A Revolução gera o PSD
Carlos Lindenberg atribui à sorte – pois “não tinha intenção alguma” – o seu sucesso como político, embora reconheça os percalços: “Eu acho que um político pode prestar muitos serviços ao estado e ao país, mas sofre muito porque recebe muitas calúnias, injúrias e injustiças como qualquer salafrário que exista por aí. Raramente um camarada reconhece que um político tem valor, e não procura ressaltar esse valor, mesmo que esteja bem claro à vista de todos.”
A entrada na política ele imputa às circunstâncias mais do que à herança familiar: seu trisavô fora prefeito em Lübeck; o pai, vereador em Minas; o avô, chefe político em Cachoeiro; todos os tios foram políticos – quando estudante, hospedado em casa de Jerônimo, observava seu desempenho como senador; fora candidato a prefeito de Cachoeiro, perdera, pensava ter sido experiência única. Participou da Revolução de 30 mais por fraternidade: seu irmão José Lindenberg “estava metido nela até o pescoço”. Por causa disso acabou convidado e, quando percebeu, já era novamente candidato.
Sua carreira vitoriosa não pode ser atribuída só às tradições oligárquicas de sua família e ao prestígio de que desfrutava no interior do estado. Em 1924, após a venda da Monte Líbano, junto com Licério Duarte e Francisco Fundão montou a firma Sociedade Duarte, Fundão & Cia., uma casa de ferragens localizada ao lado da escadaria do palácio do governo. Além disso, exercia a advocacia (inventários, contratos, sociedades anônimas etc.), ao mesmo tempo em que tratava dos negócios e dos processos de terras de “todo aquele pessoal do interior”.
Já não havia mais tanta epidemia em Vitória: médicos da Fundação Rockefeller ajudaram a erguer postos de saúde, distribuindo remédios gratuitamente; a primeira agência do Banco do Brasil incluía a cidade no mapa econômico. No princípio da década, os rapazes e as moças frequentavam o Parque Moscoso, depois a praça da Independência (hoje Costa Pereira), com os rapazes e as moças circulando pela calçada em direções opostas. Quando da inauguração do Teatro Carlos Gomes, em 1926, todo mundo passou a frequentá-lo, bem como ao Clube Vitória, que reunia as famílias mais abastadas. Tudo era pretexto para festas: a entrada da primavera, uma festa chinesa, um baile branco. E tudo com muito rigor: o diretor social conferia na porta as carteirinhas dos sócios. As moças sempre iam acompanhadas de uma “pessoa responsável”. Ninguém se atrevia a ir vestido de vermelho num baile branco. Orquestras do Rio eram especialmente contratadas.
O Diário da Manhã, que publicava atos oficiais na primeira página e a seguir acontecimentos sociais, sempre se referia ao Clube Vitória como “o Vitória Futebol Clube, o invicto glorioso”. Mas o Rio Branco, de pessoas mais modestas, era mais popular. Embora perdesse para o Vitória, que reunia Nelson Monteiro, filho de Bernardino, e até um tenente do Exército que trazia uma escolta do 3º Batalhão para guarnecer o campo. Como vingança, o Rio Branco contratou Sanema, jogador carioca e, com ele, o time venceu. A torcida do Vitória reagiu cantando: “Ai, ai, meu pessoal, Sanema foi comprado pelo Rio Branco, um time avacalhado.” A torcida ofendida respondeu: “Pessoal da nossa equipe deixa o nome na história, arrancando o invicto glorioso do Vitória.” No remo aconteceu o mesmo: o Clube Álvares Cabral contratou o “Engole Garfo”, campeão nacional de remo, do Rio Grande do Sul, para competir com Wilson Freitas, de dezessete anos, orgulho do Saldanha da Gama.
As moças da sociedade, que em 1918 ajudaram Bernardino Monteiro subindo os morros e distribuindo remédios entre os atingidos pela gripe espanhola, já não levavam doces feitos em casa para as recepções no palácio. Já havia rádio, mas todo dia, às 18 horas, um funcionário da prefeitura soltava na Vila Rubim um foguete forte o suficiente para que todos na cidade o ouvissem e dessem corda a seus relógios. Antes só o relógio do Teatro Melpômene indicava as sessões. O cinema dava ao espectador a oportunidade de se emocionar com uma história romântica ou heróica e de se identificar com os protagonistas. Não se esquecia o filme depois de terminado: na rua, o espectador continuava a ser Rodolfo Valentino ou Gary Cooper, Greta Garbo ou Marlene Dietrich. Copiava-lhes as roupas e os maneirismos ou simplesmente se sentia diferente. Esquecia que o fascismo havia triunfado na Itália em 1922 e que a “praga marrom” agora infectava a Alemanha: tropas de assalto agitavam as ruas, quebravam janelas e lojas de judeus, espalhando o terror entre os adversários do nazismo.
Em Vitória, criou-se uma expressão: “Eu não vou nesse negócio porque é corrida de ganso.” Havia na cidade um parque de diversões (onde mais tarde, na década de 1930, seria erguido o Edifício Glória) com uma corrida de gansos – imagens pintadas de branco, recortadas de lata – que era “uma ladroeira incrível”. E proibia-se beijo de namorado no Parque Moscoso: por causa disso um soldado perseguiu um rapaz ladeira acima e só foi prendê-lo no palácio, onde se refugiara. Um amigo do fugitivo perguntou ao soldado: “Aonde ele vai?” O soldado respondeu: “Ele está preso.” Era Moacir Avidos, então secretário da Agricultura, Terras e Obras Públicas e diretor do Serviço de Melhoramentos de Vitória.
Ambos muito bonitos, Carlos e sua noiva Antonietta Pacheco de Queiroz freqüentavam assiduamente o Clube Vitória. Carlos, mais tímido, vez ou outra dançava valsa com Antonietta, ao som das orquestras vindas especialmente do Rio. Antonietta, tida como “pessoa muito boa” por todo mundo, nascida e criada em Vila Velha, tinha o curso completo do Sacré Coeur de Jesus, do Rio, e o de professora pelo Colégio do Carmo. Casando-se em 1926, os dois passaram a morar numa casa geminada à Rua 13 de Maio: no andar de baixo residia a mãe dela, na companhia da filha menor, Maria, então com oito anos. Ali nasceram as duas filhas do casal, Maria Henriqueta (1928) e Maria de Lurdes (1929). Antonietta morreria em 1931. A avó de Carlos, Sinhá Riqueta, fora enterrada no cemitério de Santo Antônio em 1927.
No início dos anos 1930, nos Estados Unidos, era muito conhecida a história em que uma criança se queixa do frio à mãe. “Não temos carvão”, responde a mãe. “E por que não temos carvão?”, insiste o filho. “Porque há excesso de carvão”, explica ela.
O crack da Bolsa de Valores de Nova York, em 1929, no auge da prosperidade, arrastou na queda a economia mundial. A razão principal foi a superprodução do mercado interno: os lucros fabulosos elevaram a cotação dos títulos das grandes corporações, atraindo o capital dos milionários mas também de investidores da classe média: todos compravam títulos que no dia seguinte revendiam com lucros fantásticos, empregados a seguir na compra de novos títulos. Com a paralisação de algumas fábricas e a queda do valor desses títulos, os que compravam passaram a vender. Estabeleceu-se o pânico: novas fábricas continuavam a parar, novos títulos eram lançados no mercado, sem encontrar compradores: todo mundo queria se livrar a qualquer preço dos papéis impressos, numa tentativa de reduzir o prejuízo. No início de 1930, 50% das fábricas estavam paradas ou trabalhando apenas dois ou três dias por semana; centenas de bancos faliram; em conseqüência, o número de desempregados chegou a trinta milhões: milhares de pessoas vendiam maçãs nas ruas, longas filas se formavam em busca de um prato de sopa no inverno. A Grande Depressão levou também à pobreza os fazendeiros do interior da América.
A economia brasileira durante o período 1889-1930 é essencialmente agrícola, baseada nas exportações de três produtos: borracha, cacau e café. A borracha atinge em 1912 o total de 42 mil toneladas: é a época da riqueza fácil, do esplendor e dos cenários suntuosos em Manaus. Em 1912, o cacau registra 36 mil toneladas exportadas. Ao café dá-se na época o epíteto de General Café ou Marechal Café. Em 1906, com o acordo de Taubaté, o governo brasileiro decide sustentar as cotações mundiais e conceder subvenções aos produtores brasileiros: é a política de valorização do café. O país quer tirar proveito de sua posição de quase monopólio no mercado mundial do produto (chegando até 67% do consumo mundial) para sustentar artificialmente as cotações. Uma tática simples: refrear as exportações para criar a falta do produto no mercado mundial e, segundo o princípio da oferta e da procura, os preços subirem. Os resultados, porém, são catastróficos: a produção nacional continua a subir, já que o governo se empenha em comprar, a preços da cotação mundial, as sacas que os exportadores não conseguem vender no exterior em virtude das próprias disposições governamentais. O governo forma estoques impressionantes (e os financia com empréstimos geralmente contratados no exterior, causando um sucessivo endividamento do país).
Entre novembro de 1929 e janeiro de 1930, o café perde 50% de seu valor: os produtores endividam-se para escoar suas produções. Quando as cotações mundiais caem e o governo deixa de sustentar as exportações através de subsídios, os pequenos e médios produtores abrem falência e muitos se suicidam. Em 1931, houve um excedente de aproximadamente trinta milhões de sacas de café, o dobro das exportações do ano anterior. Então o governo resolveu criar o Conselho Nacional do Café, que deveria arrecadar impostos sobre as exportações para pagar o serviço da dívida externa. Deveria, também, comprar e destruir estoques: nesse ano foram queimados 14,4 milhões de sacas (em 1932, um decreto proibiu o plantio de novas mudas de café nos três anos seguintes).
A Guerra de 1914-18, a revolução socialista russa em 1917, a difusão de novas ideologias (marxismo, leninismo, nazismo, fascismo), a crise econômica internacional de 1929 produziram modificações que contribuíram para a crise política brasileira. Entre os sucessivos acontecimentos ligados à crise estão o motim da Escola Militar, o levante do Forte de Copacabana em 1922, levantes em diversos quartéis em 1924 (São Paulo, Rio, São Borja, Uruguaiana) e a Coluna Prestes, todos articulados pelos tenentistas.
Existia anteriormente entre São Paulo e Minas Gerais um acordo tácito, apelidado de “café com leite”, segundo o qual políticos – representantes dos grandes plantadores e comerciantes – desses dois estados se sucederiam na presidência da República. Acresciam se a isso a fraude eleitoral, a ausência de ressonância nacional dos partidos (todos de âmbito estadual) e a “política dos governadores”, pela qual o governo central se absteria de qualquer intervenção nos negócios de cada estado da Federação. Assim, com autonomia para traçar sua política econômica comercial e financeira e definir sua organização política, cada estado tem sua própria constituição, sua bandeira e seu hino.
Às vésperas da abertura da campanha eleitoral de 1929, o presidente Washington Luiz, para garantir a continuidade das práticas de proteção do café, rompe o acordo “café com leite”: ao invés de apoiar Antônio Carlos Ribeiro de Andrada (era a vez de Minas), indica o paulista Júlio Prestes. Antônio Carlos era presidente de Minas, e o fato de se designar assim o chefe do executivo estadual evidencia o desejo dos estados de conservar sua independência em relação ao poder central. A atitude de Washington Luiz levou Antônio Carlos a articular-se com os presidentes do Rio Grande do Sul, Getúlio Vargas, e da Paraíba, João Pessoa, no sentido de lançar uma candidatura em oposição à de Júlio Prestes. O pacto era apoiado pelo recém-formado Partido Democrático de São Paulo, que se opunha ao Partido Republicano Paulista, força dominante no estado. Nascia a Aliança Liberal, que disputou as eleições tendo Getúlio Vargas como candidato a presidente e João Pessoa a vice.
Em 13 de fevereiro de 1930, uma caravana da Aliança Liberal (composta, entre outros, pelo senador Pires Rebelo, do Piauí, de oratória inflamada, e Evaristo de Morais, e comandada pelo major Cristóvão Barcelos), com muita propaganda jornalística, obteve autorização do secretário de Interior e Justiça, Mirabeau Pimentel, para realizar um comício nas escadarias do Colégio do Carmo e não na praça Costa Pereira, como se planejara.
O secretário impôs, porém, a condição de que não se atacasse Washington Luiz durante o comício, já que o presidente do estado, Aristeu Borges de Aguiar, apoiava o Partido Republicano do presidente da república. O deputado estadual Fernando de Abreu, que insistira pela Praça Costa Pereira junto ao chefe de polícia, Fernando Duarte Rabelo, concordou com um comício pacífico. Aristeu Aguiar, de 33 anos, perdera sua popularidade, conquistada no exercício do magistério, ao formar um secretariado constituído em boa parte por pessoas a ele ligadas por parentesco.
Carlos e Nietta assistiram ao comício da janela de uma casa em frente ao colégio: na praça, nas ruas próximas e na escadaria do Carmo três mil pessoas esperavam, curiosas, para ouvir Pires Rebelo e Evaristo de Morais, ambos famosos por sua oratória. Os primeiros oradores limitaram-se a uma exaltação cívica. O policiamento havia sido confiado ao esquadrão de cavalaria, sob o comando do tenente Messias, que recebera “ordens severas” para não tolerar o desrespeito às autoridades e que, segundo alguns relatos, se achava alcoolizado. A cavalaria cercou o povo nas ruas de acesso à praça. A curiosidade do público foi pouco a pouco cedendo lugar à intranqüilidade.
Essa intranquilidade foi desfeita quando Pires Rebelo começou seu discurso. Muito aplaudido, ele se deixou levar pelo entusiasmo e, ignorando o compromisso assumido, gritou para todo mundo ouvir: “Washington Luiz, ladrão, ladrão de votos!”
O tenente Messias, que comandava os soldados, a cavalo, no meio do povo, deu o primeiro tiro para cima. Os cavalos, esporeados pelos milicianos, pisotearam os espectadores. Começou a correria e alguém respondeu ao tiro, ferindo mortalmente um cabo nos rins. Os policiais dispararam contra a multidão em fuga, e a cavalaria percorreria as ruas da cidade durante quatro horas. Os membros da caravana da Aliança Liberal subiram a escadaria, forçando as portas do colégio; alguns se esconderam debaixo da cama das alunas internas. Na casa em frente, alguém chamou a atenção de Carlos e Nietta, que se abaixaram para não serem atingidos pelas balas. Um curioso, refugiado no oitão do colégio, abriu uma janela, levou um tiro e morreu na hora. Resultado: onze feridos, treze mortos, um deles um ajudante do secretário da Justiça, atingido por uma bala em frente ao portão de sua casa.
A polícia cercou todas as saídas em busca de suspeitos. Numa casa perto do colégio, onde muita gente procurou se abrigar, uma senhora pediu ao marido: “Veja se você tira um homem que está lá atrás da cesta de roupa suja no banheiro.” O marido foi lá e intimou: “Pode sair rapaz, você se escondendo logo aí?” O rapaz: “Olha, o senhor pode vir também porque todo mundo já veio aqui.” João Milton Varejão tentava chegar em casa quando um soldado lhe perguntou: “O senhor fuma?” Ele respondeu: “Não, mas se o senhor quiser eu posso fumar.”
Carlos e Nietta também saíram às pressas e tiveram certa dificuldade para chegar ao carro, estacionado nas proximidades, pois os soldados não deixavam ninguém passar sem ser revistado. Um baleiro surdo apareceu correndo: um soldado mandou-o parar. Como continuou correndo, assustado, levou um tiro e foi morto. Na praça, os detalhes da fuga: chapéus, guarda-chuvas, jóias, lenços e até botinas.
No dia seguinte, José Lindenberg, irmão de Carlos, e Jair Dessaune, muito amigos do presidente Aristeu Aguiar, foram ao palácio reclamar; relataram o que viram e pediram providências. Aristeu prometeu a abertura de um “inquérito rigoroso” e a “punição dos responsáveis”. Porém, no dia subseqüente, o Diário da Manhã, oficial, publicou a notícia distorcida: a caravana da Aliança Liberal foi acusada de ter feito o tiroteio. José, estudante de engenharia, pediu demissão do serviço nas obras do Porto de Vitória e foi para o Rio, onde, através dos jornais cariocas, provocou um escândalo ao relatar o caso conforme realmente acontecera. Abriu-se então inquérito: o governo foi apontado como vítima e o tiroteio e o massacre imputados à caravana.
Em março de 1930 foram divulgados os resultados das eleições presidenciais: Júlio Prestes venceu com 1.091.709 votos de um total de 1.890.524 cédulas válidas. O Congresso, arbitrariamente, não reconheceu os mandatos da maioria dos parlamentares eleitos pelos estados da Paraíba e Minas Gerais. Em julho, no Recife, por motivos pessoais, o presidente da Paraíba, João Pessoa, foi assassinado numa confeitaria por João Duarte Dantas, membro de família tradicional. Ocorreram reações emocionais em todo o país, pois o assassinato foi de imediato creditado ao poder central.
Em setembro, José Sinval Lindenberg, que então trabalhava na Baixada Fluminense, voltou a Vitória. O secretário da Justiça, Mirabeau Pimentel, mandou prendê-lo, sob a acusação de subversão. José Sinval (Nêgo, para a família), depois de concluir o ginásio em Vitória, entrara para a Escola Militar no Rio em 1922 e, nesse mesmo ano, dela foi excluído por ter participado da Revolução de 1922, primeiro movimento tenentista, cujo episódio exponencial foi o chamado 18 do Forte, em Copacabana.
Carlos foi conversar com Mirabeau, informando-lhe que o irmão viera a Vitória só para visitar a família. Mirabeau tinha as mãos cheias de balas de revólver. Jogou-as para cima e fez uma referência à delegacia auxiliar do Rio, a Quarta, famosa por suas arbitrariedades: “Seu irmão é subversivo e vai para a Quarta num navio que vai passar por aí.”
Carlos entendeu que, na verdade, a prisão era uma represália às denúncias sobre o massacre de 13 de fevereiro que José fizera aos jornais cariocas. José foi preso; porém, por telégrafo, Carlos conseguiu comunicar-se com Francisco Monteiro (filho do tio Jerônimo), que fazia parte da Polícia Marítima que interceptava os navios antes de chegarem ao porto do Rio. A polícia esperava José no cais, mas, antes disso, Francisco embarcou-o numa lancha. José desapareceu sem dar notícias.
No dia 1º de outubro apareceu no escritório da Duarte & Fundão um “camarada barbado” que se apresentou como Jurandir Magalhães, irmão de Juracy. Era médico e, “naquela conversa mole”, quis saber a situação política do estado e os planos do presidente. Por fim disse a Carlos que era amigo de José Lindenberg e “tinha vindo passar uns dias em Vitória”.
No dia 3 de outubro apareceu o próprio José, que teve de ser escondido. No mesmo dia explode a esperada revolução em Porto Alegre: tomada a capital, os revolucionários preparam-se então para marchar sobre o Rio. Alguns dias mais tarde é a vez do nordeste, onde o major Juarez Távora não tem qualquer dificuldade para tomar a Paraíba e dali toda a região até a Bahia. De Minas, depois de terem ocupado a capital, os revolucionários dirigem-se para o Rio.
Em Vitória chegariam o capitão Magalhães Barata (paraense), Wolmar Carneiro da Cunha (pernambucano) e Pio Borges (carioca) para manter contatos com os militares daqui, que também se revoltariam. Tinham feito parte do grupo de revoltosos que deram origem ao episódio dos 18 do Forte e igualmente foram expulsos do Exército. Ficariam todos escondidos na chácara que o cunhado de Carlos, Anísio Fernandes Coelho, possuía no bairro, então ermo, de São Torquato. Só que, como já havia muita gente presa e a polícia de Mirabeau Pimentel continuava muito vigilante, eles chegariam de trem até Viana: mais uma vez, Carlos foi encarregado da missão.
Pediu auxílio a um amigo, Asdrúbal Soares, que foi buscar os três revoltosos de carro, em companhia de Durval Avidos. À noite, Carlos e Anísio foram levar-lhes mantimentos e uma vela, pois os três preferiam conspirar na escuridão. O capitão Barata queria que Carlos e Anísio aliciassem os estivadores e “todos os trabalhadores” para que fossem atacar o 3º Batalhão dos Caçadores, do Exército, em Vila Velha, na noite seguinte. Anísio ponderou: “Mas, capitão, como é que os senhores vão atacar sem armas? Eles lá têm metralhadoras, Winchesters, essa coisa toda; tem um corte na entrada lá que não passa ninguém.” O capitão não hesitou: “Não, nós vamos de pau, machado, do que quiser. Vamos atacar aquilo e tomar de qualquer maneira.”
Anísio voltou a apontar os pontos inábeis da estratégia. Foi xingado, junto com Carlos, que concordava com ele, “de tudo quanto é nome que se possa imaginar”. O nome mais suave e apropriado para a ocasião era o de “impatriota”. Os dois chegaram a afirmar que o capitão ia “fazer uma burrada”. Porém, na incapacidade de demovê-lo da idéia e de limitar seu vocabulário, levaram algum tempo mas conseguiram sair, com muito cuidado, vigiando os três do lado de dentro e também o lado de fora, como exigia a ocasião.
No dia seguinte, o capitão Barata já mudara de idéia: decidira ir ao encontro da força revolucionária de Minas, que julgava estar na divisa entre os dois estados. Carneiro da Cunha e Pio Borges ficariam para manter contato com o 3º Batalhão de Caçadores, enquanto José Lindenberg, escondido na casa da Tia Dodona, agiria sozinho, já que Jurandir também ia partir.
Mas o capitão Barata deu uma incumbência ao civil que era Carlos: como se dava muito bem com um tenente intendente e um capitão do 3º Batalhão de Caçadores, cabia-lhe avisá-los de que chegara a hora de tomar aquela unidade. Carlos saiu procurando quem o pudesse acompanhar: o amigo Rômulo Castelo esquivou-se: “o pessoal estava todo em cima dos morros, revoltado, e iria atirar neles.” Eugênio Pacheco de Queiroz, seu cunhado, aceitou. Carlos pegou o “carrinho”, mas, na ponte Florentino Avidos, surgiu uma coluna à paisana, porém marchando militarmente. Apesar do susto continuaram, mas logo depois estourou um pneu: os dois pensaram que fosse um tiro. Carlos trocou o pneu “com as pernas tremendo que nem vara verde”, debaixo de um poste “bem iluminado”, enquanto Eugênio vigiava com um revólver na mão.
O tenente e o capitão conversaram muito sobre a revolução, nas proximidades da igreja do Rosário, em Vila Velha, com Carlos e Eugênio. Mostraram um receio: o comandante do Batalhão era fiel a Washington Luiz. “Meio cabreiros, meio com medo”, disseram a Carlos para guardar bem escondidos os conspiradores e “não os deixarem sair de forma alguma”, porque “senão seriam presos”.
No dia seguinte, o capitão Barata, disfarçado de roceiro, partiu de Vitória de trem para encontrar-se na divisa com o pessoal de Minas. Os agentes da polícia estavam à procura de Barata, que, num momento de distração deles, entrou no carro de segunda classe e “ficou comendo banana” (expressão da época que significava “fingir-se de bobo”). Barata saltou em Virgínia e foi encontrar-se, em Alegre, com um contato, Moacir Silva, tabelião da cidade, que lhe arranjou um carro para chegar à divisa. Mas já se sabia em Guaçuí que ele estava fugindo de carro: o prefeito e seus correligionários bloquearam a rua em que o automóvel passaria. O motorista fingiu que ia parar, mas jogou o carro em cima do prefeito e dos amigos; “cada um pulou para um lado” e Barata conseguiu escapar, apesar dos tiros: fugiram “quebrando porteiras” até a fronteira. Lá encontraram-se com a coluna do coronel Otávio Campos do Amaral.
Luís Lindenberg, outro irmão de Carlos e José, viajara para o Rio, de onde envia simpatizantes do movimento para atuarem em Vitória. Mais tarde Carlos recebeu um bilhete em que lhe pedia que entrasse em contato com o tenente João Punaro Bley, “porque esse é um dos nossos camaradas”. Guardou-o e depois jogou-o fora (quando deputado federal pela Constituinte, em 1934, descobriria que o autor do bilhete fora o coronel Barcelos, também deputado; o bilhete fora parar em suas mãos por causa do sobrenome contido nele, Lindenberg. Não se achara na cidade – que então vivia sob black-out – o verdadeiro destinatário).
Em Cachoeiro as milícias de Aristeu Aguiar organizaram os “batalhões patrióticos”, constituídos de pessoas desempregadas e famintas, em andrajos e descalças. Recebiam uma pequena diária e aguardavam a chegada das tropas revolucionárias, para ajudar a polícia.
À medida que iam avançando em território capixaba, as tropas revolucionárias adotaram soluções práticas para impressionar o público, assustado com tanta movimentação, corre-corre, e ameaça de corte definitivo de água. Os praças revolucionários, por exemplo, foram encarregados de vigiar dia e noite um canhão, muito bem coberto por uma lona e atado com cordas. Os próprios soldados que o vigiavam ignoravam que aquilo era um pedaço de pau exposto na praça para que o boato da presença das tropas revolucionárias no Espírito Santo, espalhando-se, intimidasse ainda mais os partidários de Aristeu Aguiar.
No dia 15 de outubro Carlos acompanhou Wolmar Carneiro da Cunha e Pio Borges, tendo ao lado Eugênio Queiroz, até o 3º Batalhão, em Vila Velha, para “acabar de fazer a revolução”. Os revoltosos ficaram no carro, enquanto Carlos foi conversar com o amigo capitão, que recomendou que desaparecessem imediatamente, “senão seriam presos”. Os dois conseguiram se refugiar na casa de Eugênio, que era comerciante, nas proximidades. Saíram pelos fundos e de lá voltaram a Vitória, onde ficaram na casa de Heliomar Carneiro da Cunha. Como a polícia perseguia Eugênio por ter escondido oficiais em sua casa, ele também se escondeu. Todos os procurados se refugiaram na casa de Heliomar.
Aristeu Aguiar havia distribuído sua milícia em diferentes setores do estado para combater os revolucionários: faltou-lhe, no dia 16 de outubro, apoio absoluto do comandante da Guarnição Federal. Mal teve tempo de deixar o palácio e embarcar no cargueiro italiano Atlanta com destino a Lisboa, acompanhado dos amigos Xenócrates Calmon (deputado estadual) e José Pedro Fernandes Aboudib, que ficaram na Bahia. O capitão Bley chegou a acompanhá-los ao cais, até subirem a bordo.
Na ausência do presidente, foi chamado o presidente do Congresso Legislativo, Antônio Francisco de Ataíde, seu sucessor imediato, de acordo com a Constituição. Um secretário foi nomeado imediatamente para redigir a ata da posse (“considerando que o estado do Espírito Santo está em guerra civil desencadeada pelo estado de Minas, tendo já havido invasão de forças militares do estado de Minas Gerais no território do Espírito Santo; considerando que é indispensável pôr termo à guerra civil referida...”, dizia o texto).
Nesse instante três aviões – ninguém sabe de onde surgiram – sobrevoaram o palácio. O secretário, de tão nervoso, não pôde continuar escrevendo. Ataíde saiu do palácio às pressas para “acalmar o povo”, assustado com os voos rasantes. Quando voltou ao palácio, já estava sendo empossado o coronel José Armando Ribeiro de Paula, comandante do 3º Batalhão de Caçadores, nomeado interventor federal por decreto do presidente da República.
Na noite do dia 18, as tropas revolucionárias entraram em Vitória e o coronel Ribeiro de Paula resolveu abandonar o governo, quando viu que todo o 3º Batalhão de Caçadores aderira aos revoltosos. No dia 19, o coronel Otávio Campos do Amaral empossou a Junta Governativa, constituída por João Manoel de Carvalho, capitão João Punaro Bley e Afonso Correia Lírio. Talvez por precaução tardia, no dia 22 de outubro o Congresso Estadual reuniu-se e destituiu Aristeu Aguiar do cargo, “por ter abandonado a presidência”. Treze votaram a favor, um contra, nove não estavam no plenário.
Voltando com as tropas mineiras, o capitão Barata, ao chegar a Guaçuí, nomeou um novo prefeito. Em Cachoeiro fez um discurso, no qual prometia “abrir um inquérito para apurar a corrupção”. O deputado Fernando de Abreu protestou: “Aqui em Cachoeiro não vai haver inquérito nenhum, porque aqui não tem gente sem-vergonha, todo mundo é sério.” Barata nomeou imediatamente Fernando de Abreu prefeito da cidade, em substituição a Francisco Ataíde. Ficara surpreso com a franqueza dele.
Mas a cidade de Vitória se espantou um pouco com “esses roceiros de Minas que eles andaram apanhando pelo caminho”. Logo se dizia que os mineiros punham a mão no mar “para ver se era mesmo salgado”.
A coluna militar do sul do país, comandada pelo coronel Pedro Aurélio de Góis Monteiro, chega a São Paulo. A imprensa prevê “a maior batalha da história da América Latina”, em Itararé, na divisa entre os estados de Paraná e São Paulo. Mas a batalha não acontece. Os militares estabelecidos no Rio, porque Washington Luiz não admitia nem tentar um terreno de entendimento com os revolucionários, depõem o presidente e instituem uma Junta de Pacificação. Em 24 de outubro, a junta transmite o poder a Getúlio Vargas e o Rio é declarada “cidade aberta”: seguem-se manifestações ruidosas, incêndios, alegrias. Era o Brasil Novo. Como acontecera em alguns pontos do país, os jornais da antiga situação, como O País e Gazeta de Notícias, são assaltados, depredados e incendiados. (Em Vitória, no dia 14 de fevereiro, ocorrera o empastelamento do jornal A Gazeta, que apoiava a Aliança Liberal.) “Assumo provisoriamente o governo da República como delegado da Revolução, em nome do Exército, da Marinha e do Povo”, dizia Vargas.
Achando que “não tinha capacidade”, Carlos recusou o convite do capitão Bley para assumir a prefeitura de Vitória. No entanto, Bley nomeou José Lindenberg como secretário da Agricultura e, como prefeito, Asdrúbal Soares. Bley era inexperiente politicamente e, não sendo capixaba, desconhecia especificamente a política local: acabou manobrado, “ora para um lado, ora para o outro”. Quando percebeu, já havia criado incompatibilidade com grande parte da população. Além disso, a situação econômica do estado era “dificílima”. Em 27 de janeiro do ano seguinte, ele anunciaria a descoberta de um movimento liderado pelo chefe de polícia local, Ademar Távora, para depô-lo. Afirma-se que seguia o método de Mussolini: atacado pelo jornalista Epitácio Costa, chamou-o ao palácio e obrigou-o a beber uma garrafa de água mineral com óleo de rícino. Com receio de que o jornalista morresse, consultou um médico, que examinou a vítima e diagnosticou: “Ele vai se esvair, mas não dá para morrer não.” No dia seguinte, Costa sumiu da cidade.
Quando aceitou o cargo de presidente da Junta Comercial, Carlos ainda estava muito abalado com a morte de sua mulher Nietta, ocorrida em março de 1931. Ficaria no cargo até 1934, quando se candidatou a uma vaga de deputado federal na Assembléia Constituinte.
Após sua instalação, o governo de Vargas empenhou-se em articular a fundação de partidos políticos de âmbito estadual, envolvendo representantes das elites políticas, com a finalidade de dar sustentação ao novo governo federal. O Partido da Lavoura reunia parte dos aliados de Jerônimo Monteiro e do Partido Republicano local e alguns integrantes da administração de Bley que se haviam incompatibilizado com a sua orientação política.
A maior parte das antigas forças políticas de Jerônimo Monteiro (junto com parte das forças políticas agrofundiárias e mercantis-exportadoras da região central) fundou o Partido Social Democrático do Espírito Santo, o PSD – o primeiro no país com esse nome.
A fundação ocorreu em 1932, antes do rompimento com Jerônimo. Bley convidou Carlos a participar, assim como Francisco Otávio, Asdrúbal Soares, Oswald Guimarães, Carlito Medeiros – uma comissão composta de trinta pessoas. Carlos recebeu também a incumbência de ir ao Rio conversar com Jerônimo, que seria um dos chefes do partido, provavelmente o presidente do PSD.
Jerônimo estava sem mandato, porque “Getúlio havia fechado tudo, Câmara, Senado, e ele foi também no embrulho porque na época da Revolução era senador”. Carlos fez o convite mas ouviu a seguinte resposta:
— Não vou entrar nesse partido porque não acredito em Getúlio. Conheço muito esses gaúchos. Getúlio está fazendo isso de pantomima: ele só sai do governo ou morto ou com a barba branca até aqui (apontou o peito) e pela mão dos outros. Isso é uma patacoada e eu não entro nesse negócio. Não acredito e não quero ser coisa nenhuma. Carlos ponderou que, participando da fundação do partido, assumira compromissos:
— Por isso espero que o senhor não ache mais tarde que o abandonei, que fui egoísta.
Afinal, em respeito ao tio, a quem admirava, disse: — Se à última hora o senhor aparecer como candidato, vai ser muito desagradável. Se o senhor pretender candidatar-se a alguma coisa, eu não continuo no partido, mas se o senhor não pretender, eu fico.
— Não. Você é moço, siga o seu caminho, pois eu não serei candidato a coisa alguma.
Não acredito nessa gauchada.
Carlos informou, então: — Vou até Muqui, Mimoso, Alegre e conversarei com aqueles seus amigos para ver se eles querem fundar o partido.
— Pode procurar todos eles. Se eles quiserem participar, eu fico muito satisfeito. Só que eu não vou, não aceito coisa nenhuma.
Apesar da permissão dada por Jerônimo, estava implícito o rompimento. Vindo do Rio de trem, Carlos saltou em Muqui e falou com os Fraga. Em Cachoeiro procurou os amigos antigos, como Francisco Ataíde e Anacleto Ramos, além do então prefeito Fernando de Abreu. Em Alegre, com o coronel Tatão Gama. Em Vitória, convidou o coronel Schwab. Alguns se recusaram, mas a maioria entrou para o partido. Às vésperas da eleição para a Assembléia Constituinte, quando Carlos foi lançado como candidato a deputado federal, o Partido da Lavoura lançou o nome de Jerônimo. Poucos largaram Carlos, porque já haviam assumido compromisso com o PSD. Mas o tio “tinha um prestígio danado” e também foi eleito.
— Era uma situação muito difícil para mim porque eu também era candidato a deputado federal, — relembrou Carlos. — Interessante é que, quando Jerônimo vinha a Vitória, ele se hospedava na casa de Dodona, onde eu morava, de modo que era uma situação muito constrangedora. Eu resolvi da seguinte maneira: quando ele estava para chegar, eu ia para o interior. Quando ele ia, eu voltava para casa. Nunca nos encontramos nessa fase da campanha. Ele foi eleito e eu também: deu para os dois (Carlos foi mais votado: em 15 de maio de 1933, registravam-se 6.609 votos para ele, contra 3.836 para Jerônimo). Mas tio Jerônimo morreu na véspera da posse. Essa foi uma fase muito difícil para mim: eu gostava muito dele e ele de mim, tinha muita confiança em mim. Na época da campanha, minha tia, que era minha madrinha, insistia para que eu deixasse a candidatura e voltasse para Jerônimo. Eu dizia que era impossível porque havia assumido compromisso com as pessoas: não vou me desmoralizar. Dodona ficou um pouco zangada comigo até a eleição. A família dele ficou um pouco estremecida comigo, mas mais tarde voltamos às boas. Esquecemos o passado e começamos vida nova.
Em fevereiro de 1932 Getúlio Vargas publicou o Novo Código Eleitoral (voto aos dezoito anos, extensivo às mulheres, criação da justiça eleitoral), seguido, em março, de outro decreto, marcando o dia 3 de maio de 1933 como data das eleições para a Assembléia Constituinte: depois de 43 anos, a Constituição brasileira seria substituída. Tudo mudara: agora havia o impulso da industrialização, o crescimento do proletariado, a necessidade de desenvolvimento, entravado pelas estruturas arcaicas do país, e uma revolução instalada, procurando rumos e precisando garantir sua unidade, apesar de atingida por várias defecções e reações (entre elas, a Revolução Paulista de 1932, apoiada pelo Partido Democrático de São Paulo). Os regulamentos eleitorais permitiam que os sindicatos profissionais apresentassem um total de quarenta representantes classistas, junto com deputados eleitos pelo voto direto, em cada estado. Os representantes do sindicato votaram com os tenentes, conseguindo incluir e passar um projeto para transformar a Assembléia Constituinte na primeira Câmara de Deputados com poderes para eleger o presidente da República.
As eleições haviam sido relativamente honestas em todo o país. Mas, no Espírito Santo, Fernando Rabelo, então secretário do Interior, “muito sabido, muito esperto”, mandou fazer envelopes transparentes para as cédulas de votação. Após a eleição, a oposição denunciou que os envelopes transparentes permitiam controlar-se o voto do eleitor, conseguindo a anulação do pleito. Foi feita nova eleição, com envelopes diferentes, e todos os candidatos anteriores voltaram a ser eleitos.
Na Serra, Rômulo Castelo não admitia perder de forma alguma. Líder do América Futebol Clube, quando o time estava perdendo ele entrava em campo e mandava o juiz marcar pênalti a favor do América. Na renovada (isto é, segunda eleição), durante uma feijoada dos oposicionistas em Itapocu, pouco antes da eleição, ele descobriu que o cozinheiro gostava de “um joguinho de campista”. Procurou-o e ofereceu-lhe 500 mil réis só para colocar um vidrinho de tempero na feijoada. Era óleo de Cróton, purgante de cavalo. “Foi uma tragédia naquele descampado, todo mundo se sentiu mal”. Rômulo ganhou também com a distância: naquela época, levava-se duas horas da Serra a Vitória de automóvel.
Em 15 de novembro de 1933, a Assembléia Constituinte começou a deliberar e, em meados de julho do ano seguinte, apresentou as bases legais para uma nova ordem constitucional do Brasil.
Os sete artigos da Constituição de 1891 sobre o poder judiciário foram substituídos pelos 24 da nova Carta, quando surgem as seções próprias para regular a Justiça Eleitoral e a Justiça Militar. Lindenberg fez inúmeros discursos defendendo, nesse último aspecto, a dispensa – exceto em caso de conflitos – do homem do campo do Serviço Militar, para evitar o êxodo rural, que era então uma realidade. Preocupava-se também com a usucapião: alterou-se em parte o artigo 125, quando o trecho da terra, até dez hectares, se ocupado e produtivo, durante dez anos, sem oposição, passaria para o domínio do ocupante, se já não fosse proprietário, e mediante título declaratório. As terras foram submetidas a nova apreciação quanto aos direitos, enquanto a assistência social foi reconhecida como atribuição do estado, além da particular. Empenhou-se para resolver a questão de limites estaduais entre Espírito Santo e Minas Gerais. Foi a matéria que mais o empolgou, mas foi vencido: “os mineiros eram muito fortes para deixar o Espírito Santo consertar a questão”. No artigo 177, dava-se maior importância às secas do nordeste (no qual se integrava o Espírito Santo, à época), reservando-se 4% da receita tributária para “as obras de defesa contra os efeitos da calamidade”.
Após a Constituição, passou a funcionar a primeira legislatura (1935) que deveria, através de leis complementares, dar expansão aos preceitos da nova Carta Magna. Porém, também em 1935, a Constituição sofreria alterações: surgiria a Lei de Segurança Nacional, dando ao governo federal poderes especiais para reprimir atividades políticas “subversivas”. A política brasileira, como na Europa, marchava para a radicalização.
Um ano antes, Carlos se casara com sua ex-cunhada, Maria Antonietta Pacheco de Queiroz, então com dezessete anos, “primeiro porque eu realmente gostava dela e segundo para ter uma sogra só”. Aos que lhe lembravam a beleza de Carlos – motivo de assédio das mulheres – Maria respondia, provocando risos: “Eu tenho confiança em mim”.
Na época, por causa do casamento, Maria frustrou uma incipiente carreira de escritora: aluna do Colégio do Carmo e do professor Ciro Vieira da Cunha – que também era poeta – ela se entusiasmou, “porque sempre gostara de escrever”, quando ele pediu à classe para apresentar no dia seguinte uma redação. Quando ele começou a dar notas aos trabalhos, parou no trabalho dela e perguntou: “E essa aqui, quem é? Maria... levante-se.” “Sou eu”, disse ela, levantando-se, apavorada. “Minha filha, vou lhe dizer uma coisa: você vai ser escritora.” Logo depois, a surpresa: o professor publicou em jornal a sua redação. O recorte ela guarda até hoje.
Maria conheceu Carlos quando tinha sete anos, namorando sua irmã. Ela se impressionou não com a beleza dele, mas sim “com o lindo anel que usava, com cara de sol”. A família era de Vila Velha, mas, para estudar, Maria morava com a mãe numa casa geminada: no andar de cima moravam a irmã e Carlos. Adolescente, começou a namorar Wilson Gonçalves e, junto com ele e algumas amigas, freqüentava o Clube Saldanha da Gama para torcer pelo time de basquete. Os domingos eram reservados às matinês nos cinemas Glória e Carlos Gomes: era aquela “bobagem de criança”, quando acendiam as luzes, um olhava para o outro, chupavam balas e, à noite, na Praça da Independência, faziam o footing. “Era aquela troca de olhares, mas já bastava para o resto da semana.” Além disso, quase sempre, havia as “domingueiras” no Clube Vitória: todo o grupo de amigas dançava muito.
Tudo sem compromisso: o namoro da época permitia que rapaz e moça sentassem um ao lado do outro no cinema; porém, se dessem as mãos, já estavam noivos, publicamente.
A mãe, Eugênia Pacheco de Queiroz, “não fazia gosto” no namoro de Maria com Wilson Gonçalves. “Apertava para lá, apertava para cá” e Carlos insistia em ficar noivo. Mas Maria dizia às amigas: “Ah! eu não quero me casar. Quero aproveitar a vida, ainda é muito cedo para eu me casar.” A mãe insistia. Mais tarde, Maria foi morar com uma tia no Rio, quando Carlos era deputado. Dona Maria relembra: “Tenho a impressão que ele achava que água mole em pedra dura tanto bate até que fura. Então, ele estava sempre lá e acabou me vencendo. Nunca mais vi o anel. Ele venceu pela persistência, acabou virando filme. Eu é que acabei também me apaixonando por ele.”
Ela era fã de cinema. Lembra-se especialmente de um filme, Aconteceu aquela noite (It Happened One Night), Oscar de melhor filme em 1934, com Claudette Colbert e Clark Gable, que era o ídolo das mulheres em todo o mundo e causou sensação porque apareceu na tela de camiseta. Houve protestos, mas os fabricantes de camisetas agradeceram a Hollywood: a venda cresceu. Numa das cenas dessa comédia, Claudette Colbert (uma milionária fugindo da família pelas estradas dos Estados Unidos em companhia de Gable, que encontrara pelo caminho) vai dormir num motel. Ela instituiu o que se chamou na época de “muralha de Jericó”: uma cortina de cobertas e lençóis separando os dois, hospedados no mesmo quarto. As muralhas caíam. Essa cena marcou muito os noivos Maria e Carlos, que então tinham direito a dar-se as mãos.
Casaram-se no Rio, em Laranjeiras, onde ele tinha alugado um apartamento. Maria logo engravidou e sofreu muito. Teve uma gravidez de alto risco e ficou aos cuidados da tia Sílvia Mello Leitão, enquanto Carlos veio para o Espírito Santo, a convite do interventor Bley, para ser secretário de Agricultura. Carlos Fernando Monteiro Lindenberg Filho nasceu em setembro de 1935, mas a mãe só o trouxe para o Espírito Santo um mês após o nascimento: passaram a residir na casa da sogra, mas um ano depois, no dia do aniversário do filho, mudaram-se para a casa que mandaram construir, desde março anterior, na que seria depois a Rua Colatina, na Praia do Canto. O terreno Carlos comprara de Áureo Ferraz, por 36 contos, quando ainda trabalhava na Duarte & Fundão: oito mil metros quadrados, incluindo uma casinha no centro do terreno. Deu seis contos de réis de entrada e o restante pagou em prestações mensais de quinhentos mil réis (o capital da firma era de sessenta contos para cada um). A casa, inclusive o muro, custou cem contos de réis.
Na época, a Praia do Canto era considerada um lugar de lazer de fim de semana, de passatempo: os amigos freqüentavam-lhe a casa aos domingos para tomar banho de mar e acabavam ficando para o almoço. A chácara foi a primeira habitação moderna do local: antes a Praia do Canto era uma aldeia de pescadores. Para Carlos, era o local, em Vitória, mais parecido com o cenário da fazenda de sua infância. Só na década de 1940 é que chegaria o progresso: o bonde, os postes de iluminação, a urbanização e os amigos. O mais fiel era João Calazans, um comunista então muito ativo, seu companheiro de pescaria. Em noite de lua cheia, os dois saíam com a tarrafa: pescavam em frente à praia, “enchiam a cara de cachaça” até de madrugada e depois voltavam para a casa de Calazans, onde sua mulher, Tereza, fritava os peixes. Gritavam pela rua, implicando com os outros amigos. Sem problemas com a polícia: era só o eco, não havia movimento algum na região.
Na cidade era diferente: os amigos faziam serenatas – às vezes, acompanhados pelo cantor Vicente Celestino e mais tarde pelo compositor Noel Rosa, ambos em visita a Vitória – mas a polícia proibiu depois que fizeram uma serenata em frente ao Colégio do Carmo e as meninas internas ficaram assistindo da varanda, de camisola.
Então com 35 anos, “o homem mais bonito de Vitória” – consenso feminino e masculino – já era secretário da Fazenda.
Fonte: Carlos Lindenberg - Um Estadista e seu tempo, 2010
Autor: Amylton de Almeida
Organização, apresentação e notas: Estilaque Ferreira dos Santos e Fernando Antônio de Moraes Achiamé
Compilação: Walter de Aguiar Filho, junho/2015
Pero de Magalhães de Gândavo, autor da 1ª História do Brasil, em português, impressa em Lisboa, no ano de 1576
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