Introdução do livro Viagens à Capitania do ES
Durante grande parte de sua existência a Capitania do Espírito Santo esteve envolvida em querelas administrativas com a Corte Portuguesa. Entre as principais discussões estavam: os problemas de gestão gerados pela suposta inabilidade administrativa por parte dos donatários; o baixo interesse e investimentos reais, que em diversas ocasiões estavam com os olhos voltados para determinadas áreas ou regiões de interesse, como foi o caso do nordeste açucareiro e das Minas Gerais, com seus veios dourados; e por fim, a dificuldade de expansão do território colonial na referida Capitania, haja vista, a "selvageria" de suas terras, que se consolidou como "fronteira" imaginária de diversos povos indígenas, fazendo com que esse território fosse "superpovoado", local de permanente disputa entre povos nativos, além de lar dos temidos Botocudos.
Se Pernambuco floresceu como um próspero modelo de administração do sistema de Capitanias Hereditárias, o mesmo não se deu com o Espírito Santo, posto que teve seu território mutilado com a descoberta das minas a partir de 1693 e sua reaquisição, por parte da Coroa Portuguesa, das mãos dos descendentes do donatário Francisco Gil de Araújo(1) em 1715(2).
Tais fatores podem ser considerados como alguns dos elementos responsáveis pelo lento desenvolvimento dessa Capitania. Porém, se de um lado haviam problemas no que concerne à gestão administrativa, do outro floresciam os frutos do projeto religioso, que marcou presença em grande parte da região litorânea centro-sul da capitania, indo desde Santa Cruz até Itapemirim, compondo-se de pequenas vilas, responsáveis, em sua grande maioria, pela construção dos relatos e estereótipos que fartamente foram dominando o imaginário europeu ao longo de três séculos, e que ainda se fazia presente em pleno século XX, como pode ser visto em Claude Levi-Strauss.
O fato é que, por ser uma Capitania Real em seu fim, o Espírito Santo se transformou em um "imenso laboratório", e entre os "testes" estão: a formação da população colonizadora a partir do pequeno excedente populacional, católico, que via no Brasil a "terra da oportunidade" e os degredados dos mais diversos cantos do Império Ultramarino Português; o desenvolvimento em larga escala, como possibilidade de "amansamento" dos indígenas, de diversos aldeamentos que contavam com vilas como a de Nova Almeida, Riritiba, Guarapari e até mesmo Vitória; o investimento no sistema de fortes e fortins, como elemento de defesa contra as ameaças de invasões estrangeiras, que marcou os séculos XVI e XVII; e o sistema de Capitania Real. E assim foi, lentamente, moldando a Capitania, o que acaba por tornar conveniente a construção da "narrativa do atraso histórico" inculcada no capixaba, e que foi questionada por Rafael Cerqueira em trabalho intitulado A narrativa histórica da superação do atraso: um desafio historiográfico do Espírito Santo (2016).(3)
Por fim, somente com a chegada da Corte ao Brasil, em 1808, tornou-se possível a saída, não somente do Espírito Santo, mas de grande parte do Brasil, do estado de letargia que acometia a população dessa colônia portuguesa, já que no início do século XIX ainda parecia viver em meados do século XVI.
Assim, batido o pó, abertas as janelas e postas melhores roupas e porcelanas para receber os novos e ilustres governantes, é correto afirmar que basicamente duas questões tiravam o Espírito Santo do anonimato que o cercava: os índios e sua guerra de resistência contra os colonizadores, que a partir da declaração da chamada "Guerra Justa", passaram a surgir em maior número e volume; e a constante disputa dos limites com as Capitanias de Minas Gerais e Bahia.
Contudo, se as questões limítrofes de uma pequena capitania pouco importavam à grande maioria da população colonial, os índios, em muito, incomodavam e debatiam-se, e foi exatamente essa presença marcante, aliada ao imaginário preconcebido pelos estrangeiros, que fez com que um significativo número de viajantes voltassem seu olhar para esse pequeno pedaço de terra escondido sob o olhar de todos. Apesar desse aspecto idílico e imaginativo que passou a cercar o Espírito Santo,
sabe-se que a capital da província espírito-santense não estava incluída na escala dos navios que se dirigiam para as Índias Orientais, conforme ocorria com a Bahia e o Rio de Janeiro, tão bem aquinhoadas em descrições e referências nos livros de viagens transoceânicas de célebres expedições científicas.(4)
Definitivamente os viajantes estrangeiros, movidos, inegavelmente, pelo espírito cientificista do século XIX, mas atiçados pelo imaginário mítico alimentado por mais de 300 anos que pairou sobre a Europa no tocante ao Brasil, lançaram luz sobre o Espírito Santo, que até aquele momento ficara ofuscado pela "grandiosidade" de seus vizinhos, tornando acessível a todos, os modos de viver, fazer e estar dessa capitania.
Então, se parcos foram os ilustres visitantes que no Espírito Santo aportaram até o ano de 1816, muitos foram os que se seguiram após esse ano, pois, foi a partir desse ponto que se "abriu" definitivamente o caminho para o rompimento do isolamento em que se encontrava o Espírito Santo frente às demais capitanias que o cercava.
Tendo chegado ao Brasil em 1815, para uma grande expedição, foi somente no final de 1816, e nas vésperas de seu retorno à Europa, que o Príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied adentrará em terras capixabas. Após quatro anos de seu retorno ao velho Mundo ele publica sua obra Rise nach Brasilien in den Jahren 1815 bis 1817, (5) que amplia as visões estrangeiras sobre o Brasil e dá o primeiro passo no caminho pelas e para as terras capixabas e seus "famigerados" botocudos.
Nem bem as pegadas de Maximiliano tinham se apagado, chega, em 1817, ao Espírito Santo, aquele que será considerado um dos maiores naturalistas que estiveram no Brasil, o francês Auguste de Saint-Hilaire, que com a publicação da obra Voyage dans le District des Diamans e sur le littoral du Brésil em 1833,(6) abre definitivamente as portas do Espírito Santo aos viajantes estrangeiros.
As obras de Maximiliano e Saint-Hilaire talvez estejam, juntamente com Spix e Martius, no hall dos relatos estrangeiros mais analisados e citados em trabalhos que se debruçam sobre o "debate civilizatório" brasileiro e sobre a formação e alvorecer dessa nova nação no início do século XIX. Esses, somados a Jean Baptiste Debret e Johan Moritz Rugendas, compõem a galeria dos primeiros grandes ilustrados no Brasil.
A publicação na Europa das obras resultantes dos diários de viagem desses "desbravadores" do gênero científico, que se apoiaram principalmente na História Natural, tendo como arcabouços complementares a Botânica, a etnografia, a zoologia e as artes, despertou uma onda de novos aventureiros, que tinham o Brasil como destino, principalmente, a partir da segunda metade do século XIX, período em que o Espírito Santo recebeu um significativo número desses visitantes.
Entre os que estiveram presentes em terras capixabas, e deixaram relatos, destacam-se: Charles Landser (Inglaterra - 1826); Jean Descourtilz (França - 1851); Edward Wilbeforce (Inglaterra - 1851); François-Auguste Biard (França - 1858); Victor Frond (França - 1860); Johann Jakob von Tschudi (Suíça - 1860); Dom Pedro II (1860); Charles Hatt (Canadá - 1865); Julie Keyes (EUA - 1867); Paul Ehrenreich (Alemanha - 1884); Teresa da Baviera (Alemanha - 1888); e por fim, o único viajante do início do período republicano brasileiro, Paul Walle (França - 1910); além, é claro, de uma enorme massa de esquecidos ou, que de passagem em algum momento, deixaram escapar a oportunidade de produzir alguma obra substancial sobre o local.
Demonstrado a grande massa de estrangeiros presentes no Espírito Santo ao longo do século XIX, fica latente a necessidade de se dedicar, mesmo de maneira breve, um estudo sobre aqueles que de certa forma foram os pioneiros desses passos e que lançaram um novo olhar sobre os capixabas e seus costumes, legando-nos uma imensa massa de informações sobre um tempo já há muito perdido.
Assim, Maximiliano e Saint-Hilaire merecem, pelo seu pioneirismo e pelos 200 anos de sua visita, o direito a mais algumas breves palavras, afinal, como proposto pelo primeiro, sua obra não tem a pretensão de apresentar algo perfeito, ouso entretanto esperar que os estudiosos de história natural, da geografia, dos hábitos e costumes de cada povo, encontrarão nas minhas informações contribuição não totalmente despida de importância para os interesses da ciência e da humanidade.(7)
NOTAS
(1) Francisco Gil de Araújo adquiriu a Capitania do Espírito Santo de Antônio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho no ano de 1674, pela quantia de 40.000 mil cruzados. Foi durante sua administração que houve a edificação de diversos fortes na entrada da Baia de Vitória visando a defesa contra possíveis investidas e invasões estrangeiras, a exemplo das ocorridas nos anos de 1625, 1640 e 1653, quando os holandeses atacaram o território capixaba.
(2) Apesar da realização da compra ter sido realizada em 1715, somente em 1718 é que a carta de aquisição e transferência foi definitivamente lavrada, gerando assim possíveis debates sobre a data.
(3) NASCIMENTO, Rafael Cerqueira do. A narrativa histórica da superação do atraso: um desafio historiográfico do Espírito Santo. Tese (Doutorado em História). Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2016
(4) ROCHA, Levy. Viajantes estrangeiros no Espírito Santo. Brasília: Editora de Brasília, 1971, p. 20.
(5) Traduzida para o português sob o Título: Viagem ao Brasil nos anos de 1815 a 1817.
(6) Traduzida para o português sob o Título: Viagem ao Distrito dos diamantes e litoral do Brasil: segunda viagem ao interior do Brasil.
(7) PHILIPP, Maximiliano Alexander. Viagem ao Brasil. Trad. Edgar Süssekind de Mendonça; Flávio Pope de Figueiredo. São Paulo: EDUSP, 1989, Coleção reconquista do Brasil, v. 156, p. 10.
PRODUÇÃO
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Governador do Estado do Espírito Santo
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Vice-governador do Estado do Espírito Santo
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Subsecretário de Gestão Administrativa
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Diretor Geral do Arquivo Público do Estado do Espírito Santo
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Diretor Técnico Administrativo
Conselho Editorial
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José Antônio Martinuzzo
Michel Caldeira de Souza
Rita de Cássia Maia e Silva Costa
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Coordenação Editorial
Cilmar Franceschetto
Coordenação de Arte
Sergio Oliveira Dias
Revisão Ortográfica
Jória Scolforo
Projeto Gráfico e Capa
Alexandre Alves Matias
Agradecimentos
Grupo de Trabalho Paisagem Capixaba
Impressão e Acabamento
Gráfica Dossi
Fonte: Viagens à Capitania do Espírito Santo: 200 anos das expedições científicas de Maximiliano de Wied-Neuwied e Auguste SaintHilaire/ 2. ed. rev. amp. Vitória, Arquivo Público do Estado do Espírito Santo, 2018
Autor: Bruno César Nascimento
Compilação: Walter de Aguiar Filho, agosto/2020
Pero de Magalhães de Gândavo, autor da 1ª História do Brasil, em português, impressa em Lisboa, no ano de 1576
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