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Nas pegadas de Hartt – Por Adelpho Monjardim

Grossos argolões que serviam para trancar a entrada do Porto

Com prazer, há não muito, travei conhecimento com a Geologia e Geografia Física do Brasil, de Charles Frederick Hartt, tradução dos Srs. Edgard Sussekind de Mendonça e Elias Dolianiti. De Hartt, famoso geólogo canadense, que ao Brasil veio pela primeira vez em 1865, sob direção de Agassiz como parte da Expedição Thayer, nada há a acrescentar que não seja do conhecimento geral. Além de possuir sólidos conhecimentos científicos, possuía rara sensibilidade artística. Musicista de raros dotes e impressionista notável, sabia pintar com absoluta fidelidade aquilo que lhe caía sob os olhos, o que, de modo geral, muito contribuía para relevo dos seus trabalhos. Seus desenhos a bico de pena são quase fotografias, documentação valiosa da fisionomia do Brasil antigo, já em parte mudada e mesmo desaparecida.

Da obra de Hartt destaca-se, particularmente, a parte que se refere ao Espírito Santo e a Vitória. Não só comprova o seu valor como a excelência da tradução. Fiel no descrever, fixou em magistrais desenhos os acidentes geográficos com a mesma clareza e critério adotados no exame científico das rochas, plantas, peixes etc., escopo dos seus estudos. Como confessa, procurou ser fiel, o mais possível, à nomenclatura geográfica brasileira, muito embora, não poucas vezes, fosse vítima de guias ignorantes. Como de se esperar, em obra de tal natureza e vulto, notam-se pequenos enganos na grafia de certos nomes que devem ser apontados em benefício de uma nova e provável edição. Fala em uma ponta e um rio chamados Jecu. Naturalmente, ao grafar, valeu-se de um dos tais guias e é hábito, ainda hoje, dizer-se Jecu ou Jacu, por Jucu.

Ao descrever os acidentes geográficos da entrada do porto de Vitória, não é menos preciso. Entretanto aparece a ilha Baleeiro, junto ao Moreno. Pela posição não oferece dúvidas: é a ilha da Baleia. É um pequeno engano, porém, corrigi-lo não é demais. Clareza e minúcia, quando bem orientadas, são sempre apreciáveis. O nome de Baleia vem de uma pedra meio submersa que muito se assemelha ao dorso do gigantesco cetáceo.

"Erguendo-se num anfiteatro, entre belas montanhas, e vista em cheio do mar, forma um guia precioso para o navegante essa montanha cônica, sustentando no topo uma massa semelhante a uma torre, cuja face externa é escavada a leste por considerável caverna, na qual, dizem, em tempos passados, se refugiavam os escravos fugitivos; tal é a montanha chamada Jutuquara, ou Frade de São Leopardo, de acordo com Mouchez."

Uma vez mais foi ele vítima de maus informantes entre os quais Mouchez, culpado de muitos erros que pontilham as nossas cartas geográficas. Mais uma vez as classes incultas, pelo mínimo esforço, impuseram nova mutilação ao vocábulo tupi Jucutuquara, corruptela de Jucu-ita-quera, que significa: pássaro do buraco da pedra, em harmonia com a configuração do rochedo, que apresenta a uma altura, aproximadamente, de 50 metros, duas cavidades circulares, juntas, como dois olhos. Que tivessem servido de refúgio a escravos fugitivos é pouco provável devido às dificuldades que oferecem aos que intentam alcançá-los. Em Vitória poucos se vangloriam de tal proeza. Quanto ao nome de Frade de São Leopardo, não é exato, Frei Leopardi é o que figura nas cartas, errado por sua vez. Antigamente chamavam a esse pico de Jucutuquara, de Frade e outros de Leopardo, daí a forma italiana para desespero dos pesquisadores da História. Ambos os nomes — Frade e Leopardo — se justificam. Para quem à distância contempla o pico, dos lados de sudeste, este se apresenta como um leopardo repousando sobre as patas traseiras, tendo a formar-lhe o quarto direito o grande rebordo que vai ter às cavidades. Os gravatás dão a impressão de pintas de encontro ao dorso cinzento do granito. Visto de leste assemelha-se a um frade embuçado. Jucutuquara, e não Jutuquara, denomina-se um dos maiores bairros de Vitória.

Às páginas 96 e 98, referindo-se à altura das marés, diz Hartt: "Ao longo da superfície noroeste do Pão de Açúcar corre uma linha horizontal irregular. Esta linha consiste numa série de cavidades superficiais, algumas vezes contínuas e evidentemente gastas pela ação das ondas, em épocas relativamente recentes. Esta antiga linha da altura das marés não é distinguível ao longo de toda a extensão da escarpa. Observei isto primeiro nos fins de agosto de 1865. Em setembro de 1867, visitei às pressas novamente a localidade depois da época da lua cheia, que deixara uma bem marcada linha de salsugem correndo em redor da base do Pão de Açúcar, e que os tempos seguintes não atingiram. Medindo tão próximo como pude no intervalo entre as linhas das ondas, a média das duas medidas deu-me para altura do antigo nível d'água acima da maré alta, nível de 13 de setembro, 3,16 metros, ou um pouco mais do que sete pés. Da antiga linha para a borda superior da zona das ostras são 3,56 metros. Na encosta do rochedo do Pão, numa pequena cova no lado oeste, esculpi uma cavidade com um cinzel indicando a altura alcançada pela maré de 13 de setembro de 1867. Esta mesma linha das águas pode ser vista em diversos lugares nas rochas no lado oposto do canal por baixo do Pão de Açúcar, tanto quanto na face do rochedo na extremidade oeste da praia de Vila Velha, onde, tanto quanto pude julgar, media a mesma altura acima do mar. Estas linhas de ondas marcam um período de descanso, quando o continente, mantendo-se por algum tempo no mesmo nível, deu uma oportunidade para as pequenas ondas do abrigado porto marcarem a linha. Nenhuma linha semelhante marca o atual nível do mar, donde deduzi, destes e outros fatos, que a região está, presentemente, levantando-se."

Ao ler estas linhas senti-me acossado por forte curiosidade, fácil de compreender-se. Um traço intencionalmente deixado pelas mãos de Hartt era coisa digna de ver-se.

Por interessante coincidência a 13 de setembro, precisamente 74 anos depois, fui à procura da marca de Hartt. Comigo foram: Dr. Olinto Couto de Aguirre, do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo; Dr. Américo Poli Monjardim, prefeito da capital; comandante Beltrão Pontes, capitão dos Portos do Espírito Santo; e Dr. Augusto de Aguiar Salles. Encarregado de localizar o esconderijo tive o prazer de ver justificadas as minhas suposições, pois ao chegar a lancha ao Penedo o fez em cima do ponto visado. Lá estava, dentro da misteriosa cova, a marca inconfundível. Mede a cova pouco mais de meio metro por trinta centímetros de largura e é uma das muitas cavadas pelas águas nos rochedos litorâneos, porém, hoje em dia nem as grandes marés de março a atingem. Como se depreende é pouco profunda. Logo à esquerda, quase no meio da parede, destaca-se, nítida, a famosa marca, em forma de brasão, medindo doze centímetros por sete.

Estava satisfeita a curiosidade e também comprovada a passagem de Hartt. Para autenticar o precioso achado o Dr. Augusto de Aguiar Salles bateu algumas chapas fotográficas, que ilustraram o memorial apresentado ao Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo. No próprio rochedo do Pão de Açúcar foram fotografados os restos enferrujados dos grossos argolões que, há séculos passados, serviam para suster as pesadas correntes que trancavam a entrada do porto, estendendo-se até o Forte de São João. Pouco abaixo do Forte, por feliz acaso, descobrimos na face lisa de uma pedra, coberta por trepadeiras silvestres, duas misteriosas letras: V.A. — esculpidas e bastante gastas pela ação dos tempos.

Que significará?

 

Fonte: Vitória Física, 1995
Autor: Adelpho Monjardim - Prêmio Cidade de Vitória, 1949
1ª Edição: Revista Canaan Editora, 1950
2ª Edição: Secretaria Municipal de Cultura e Turismo de Vitória, 1995
Prefeito Municipal de Vitória: Paulo Hartung
Secretário Municipal de Cultura e Turismo: Jorge Alencar
Diretor do Departamento de Cultura: Luiz Cláudio Gobbi
Editor Executivo: Adilson Vilaça
Produtora Executiva: Silvia Helena Selvática
Projeto Gráfico: Ivan Alves
Editoração Eletrônica: Edson Maltez Heringer
Foto e Capa: Léo Bicalho
Revisão: Reinaldo Santos Neves
Chefe da Biblioteca Municipal Aldelpho Poli Monjardim: Ligia Maria Melo Nagato
Bibliotecárias: Elizete Terezinha Caser Rocha e Cybelle Maria Moreira Pinheiro
Compilação: Walter de Aguiar Filho, outubro/2015

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