Teria sido o ES “descoberto”durante a expedição de 1501?
Nessa expedição, que partiu de Lisboa em maio de 1501, vinha Américo Vespúcio, que já participara, a serviço da Espanha, de outras viagens à América, e é justamente a ele que devemos os únicos registros dessa viagem, em que pese o caráter lacunar, duvidoso e controvertido de suas descrições. Na verdade, Vespúcio, em seu relato, nem sequer chegou a mencionar o nome do comandante da armada de que participava como figura importante. (GUEDES, 1970:184)
O relato da viagem, feito por Vespúcio na carta Mundus Novus, se por um lado deixa claro que foi esta a expedição que estabeleceu em definitivo a continentalidade da nova terra, uma vez que ele aí afirma taxativamente que a expedição chegou a uma terra que “soubemos não ser ilha mas continente, porque em longuíssimas praias se estende não circundantes a ela e de infinitos habitantes era repleta.”, por outro lado, infelizmente para nós, deixa muito a desejar quanto aos locais visitados. (VESPÚCIO, 1984:91-2) Na Lettera, outra carta em que Vespúcio também descreve a viagem, que teria sido a sua terceira viagem à América, diz ele:
“Partimos desse lugar, e começamos nossa navegação entre levante e siroco, e assim se percorria a terra: e fizemos muitas escalas e jamais encontramos gente que com eles nós quiséssemos conversar; e assim navegamos tanto, que descobrimos que a terra fazia a volta para o sudeste; e depois que tínhamos dobrado um cabo, ao qual pusemos nome de Santo Agostinho, começamos a navegar para sudeste, e dista este cabo da antes mencionada terra, que vimos onde mataram os cristãos 140 léguas para levante; e está este cabo oito graus fora da linha equinocial para o austro. [...] Percorremos desta costa ao pé de 750 léguas; 150 do cabo dito de Santo Agostinho para o poente, e 600 para o sudeste; e querendo contar as coisas que nessa costa vi, e aquilo que passamos, não me bastariam outras tantas folhas; e nessa costa não vimos coisa de proveito, exceto uma infinidade de árvores de pau-brasil e de cássia, e daquelas que geram a mirra, e outras maravilhas da natureza, que não se podem contar; e já tendo estado na viagem bem dez meses, e visto que nessa terra não encontrávamos coisa de minério algum, acordamos nos despedirmos dela, e irmos cometer o mar noutra parte. (VESPÚCIO, 1984:128-9)”
Desse trecho se deduz facilmente que a primeira expedição de reconhecimento do litoral brasileiro percorreu desde o atual Rio Grande do Norte até pelo menos o litoral do atual estado de São Paulo (Cananéia?), passando, evidentemente, ao largo do litoral do atual Espírito Santo. Infelizmente, no entanto, Vespúcio passa em poucas linhas do início ao fim de seu périplo, sem mencionar qualquer característica ou nome dos locais visitados, razão por que quase nada ficamos sabendo a respeito. Todavia, é bem possível que se tenham feito outros relatos da expedição destinados ao conhecimento das autoridades portuguesas que, evidentemente, tinham pouco interesse em divulgá-los, e é por isso que a melhor fonte para o estudo do tema continua sendo a cartografia da época que chegou até nós, mais exatamente a partir do célebre planisfério de Cantino, tido pelos especialistas como o primeiro mapa em que aparece o Brasil.
O primeiro desembarque da expedição se deu, como já foi dito, no litoral do atual Rio Grande do Norte. A partir daí, conforme o almirante Max Justo Guedes, reconhecido internacionalmente como grande especialista no assunto, “a viagem pode ser acompanhada pela toponímia que criou, logo registrada na cartografia da época, e cujos reflexos chegaram aos nossos dias através dos mapas de Cavério, Kunstmann II, Maggiolo 1504 e Waldseemüller 1507.”(GUEDES, 1970:188).
O mais antigo desses mapas, no entanto, é o célebre mapa dito de Cantino que, registrando as primeiras informações sobre os descobrimentos portugueses, tornou-se a sua primeira representação cartográfica. Um dado muito importante a seu respeito é que, antes de ser enviado à Itália pelo espião que o adquiriu a peso de ouro, Cantino, o mapa sofreu óbvias alterações, através da adição de um pedaço de pergaminho no qual se deslocava a costa brasileira um pouco para oriente a fim de não dar ocasião a que a Coroa de Castela a considerasse parte de seus domínios, falsificação que prevaleceria nos mapas portugueses dessa época até pelo menos a primeira exploração espanhola realizada com fins cartográficos, que se deu por volta de 1515. (COUTO, 1995:191).
No planisfério original de Cantino, apenas dois topônimos são mencionados no Brasil continental: o cabo de São Jorge, ao norte, na altura do Rio Grande do Norte (nome dado provavelmente por Gaspar de Lemos) e Porto Seguro (local onde aportara Cabral). Isso, segundo conclui acertadamente Duarte Leite, traduzia o conhecimento que se tinha do Brasil antes do regresso da expedição de 1501, donde se deduz que as adições feitas logo depois correspondiam aos resultados dessa expedição. Na emenda, ao primeiro topônimo, “cabo de São Jorge”, foram acrescentados os seguintes: “san miguel”, “rio de sã franco”, “abaia de todos os sanctos” e, logo depois de “Porto Seguro”, o de “rio de brasil” e, bem mais ao sul, o “cabo de sancta marta”, permanecendo ainda a referência à ilha de “Quaresma”, depois denominada de Fernão de Noronha, localizada a leste do cabo de São Jorge, ilha provavelmente descoberta por João da Nova na terceira expedição à Índia.
Nos outros mapas mencionados, supostamente elaborados também com base em informações provenientes dessa primeira viagem – tese que pode ser discutida, a meu ver –, foi acrescentado o topônimo “Rio de sta Lucia”, além de “bareras vermeia”, “barossa”, “monte de pasqual”, logo abaixo do “rio de Brasil”. Todos eles acham-se localizados entre Porto Seguro e o rio de Santa Lúcia, o que pode ser confirmado nas transcrições feitas nos quadros organizados por Guedes e Cortesão. (CORTESÃO, 1936; e GUEDES, 1970).
O que mais nos interessa aqui é salientar que de Porto Seguro, área já descoberta e batizada por Cabral, a expedição partiu para o sul navegando por águas supostamente jamais sulcadas por navios de Portugal ou de qualquer outra nação européia. Cerca de cem milhas adiante os navios depararam-se com os Abrolhos (Abram os olhos marinheiros!), designação pitoresca mas apropriada para um conjunto de recifes de formação coralina e de pequenas ilhas (Santa Bárbara é a maior delas) que se estendem numa extensão norte-sul e leste-oeste de cerca de vinte léguas e que tornam a viagem na área extremamente perigosa. Logo após transpor os primeiros recifes, chamados atualmente de Itacolomis, a frota teria fundeado no rio que se denominou Santa Lúcia, por aí chegarem em 13 de dezembro, dia consagrado a essa santa. Segundo o historiador Moacyr Pereira, em estudo recente sobre o assunto:
“É o “Rio de sta. Lucia”, no Cavério. Nesta carta, como em Kunstmann II e no Maggiolo 1504, o rio aparece com um largo estuário projetando-se da costa e bordado de ilhas por fora, que representam o Arquipélago dos Abrolhos e seus arrecifes, demonstrando a importância que os nautas lhe atribuíram. Não pode haver dúvida sobre a sua identificação. O rio chamou-se depois “Rio das Caravelas”, como figura no Atlas de Lázaro Luís de 1563, e persiste até hoje. (PEREIRA, 1984:267).”
A seguir, assinala o autor:
“Perceberam os pilotos da frota o extremo perigo que correriam os navios se lançados naquele mar desconhecido, semeado de escolhos e de baixios. E decidiram contornar todo o complexo, velejando para o alto mar até poderem retomar o rumo sul, fazendo depois a aproximação da terra, a sudoeste. Que foi isto o que aconteceu comprovam-no os três mapas em exame, cujas nomenclaturas sofrem um hiato ao sul do Rio de Santa Luzia, e somente são reiniciadas muito abaixo deste ponto do litoral […]. É fora de questão, portanto, que as caravelas, velejando longe de terra, não avistaram essa parte da costa brasileira. (IDEM, 268)”
Pereira acrescenta ainda que:
“As caravelas voltaram a aproximar-se de terra, muito ao sul, como se infere das nomenclaturas dos três mapas, que não registram o grande caudal do Rio Doce e as montanhas da Serra dos Aimorés, de que alguns montes solitários próximos da orla marítima são visíveis do mar a grande distância como o Monte Mestre Álvaro, perto da praia e um dos pontos mais notáveis da costa brasileira. Estes acidentes geográficos localizam-se no norte do Estado do Espírito Santo. No centro do estado também ocorrem elevações perto do litoral, como na baía de Vitória. Conclui-se, pois, que os navios da frota aterraram já no trecho meridional da costa deste estado. (IDEM: 269).”
Assim, segundo o mesmo historiador, o hiato que se observa em todos os mapas mais antigos (Cavério, Kunstmann, Maggiolo etc) entre o último topônimo mencionado na região, o rio de Santa Lúcia (ou Santa Luzia) – que segundo ele seria o atual rio das Caravelas, e o mesmo que Varnhagen sugeriu que fosse o rio Doce – e a serra de São Tomé, já próxima de Cabo Frio, sugere que realmente já os pilotos dessa primeira expedição de reconhecimento, incluindo os pilotos das demais expedições, decidiram contornar todo o complexo “velejando para o alto mar até poderem retomar o rumo sul, fazendo depois a aproximação da terra, a sudoeste”. (PEREIRA, 1984:268) Segundo também Max Justo Guedes, referindo-se a essa expedição de 1501, “os trechos melhor reconhecidos foram os das proximidades do rio S. Francisco, Baía de Todos os Santos, Porto Seguro e São Tomé-Cananéia, onde foi concluído o percurso costeiro, segundo procuraremos demonstrar” (GUEDES, 1970: 257), acrescentando:
“Logo ao sul dele [do Monte Pasqual – EFS], vê-se claramente um primitivo delineamento da “p. Da baleia”, com os Abrolhos ao largo. [...] Segue-se um longo trecho sem toponímia, indicativo de um afastamento proposital do litoral – aconselhado depois por todos os roteiristas – de modo a ultrapassar, por fora, os perigosos parcéis de Paredes e Abrolhos. Com boa margem de segurança, o contacto com o litoral, isto é a aterragem, só foi feita em São Tomé (22º sul). (GUEDES, 1970:188)”
Fica clara assim essa hipótese formulada pelos modernos historiadores: por uma questão de segurança, para contornar os perigosos recifes dos Abrolhos, a expedição de 1501 se teria afastado bastante da costa, só voltando a ter contato com terra próximo da região de Cabo Frio, excluindo assim de seu contato direto justamente o trecho que, na sua maior parte, corresponde ao litoral do atual Espírito Santo. Isso explicaria o seu tardio reconhecimento e a ausência de referências cartográficas a qualquer topônimo na região, pelo menos até certa época. Estaria assim explicado o relativo esquecimento dessa parte do litoral brasileiro nos primeiros tempos.
E foi o mesmo Moacyr Soares Pereira quem se encarregou também de descartar a hipótese formulada por Daemon de que a expedição organizada em 1503 teria descoberto o Espírito Santo:
“Dois anos mais tarde, Américo Vespúcio temeu arriscar-se com a sua conserva, a outra nau que o acompanhava, naquele labirinto de recifes, e nem sequer tentou ladear os Abrolhos – “… porque não podíamos navegar além por faltar-nos gente e aparelhos, (229) alegou. Por isto, não passou do porto a 18º S, certamente o mesmo Rio das Caravelas, no qual estivera em 1501 com a primeira expedição portuguesa, onde carregou pau-brasil e construiu fortaleza” (PEREIRA, 1980:268)”.
Ou seja, a ser válida a opinião de Pereira, a expedição de 1503-4 nem sequer teria passado pelo Espírito Santo, já que teria terminado seu percurso em Caravelas. Também contra a hipótese formulada pelo barão do Rio Branco e seguida por Ceciliano Abel de Almeida e Mário Freire, de que a ilha de Santa Bárbara fosse Vitória, Pereira é de opinião que “... na manobra para flanquear os Baixos, os navegadores de 1501 deram com o grupo de ilhas dos Abrolhos e batizaram a principal delas com o nome de Santa Bárbara, conservado até agora… O dia de Santa Bárbara, 4 de dezembro, não dista muito da data em que por lá passaram…” (IDEM: 268-9).
Fonte: Estudo Introdutório do livro – Província do Espírito Santo, de Basílio Daemon, 2º edição, ano 2010
Autor do Estudo: Estilaque Ferreira dos Santos
Compilação: Walter de Aguiar Filho/ maio/2015
Pero de Magalhães de Gândavo, autor da 1ª História do Brasil, em português, impressa em Lisboa, no ano de 1576
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