Morro do Moreno: Desde 1535
Site: Divulgando desde 2000 a Cultura e História Capixaba

Dois planos urbanísticos de Vitória - Por Geet Banck (ParteIV - Final)

Projeto de Novo Arrabalde - 1896

4. Conclusão

Após considerações sobre cada um dos projetos, conclui-se com algumas reflexões sobre a importância, em ambos da imagem da praia.

a) O projeto do Novo Arrabalde, elaborado em 1896, a despeito de suas qualidades técnicas, foi antes de tudo uma tentativa de criar um espaço urbano totalmente diferente do centro histórico. A crença positivista no progresso através da ciência fez do plano também um manifesto político. O Novo Arrabalde deveria ser um local de ordem, capaz de contribuir para o progresso da humanidade, situado longe da desordem da cidade colonial, prova mais categórica da inadequação da monarquia. A república traria ordem e progresso, propiciando a criação de um "espaço racional e civilizado, uma nova ordem" (HETHERINGTON, 1997, p. 13). Deveria ser o que Rotenberg, parafraseando Foucault sobre heterotopias, chama espaço utópico, que só "existe na imaginação", uma fantasia didática (ROTENBERG, 1997, p. 85-86). Ao tomar Paris, Londres e Nova York como exemplo, Muniz Freire não se limitava a sonhar com a possibilidade de Vitória vir a ser um dia uma cidade comparável, em nível regional, a esses centros de civilização. Considerava também um projeto político para alcançar esse objetivo, cuja expressão era o componente simbólico do plano técnico. Entretanto, Muniz não foi bem-sucedido em seu propósito. A efetivação do plano levou muitas décadas e, nesse meio tempo, o positivismo saiu de moda. Com a mudança dos nomes das ruas e principais avenidas, perdeu-se por completo a representação simbólica do universo positivista aí contida. Só mesmo um adepto fanático do positivismo cabalístico reconheceria na largura das ruas e avenidas a mensagem simbólica da multiplicação do número sete. O bairro é hoje um paraíso, extremamente desenvolvido, da classe alta e média, identificando-se sobretudo com suas praias.

b) O aterro, implementado na década de 1970, fez surgir uma ampla área de lazer e de consumo. Enquanto o shopping center foi planejado principalmente para contrabalançar os altos custos do projeto, a criação de parques para aliviar o impacto da crescente massa de asfalto e concreto foi um óbvio detalhe de planejamento. No entanto, esse objetivo técnico fundia-se a ideais de lazer já consagrados em tendências hedonistas, como música popular, esportes e turismo, amplificados, por assim dizer, pelos veículos da mídia (a televisão estava em plena expansão nos anos 70). Os planejadores, com sua experiência de oposição ao regime militar e adesão à geração flower power, conceberam uma espécie de utopia ao projetar praças, rinque de patinação, campos de futebol, quadras de basquete e vôlei e pistas para exercício físico. Trata-se de um espaço à parte, não só atraente mas também sintonizado com a cultura contemporânea, na qual ocupam lugar primordial a beleza e a forma físicas, o corpo sadio, voltado à prática do lazer. Não é simplesmente um lugar diferente e projetado de forma original em relação ao meio urbano existente; é, igualmente, um lugar capaz de garantir acesso às regalias simbólicas com as quais os habitantes possam reencenar alguns dos rituais tradicionais da sociedade de consumo, nos moldes dos principais santuários de lazer do primeiro mundo. Pessoas de todas as classes afluem à feira de artesanato nas noites dos fins de semana, frequentam a praia, caminham pelas passarelas sinuosas, assistem a concertos de música popular e, é claro, "curtem o sol", para usar uma expressão coloquial. Ao contrário de "suportar ou sofrer o sol", desfrutam dele, como frequentadores desta que é um dos domínios quintessenciais do lazer, a praia. O ordenamento planejado de um espaço hedonista articula-se com as fantasias de seus usuários, com sua percepção do carisma do lugar. Essa fantasia didática, essa utopia é, portanto, no sentido empregado por Hetherington, uma heterotopia(10): um lugar que, embora à parte, se relaciona com o restante do espaço urbano e adquire significado por meio dessa relação. Não uma ordem fixa, mas um ordenamento: "Tal espaço produz suas próprias formas de regulação e técnicas de ordenamento, suas próprias liberdades e controles, dos quais podem emergir identidades estáveis e coerentes, discursos de ordem e relações sociais" (HETHERINGTON, 1997, p. 69).

c) Ambos os projetos se baseiam, ainda que nem sempre explicitamente, na metáfora da praia. Contudo, o plano de 1896 a via sobretudo como lugar saudável, livre dos riscos de contrair doenças graves, dada a sua proximidade com o oceano. Essa imagem fundia-se àquela de lugar conveniente para se ficar (CORBIN, 1988). Se na Europa o balneário à beira-mar já se tornara um local mais democrático, devido ao transporte ferroviário e à maior capacidade de consumo do proletariado urbano (SHIELDS, 1990), aqui a fantasia do projeto prendia-se, antes de tudo, ao estilo de vida da classe superior. Enquanto na acanhada cidade colonial as diferentes classes viviam próximas umas às outras, o Novo Arrabalde operava uma separação física e simbólica, configurando-se como precursor das comunidades fechadas de hoje. Deveria ser um paraíso burguês na aparência física, no projeto arquitetônico e na sua proximidade com a "sagrada" praia, quando, nos anos 40, o bairro cresceu rapidamente. A praia contribuía, em termos simbólicos, para endossar a fantasia do projeto. Nela, a tradição prestigiada do lazer europeu e as crenças generalizadas sobre saúde se fundiam com uma visão da natureza tropical que, costurada às duas primeiras, podia tornar-se um atributo positivo para os que viessem ocupar o novo espaço urbano. Esse local saudável em zona climática degenerescente poderia agora ser abençoado pelos cânones da reverenciada Europa. A descrição feita por Needell (1987) do Rio de Janeiro como uma "Europa nos trópicos" poderia estender-se a esse arrabalde, tomado como respeitável parceiro na aventura do progresso humano. Finalmente, o projeto dos anos 70 pode ser visto como a busca da democratização da praia em sua condição de parte quintessencial da geografia carismática local. A praia não está mais relacionada com um projeto político semirreligioso. Muito mais que isso, reflete um projeto estético vinculado a estilos de vida, consumo e lazer. Em sua tentativa utópica de representar o "bom lugar", convida à celebração do corpo sadio, mas pode tornar-se também um mau lugar, caso o amor ilícito e as drogas encontrem ali refúgio seguro. Mas o que define o "bom" e o "mau" é muitas vezes o olhar do observador.

 

Notas

(10) Ver também Parker (2004, p. 146-ss.).

 


Fonte: Dilemas e Símbolos Estudos sobre a Cultura Política do Espírito Santo, Segunda Edição aplicada – 2011
Autor: Geert. A. Banck
Compilação: Walter de Aguiar Filho, março/2019

História do ES

Ano de 1562 – Por Basílio Daemon

Ano de 1562 – Por Basílio Daemon

D. João Nery identifica essa capela como a de São Tiago, cuja fundação seria datada de 1562

Pesquisa

Facebook

Leia Mais

O Espírito Santo na 1ª História do Brasil

Pero de Magalhães de Gândavo, autor da 1ª História do Brasil, em português, impressa em Lisboa, no ano de 1576

Ver Artigo
O Espírito Santo no Romance Brasileiro

A obra de Graça Aranha, escrita no Espírito Santo, foi o primeiro impulso do atual movimento literário brasileiro

Ver Artigo
Primeiros sacrifícios do donatário: a venda das propriedades – Vasco Coutinho

Para prover às despesas Vasco Coutinho vendeu a quinta de Alenquer à Real Fazenda

Ver Artigo
Vitória recebe a República sem manifestação e Cachoeiro comemora

No final do século XIX, principalmente por causa da produção cafeeira, o Brasil, e o Espírito Santo, em particular, passaram por profundas transformações

Ver Artigo
A Vila de Alenquer e a História do ES - Por João Eurípedes Franklin Leal

O nome, Espírito Santo, para a capitania, está estabelecido devido a chegada de Vasco Coutinho num domingo de Pentecoste, 23 de maio de 1535, dia da festa cristã do Divino Espírito Santo, entretanto... 

Ver Artigo