má impressão causada pela primeira notícia de jornal a que aludi. Pedi a meu compatriota para afiar as navalhas que durante a excursão pelo interior não me prestaram serviço, e ele não se negou a me atender. Achei se tratar de um trabalho tão insignificante que não merecia pagamento. Contudo perguntei-lhe por delicadeza quanto lhe devia, e ele me respondeu ser meu débito de 2$0, mais ou menos seis francos... Querendo guardar uma recordação desse episódio, solicitei-lhe uma conta que ainda hoje possuo. Mais tarde procurei utilizar-me do tal preparado para afiar as navalhas, mas a coisa não deu certo e abandonei-o. Ao regressar à França, fiquei sabendo que se tratava de cosmético para bigodes, e essa descoberta fez crescer minha estima por esse prestimoso patrício.

Vários assuntos me prenderam no Rio mais de um mês. Não encontrei, porém, mais, ali, nenhum motivo de distração: nem passeios que tentei fazer pela cidade nem estudos de costumes pelos seus arredores. Ansiava por partir, fosse para a Europa, fosse para uma excursão pelo Amazonas. Visitei sem interesse as ilhas do Governador e de São Domingos, esta última aliás numa moldura de escolhos muito pitorescos. Debalde tentava desenhar ou escrever. Entre notas e esboços apanhados nessa época pelas ruas do Rio, encontro um gordo burguês que usa sobre sua impecável roupa preta uma opa de seda verde, e estende numa das mãos aos transeuntes uma bolsa escancarada. Que faria esse homem, assim encostado à esquina da casa que ficava fronteira ao meu hotel? Soube-o de sua própria boca: tirava esmolas e dizia invariavelmente aos que por perto passavam:

“Para as almas do purgatório, por amor de Deus!”

Até que enfim me sentia livre. Faltava-me um criado; ofereceram-me um suíço afeito a viagens pelo interior. Já experimentava os inconvenientes de viver sozinho, mas o acaso me restou um serviço: um francês que eu conhecia desejou regressar à pátria, mas, como não tinha muita pressa, resolveu ir primeiro ao Pará. Não podia pretender situação melhor: um companheiro e dispensa de criado. Dois proveitos num saco. Fizemos muitos projetos para a viagem; éramos todos os dois ótimos caçadores e planejamos verdadeiros extermínio de onças. Reservamos passagens no vapor Paraná, e fui despedir-me dos imperadores. A 23 de junho partimos. As vá ri as embarcações que levavam passageiros para o vapor foram forçadas a uma série de manobras que não pude compreender. Quando iam conseguindo atracar, o paquete mudava de posição a um movimento das rodas e se afastava. Essa brincadeira durou mais de uma hora. Afinal, disse adeus ao Rio.

 

Nota: Aguste François Biard continuou a sua viagem por outros Estados do Brasil, porém o Site Morro do Moreno registrou apenas os capítulos do seu livro em sua passagem pelo Espírito Santo.

 

Fonte: Dois anos no Brasil, Auguste François Biard, 1862
Compilação: Walter de Aguiar Filho, outubro/2016

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