O Combate na Baía do Espírito Santo - Cavendish (5ª Parte)
Meu cockboat e outros barcos partiram com cerca de oitenta homens, armados o melhor possível, para cumprir uma missão daquela natureza. Ao entrar na baía, ficaram inconsoláveis, ao constatar que, durante a noite, os portugueses tinham afastado seus navios para bem longe, no porto, entrando em um rio, que ficava a meia-milha, ou um tiro de passarinheira, da cidade. Nas suas margens, relativamente altas, tinham construído duas trincheiras, com pequenas guaritas de pedra. Passando a muralha erguida em cada lado da boca do rio, havia uma mata densa e, bem na altura da água, umas pedras enormes, dificultavam qualquer abordagem. Se alguém tentasse atacar as trincheiras pelo rio, os portugueses poriam mil homens em retirada, só jogando pedras morro abaixo.
A sentinela da margem sudoeste atirou uma ou duas vezes, assim que viu nossos barcos. A tripulação foi apanhada de surpresa, procurando os navios que desapareceram da barra. Os homens hesitaram e começaram a discutir, entre si, o que deveriam fazer. O capitão Morgan afirmou que a boca do rio era muito estreita e não haveria como passar por ali, sem risco de serem atingidos, ou de baterem nas pedras das margens. Ele optou por um curso de ação, que levava em conta o grande número de homens sob seu comando e também as ordens que eu lhe dera: encontrando qualquer perigo, deveriam voltar a bordo. Morgan me garantiu que não iria adiante, sem receber minhas futuras instruções.
O capitão Morgan lembrou minhas palavras aos marinheiros, mas alguns “cabeças-duras” começaram a praguejar, dizendo que sempre consideraram Morgan um covarde, que fingia sofrer de diarréia, para fugir da briga, quando na verdade, se borrava de medo de tudo.
Para aqueles “bocas-sujas”, Morgan não tinha coragem para prosseguir e levar o assalto até o fim; por isso ficava falando bobagens sobre uma muretinha na boca do rio.
Morgan – que era um cavalheiro honrado – quase perdeu o autocontrole, de tão ofendido. Ele respondeu que, não achassem que poderiam ficar lhe chamando de covarde “borra-botas”, impunemente. Para provar o que dizia, concretamente, Morgan desafiou os “anjos do inferno” e gritou que, acontecesse o que acontecesse, todos desembarcariam na boca do rio. Os homens, entretanto, tinham observado apenas a trincheira grande, de onde partiram os tiros. Não perceberam a outra, que ficava na margem nordeste e era bem menor. Puseram seus barcos bem ao leste, enquanto escolhiam o melhor lugar para o desembarque. Combinaram que o barco maior iria para o oeste, distrair as sentinelas. O barco menor “nadaria de costas”, fingindo que saía do rio, e indo atracar na margem leste, sem chamar a atenção.
Os barcos embicaram para a praia e foram recebidos por tiros de mosquete, dos mais diversos calibres.
No barco maior – o Cockleshell – dois caíram feridos e um, morto. Os homens do barco menor (o pesqueiro) atracaram primeiro e conseguiram desembarcar. Daquele lado leste-nordeste, havia poucos soldados mantendo guarda na guarita. Eles viram que seriam incapazes de se defender contra os nossos e fugiram disparando para o alto. Desse modo, o assalto correu conforme o esperado: os homens entraram pacificamente na trincheira, sem que ninguém se ferisse.
Na outra margem, o barco menor foi atingido por uma pedra, que rolou morro abaixo e se chocou com violência, contra a lateral, abrindo um rombo no casco. A barca começou a fazer água e encalhou antes dos homens chegarem à praia. Um destacamento desceu assim mesmo, com água até o pescoço. A trincheira, ou barricada, ficava a uns dez pés de altura e o morro era de pedra muito lisa. O capitão Morgan, mais relutante do que discreto, começou a subir a escarpa de qualquer maneira. Outros dez o acompanharam e os demais tiveram que ficar tirando água do barco e tapando os buracos do casco. Quando os onze chegaram ao alto do morro, surgiram índios e portugueses, com pedras nas mãos. Morgan e outros cinco morreram na hora, a pedradas. Os cinco sobreviventes do grupo de assalto, sofreram ferimentos graves, mas pularam de volta à praia e recuaram para o barco. Ao subirem para o barco, viram que o casco estava coberto de flechas. No convés, apenas oito, dos quarenta e cinco homens, escaparam ilesos. Entre os feridos, alguns tinham até três flechas cravadas no corpo, A maioria tinha pelo menos duas e a chuva de flechas continuava caindo, com uma fúria medonha. Ninguém conseguiu escapar, sem se machucar. Os marinheiros em condições de trabalhar, jogaram para fora do barco os cadáveres e todo peso desnecessário, inclusive uma canhoneira. Perdendo peso, a nau desencalhou.
Fugiram sem olhar para trás, abandonando armas, munições, cordas e até restos da cabine, como espólio para os índios.
Durante a fuga, depararam-se com dois barcos cheios de portugueses e alguns espanhóis de grande porte físico, que se dirigiam para a trincheira leste, que estava precisando de ajuda. O barco mais carregado de soldados chegou à margem leste.
No alto da trincheira, nossos homens fizeram seus mosquetões cantar, ferindo e matando todos os que se arriscaram a descer. Vendo seus companheiros darem-se mal, os portugueses que ficaram a bordo, remaram com toda força, de volta para a cidade, que ficava a sudoeste. Ao passarem pelo pequeno forte, onde morrera Morgan, chamaram o seu pessoal para abandonar a trincheira e vir em busca de socorro. Pois muitos dos seus homens estavam mortos ou feridos, Os do nosso barco resolveram fazer o mesmo, vindo à trincheira leste, para chamar os marinheiros que estavam lá em cima. Mesmo sem saber o que acontecera, eles já tinham observado que o inimigo estava voltando com reforços, em mais duas barcas. Saíram correndo da trincheira, pularam o muro e se dirigiram para o barco.
Como todos subissem a bordo apressados e quase ao mesmo tempo, o barco foi ao fundo e encalhou. Ninguém conseguiu movê-la. Tiveram que dispensar as armas, e os dez mais pesados também saíram para levantar o barco.
Os índios expulsos das guaritas pelos marujos, reapareceram no alto do morro e começaram a atirar flechas contra os nossos. Os marinheiros ainda trabalhavam para desencalhar o barco, quando uma nuvem de flechas desabou sobre suas cabeças. Eles mergulharam e se esconderam atrás do barco. O casco cravejado de flechas, parecia um porco espinho.
Os dez mais gordos, que estavam empurrando o barco, na praia, voltaram correndo para a muralha do forte, encostando-se contra a parede. Desse modo, protegiam-se, tanto das flechas, quanto dos tiros ou pedras, pelo menos até serem descobertos. Como eles tinham carregado todas as nossas armas consigo, passaram a atirar com mosquetes, na vigia debaixo da guarita. Isso distraiu um pouco os portugueses, com seus bacamartes e canhonetas, mas não os índios, com suas flechas. O barco se soltou da lama do fundo do rio e foi sendo empurrado para longe, pelos marinheiros nadando embaixo d’água.
O mestre do “Roebuck” forçou os homens a remarem em retirada, entregando os companheiros, que ficaram na praia, à sua própria sorte. Justamente os mais corajosos – os que ficaram atirando, para darem cobertura à fuga do barco – terminaram tornando-se a presa mais fácil dos portugueses. Pior ainda; ao verem o barco afastar-se, aqueles marinheiros sem medo da morte, saíram correndo, atirando de costas no inimigo, até ficarem com água pela cintura, quando largaram as armas e nadaram em direção ao barco.
O mestre do “Roebuck”, porém, revelou-se um dos vilões mais covardes jamais nascidos do ventre de uma inglesa. Ele mandou o barco afastar-se o mais rápido possível; sem dó nem piedade dos marinheiros abandonados. A sua desculpa era que o barco afundaria, com os gordos a bordo. Assim, por pura vilania de um covarde, todos aqueles pobres coitados perderam suas vidas.
O pessoal da nossa barca maior, ao ver os gordos nadando desesperados, tentou voltar, para recolher os companheiros do “Roebuck”; mas estava com muito medo de encalhar e terminou demorando para se aproximar da costa; encontrando apenas cadáveres cobertos de flechas, boiando no rio, e homens esmagados por enormes pedras, jogadas lá do alto da montanha, pelos índios.
Ouvi essa história toda calado, estimando os prejuízos. Além de estar com os dois melhores barcos pequenos imprestáveis, lá se foram mais de cinqüenta armas, mais de vinte e cinco homens, - sendo dez dos quais abandonados pela praia, nas condições indígenas que me descreveram. Entre os sobreviventes, não havia oito que não estivessem feridos. Estes consumiram quase todos os medicamentos que nos restavam. Tudo isso, por uma aventura, por um assalto mal planejado, um desembarque suicida, em que era evidente que o resultado não seria outro. Exigi uma explicação para o fracasso. Queria saber quem provocou aquela calamidade.
Por que desembarcaram, desconsiderando meu comando, expresso no sentido contrário? Morgan teria enlouquecido?
Eles responderam que não fora erro do capitão Morgan. O que provocou aquela mutilação toda, foi uma controvérsia entre o capitão e seus comandados. Morgan, entretanto, não teve outra alternativa. Ele estava tentando apenas salvar a sua honra, depois de ser humilhado e desafiado por discursos malignos, que o acusaram de maricão e borra-botas.
Nada, , justificava contrariar as minhas ordens. Desembarcaram num lugar, onde todos reconheciam que bastariam quarenta homens no alto da trincheira, para acabar com quatrocentos chegando à praia”.
Autor: Zoel Correia da Fonseca
Fonte: Textos de História Militar do Espírito Santo – Coleção João Bonino Moreira – vol. 3
Compilação por: Getúlio Marcos Pereira Neves. Vitória, 2008.
Pero de Magalhães de Gândavo, autor da 1ª História do Brasil, em português, impressa em Lisboa, no ano de 1576
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