De Santa Cruz à Barra do Riacho
A travessia do rio Santa Cruz fazia-se em canoa e, sendo as margens distantes, a corrente rápida e profunda, ficava o viajante com o coração miudinho, temendo pela sorte dos animais que tinham de atravessar a nado.
D. Pedro II transpôs o caudal em embarcação mais segura:
Tarde.
Saída às 3 ½, atravessei o rio em escaler do Apa e às 4 menos 10 já seguia viagem a cavalo. Foi quase toda pela praia que, estando a maré baixa [facilitava] a marcha dos cavalos, sendo o meu muito bom marchador – já não é do Mota. A praia antes do riacho [Sauí] que só em maré baixa dá vau, parece-se com a de Itapuca, por causa das pedras, e muitas saudades me fez.
As aves aquáticas, os sargaços, a vegetação salicícola ou as roça dos pescadores, cujas choupanas rareavam no percurso, não chamaram a atenção de S. M. I. Ele observou, encalhado na praia, o iate de ferro no qual o Dr. Nicolau Rodrigues dos Santos França Leite, em julho de 1857, singrara o rio Doce, procurando dar cumprimento ao contrato firmado com o governo central, para o povoamento, no prazo de cinco anos, de dois mil colonos europeus, nas margens daquele rio.
O Dr. França Leite, conhecido como um dos beneméritos fundadores da Sociedade Contra o Tráfico e Promotora da Colonização dos Indígenas, saíra da Corte (em junho), levando o navio uma lotação de 38 toneladas, mil arrobas de carga e 46 colonos lusitanos, gauleses e germânicos. Explorara o espaço de 35 léguas rio Doce acima e nas margens e terras adjacentes dos tributários Pancas e Santa Maria, lado norte mais ou menos em frente à sede do atual município de Colatina, ele fundara com aqueles corajosos imigrantes a Colônia Transilvânia (fundada por França Leite, nota do editor).
Construíram serrarias e engenhos de farinha de mandioca, desbravando para a lavoura considerável extensão de solo fértil, transformando, também, em pastagens para a criação de gado. Os núcleos – Povoação, Monsarás e Ipiranga – pareciam prosperar, com o que não concordaram os botocudos, que em menos de três anos deram fim ao empreendimento. Já em 1859 a população da colônia achava-se reduzida a sessenta e uma pessoas.
Prosseguem os apontamentos do monarca:
Vi na praia de Santa Cruz o navio de ferro em que o França Leite navegou a vela o rio Doce até [Fransilvânia]; agora deve pertencer ao governo e talvez se possa aproveitar alguma cousa.
Em 1858, o presidente José Francisco de Andrade e Almeida Monjardim consignara, em relatório: “Hoje, o mesmo iate fez a viagem daquela Colônia a esta cidade [Vitória] com a maior brevidade, para o que concorrem a facilidade das correntes do rio e o conhecimento e prática adquirida naquela exploração.”
E prossegue S. M. em suas notas:
Na praia, por onde andei, tem lugares cheios de fucê, e alguns pareceram-me curiosos, sentindo a estreiteza do tempo para examiná-los.
A areia atira para cor de rosa.
Depois vêm os riachos Tacipeva, Timbotiba e Saí, onde há vau [em] vazante; encontrei aí o Matos, dono da casa do Riacho onde me hospedo; é falador mas parece bom homem; nunca saiu quase de seu sitio, o que não admira num capixaba. 5h.
Enquanto Biard, ao beber o cauim numa cuia para captar a simpatia dos índios que pretendia pintar, considerou o gesto como um holocausto à arte, o imperador deu mais uma prova de sua simplicidade:
Quis provar a cauaba ou cachaça dos índios numa casa destes junto à foz do Saí onde se encontra a tal bebida; mas não a tinham. Dizem que é má, sendo feita de mandioca mastigada, que fermenta, tornando-se mais tolerável o cauim feito de milho; contudo o José Marcelino disse-me que a cauaba com açúcar era boa limonada refrigerante.
A viagem continuou a cavalo até a barra do Riacho, onde D. Pedro II se deteve o resto do dia (precisamente seis horas) para um descanso:
Riachos Piranema, Água Boa e o Minhoca, cuja saída quase que só tinha areia. Logo depois tomei à esquerda por dentro sempre ouvindo a pancada do mar e às 5 ¾ avistei a barra do Riacho depois de ter visto pouco antes a casa de sapé toda arruinada dum fulano Fuso onde se hospedou o Pedreira segundo disse o Matos.
6 h chego à casa do Matos, de sobrado e sofrível no alto duma colina verde de onde domina o Riacho que lhe corre perto; a vista não é feia.
O coronel Joaquim Ribeiro Pinto de Matos era o aludido proprietário da fazenda Santa Joana, cuja casa, assombrada, situava-se numa colina e que fora escolhida para a hospedagem.
O capitão Antônio Fernandes de Andrade, que recebera a incumbência do presidente Veloso de supervisionar os preparativos para a recepção de Sua Majestade na vila de Linhares, auxiliando a Câmara Municipal e, notadamente, fiscalizando os reparos das estradas, fora encontrar-se com o monarca na foz do Riacho. Aliás, ele já se achava naquelas paragens, desincumbindo-se da tarefa de fundar um novo núcleo colonial na confluência do rio Doce [com o Guandu], próximo ao Porto de Souza, onde havia um princípio de colônia.
A propósito, o correspondente do Correio da Tarde fizera publicar esta notícia, datada de 19 de julho de 1859: “O Sr. Leão Veloso trata de fundar uma colônia nacional no Guandu. Conta ele com o apoio do senhor Ministro do Império. S. Exa. em umas condições que li no Correio da Vitória, assegura aos colonos os mesmos favores que recebem os estrangeiros, e são eles: lotes de 250 braças em quadra, medidos e derrubados; diária por seis meses, e ferramenta. Se os nossos patrícios não se quiserem aproveitar desses favores, então nunca se deverão queixar do governo, que só protege os estrangeiros, como dizem eles.”
D. Pedro escreveu:
Achei aqui o capitão Andrade encarregado dos trabalhos no Guandu que me disse cuidar-se agora da construção da capela, que tem 14 trabalhadores gente da vila da Serra reunindo às vezes 30 e tantos botocudos; que há 2 colonos e 50 prazos medidos de 250 de frente e 200, diminuindo às vezes a frente com aumento [no] fundo, por causa de ser o terreno pedregoso. Terreno em geral baixo e fértil com boas matas. Tem mandioca para mil alqueires de farinha; milho para 250, e feijão que as chuvas estragaram, para 60. Um alqueire de milho rende 200. Dá bem cana e arroz. Enquanto não houver mantimentos não se poderão distribuir os prazos. Há doenças mas não de gravidade. Subindo 3 a 4 dias de Linhares; descendo até 1 ½ dia.
O capitão parece ativo; mas duvido de sua inteligência para fundar uma colônia sobretudo num lugar como esse.
Após um apressado cavalgar de 12 horas, com pequenas interrupções, era natural que S. M. I. se recolhesse bem cedo naquela noite de quinta-feira, ainda mais porque a viagem teria prosseguimento às vinte e quatro horas.
Com a luz bruxuleante de um candeeiro de azeite, o imperador ainda achou tempo para escrever as suas notas. O cansaço físico
não lhe sacrificava o bom humor:
Soube ontem duas petas curiosas do Monjardim referidas pelo Castelo que parece verdadeiro ao Jacobina; que um cavalo dele, Monjardim, bebera tanta vinagreta que morrendo o cadáver transpirava aguardente, e que no rio Doce vendo uns vultos numas árvores sob as quais pastavam vacas reconheceu por fim que eram bezerrinhos brancos que tomavam fresco trepados nos ramos.
Fonte: Viagem de Pedro II ao Espírito Santo, Vitória, 2008
Autor: Levy Rocha
Compilação: Walter de Aguiar Filho, dezembro/2011
GALERIA:
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