O Movimento do só depois – Por Roberta Giovannotti
Birinha adorava o movimento do Centro Social de seu bairro.
Em particular agora, mil novecentos e sessenta e nove, com a realização do I Encontro de Trabalhos Comunitários da Grande Vitória.
O Bonfim ia marcar presença, com os vizinhos Santos Dumont, Gurigica, Nossa Senhora da Consolação, Boa Vista, Engenharia, Eucalipto, Santa Cecília, Penha, Andorinhas, São Cristóvão, Itararé e Tabuazeiro.
Nos dias três, quatro, cinco, seis e sete, oito de novembro, moradores, estudantes, profissionais liberais ou não, autoridades e convidados especiais estariam reunidos no auditório e nas salas da Fafi (Faculdade de Filosofia), cumprindo à risca, ou sem muitos riscos, a programação desse evento, promovido pela então Secretaria de Serviços Sociais. Já se faziam eventos fafianos em 1969, marcando a Fafi como lugar de todos os encontros, amores, bodas e beijos.
Nosso menino de onze anos, o Birinha, se deixava ficar nos dias de reunião no Centro Social, espiando as discussões. Ouvindo os queixumes e as promessas, ficava babando embevecido o presidente da Associação, Seu Galdino.
O título de presidente da Associação de Moradores, inscrito em prata na faixa azul, era um dos sonhos de Birinha.
E Seu Galdino, na sua simplicidade meio egóica, não conseguia uma explicação objetiva (porque não há) para essa pompa das quintas-feiras, às dezenove e trinta horas.
Dizia ter copiado das posses dos outros presidentes. Os da República. E se empossava a cada semana, com a cerimônia que lhe era permitida, e que ele, agraciado, se permitia.
Calmo, esse presidente desfiava a pauta do dia, apontando para as faltas dos bairros, que se querem e se colocam desprovidos.
Bairros esburacados se movem nas periferias. As carências insistem, resistem e falam.
O povo quer melhorias. Bocas e corpos reivindicam. Concretizam-se nas aberturas de ruas, na pavimentação, nas creches e nos postos de saúde. Gritam pelo óbvio que está fora. Calam o que lhes vai por dentro. Deitam e deixam o desejo nas biroscas e nos filhos que fazem.
E continuam pedindo rede de esgoto, extensão de rede de água.
A sede continua. Os canos estão desnudados, correm as lágrimas de acidez e os excrementos dos corpos. Morro abaixo, a céu aberto.
Como orquestra afinada, escola de samba organizada, constituem comissões. Cada subgrupo abraça as faltas que lhe cabem. Em nome das prioridades. Primeiro as primeiras coisas.
Com bilhetes marcados, abrem alas, invadindo as fronteiras da burocracia das prefeituras, das secretarias e dos gabinetes.
Assinam embaixo dos desejos dos outros. Que tomam como desejo próprio.
Expropriados, remam a favor da maré em noite de lua cheia.
Vão a todos os lugares que querem, que devem e podem ir. Aos que não querem também frequentam. É preciso sangrar todas as feridas e as saídas.
Derramam em torrente toda a papelada, com mil assinaturas, com dois mil nomes próprios. Estratégia imprópria?
Os abaixo-assinados continuam pedindo, querendo, requerendo. Fazendo petição, requerimento, pedido em juízo.
Reclamando. O prometido é devido.
Mas agora, com esse Encontro, teriam um lugar para falar, para fazer os encaminhamentos, para depositar suas esperanças azul e rosa...
A Fafi se transformou na tribuna de honra dos bairros. Sempre a partir das quatorze horas, com direito a abertura solene.
Durante seis dias se falou de muitas coisas.
Da realidade brasileira, do desenvolvimento da comunidade, das técnicas e instrumentos que são usados nos trabalhos comunitários. Até mesmo de certos princípios de espontaneidade e de urgência.
Como se a espontaneidade tivesse princípios!...
Com normas, o que é espontâneo se esperneia. Alguém falou de estratégia do arranco e da maturidade. Da sociedade de consumo, se consumiu o suficiente.
Com intenções colaborativas, elaborou-se uma monografia dos bairros, retrato em preto e branco, sem olhar de raio X.
Bonfim foi retratado por seu Galdino, que levou um relatório também fotográfico. Das urgências diagnosticadas pelos moradores em seminário interno. Interessante como se fundem os problemas dos bairros com os das pessoas que ali habitam. Necessidade e demanda são materializadas nos muros de arrimo, nas construções de melhorias. Quem melhora? O bairro? Os moradores? Os poderes públicos?
Birinha também frequentou a Fafi, grudado no Seu Galdino, que socializava a faixa com os colegas presidentes.
Sentado no banco da frente e vestido com a camisa do Flamengo, Birinha acompanhava todo o processo. Vendo, ouvindo e sentindo.
Ficou ensimesmado com a questão da melhoria. Levou essa questão adverbial para casa. O que é melhor ou não povoou os sonhos de Birinha.
Não queria ser madeira de fazer lenha e sim a de lei. E metaforizava, dando asas à sua imaginação. Ele mesmo voava, sentado em um tapete mágico, olhando do alto o morro Bonfim.
A inscrição na pedra — Cristo vive — reavivava um pouco a sua alegria de ser criança. Lembrava das aulas de catequese da paróquia.
E quando Birinha voava, se tornava pródigo na produção de imagens.
Comparava o movimento da associação com uma pequena lagarta verde que se arrasta, que se queixa, que se quer azul como o céu, que quer voar como os pássaros, que quer ter o perfume das flores. Até que experimentou uma poção mágica de um pequeno duende.
A magia era meditar, se recolher.
E a lagarta se fechou em um casulo. No tempo certo se abriu e se fez borboleta.
O que quer um movimento, senão essa metamorfose?
A Associação de Moradores, no pensar do Birinha, reeditava essa metamorfose da lagarta.
E ele lembrou do verbo pedir, repetir, buscar, assinar. E esperar.
As mudanças e as melhorias poderiam vir. Cada uma ao seu jeito, com um ritmo próprio. No interjogo das relações do poder, um tempo de espera às vezes também é preciso. Sem furor. Sem o pecado do imediatismo. Sem compulsão, sem sacrilégio.
Seu Galdino sabia que os meteoros podem cair do céu. Mas as transformações estão pé no chão. E ele também sabia desses lemas, dos quais se tira partido.
Principalmente os do partido.
Mansamente ele conduzia o seu rebanho e casualmente caía no laço — também se embaraçava.
Birinha se identificava com Seu Galdino.
Sem conhecer o pai, nem mesmo de foto, idealizava um pai alto, forte e falante, bom de discurso e dono de faixa.
Ser filho de presidente é melhor que ser seu vice.
Se via nos olhos do presidente. E se fazia assim, agraciado e empossado. Birinha já desfrutava de um terceiro padrasto. A mãe não curtia solidão. Apressada que nem pólvora, corria atrás das parcerias para dividir o fôlego da sobrevivência. A dos reais sem realeza.
E o menino apanhava da mãe e do padrasto. O que pedia era negado, o que buscava não lhe era ensejado. Birinha não podia ter quereres.
O encontro da Fafi trouxe frutos para a Associação — a Universidade encaminhou estagiários de várias áreas profissionais, firmando um tal de convênio.
E nessas novas ondas que movem os movimentos, ele queria ter sua prancha, ser o rei da maré.
Teve sua prancheta com papel e lápis de cor. Foi o que escolheu fazer naquela Rua de Recreio, em um sabadão quando o bairro vira festa. As caixas de som disputam os decibéis, frangos e galinhas de granja são pesados a duras penas.
Outras crianças escolheram gincanas, corrida-de-saco, jogos vivos de nossa cultura, que povoam a nossa infância.
Mas Birinha quis desenhar, contar a sua história. Contando dele, ele falava do movimento do bairro, da associação, do Seu Galdino, do que guardava e resguardava.
Afinal, um movimento nasce de um embrião, que nem o duo óvulo-espermatozóide.
Precisa um tempo para germinar, crescer, nascer. E se registra, vira cidadão, produz, edifica. Ou não.
Na sua sensibilidade, Birinha percebia que o mundo dá voltas que nem a lã de um novelo nas mãos da vovó.
No seu desejo de saber, ele sabe.
Na sua busca ele encontra. E avança.
E começa a desenhar.
Enquanto desenha, come os doces desse recreio-oferenda.
E faz o menino. Se faz.
Inventa uma história, reeditando, com sua metáfora, o galopar de sua associação e a cavalgada de todos os outros movimentos, mistério de vida e morte ainda e também severina.
Assim:
O menino subiu no cavalo. Caiu e não se assustou
o garoto tá jogando bola
joga bola, brinca, depois vai dormir
lava o rosto e bebe café
depois vai para a escola tomar merenda
bate a sineta e vai para casa
depois o garoto foi atropelado pelo carro
botou curativo no hospital
saiu do hospital e foi embora de táxi
foi para casa, melhorou a perna
caçou encrenca com a mãe e levou uma surra
o menino chorou e foi brincar
e beijou a flor
a formiga mordeu a boca do menino
a mãe deu uma surra nele
chorou e apanhou. Depois foi brincar
acabou de brincar e foi dormir
levantou da cama e foi brincar
caiu e se escondeu para a mãe não bater mais
depois de escondido ficou chorando
a mãe achou ele
e deu uma surra nele
sumiu de casa e morreu
o carro atropelou e ele morreu
os pais dele foram ver
ele tava no caixão
depois foi para o cemitério
colocaram dentro do buraco
levaram um monte de flor
jogaram terra em cima
jogaram água e foram embora
levaram velas
depois o menino subiu ao céu
depois eles foram embora.
Chegaram em casa e tomaram banho
depois de dois anos foram visitar ele.
Escritos de Vitória – Uma publicação da Secretaria de Cultura e Turismo da Prefeitura Municipal de Vitória-ES, 1996
Prefeito Municipal: Paulo Hartung
Secretária Municipal de Cultura e Turismo: Silvia Helena Selvátici
Sub-secretário Municipal de Cultura e Turismo: Rômulo Musiello Filho
Diretor do Departamento de Cultura: Rogério Borges de Oliveira
Diretoria do Departamento de Turismo: Rosemary Bebber Grigatto
Chefe da Biblioteca Adelpho Poli Monjardim: Lígia Maria Mello Nagato
Bibliotecárias: Elizete Terezinha Caser Rocha
Lourdes Badke Ferreira
Conselho Editorial: Álvaro José Silva, José Valporto Tatagiba, Maria Helena Hees Alves, Renato Pacheco
Revisão: Reinaldo Santos Neves, Miguel Marvilla
Capa: Vitória Propaganda
Editoração Eletrônica: Edson Maltez Heringer
Impressão: Gráfica e Encadernadora Sodré
Fonte: Escritos de Vitória, nº 16 Movimentos Sociais, Secretaria Municipal de Cultura e Turismo – PMV, 1996
Texto: Roberta Giovannotti
Compilação: Walter de Aguiar Filho, setembro/2018
Pero de Magalhães de Gândavo, autor da 1ª História do Brasil, em português, impressa em Lisboa, no ano de 1576
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