Dois planos urbanísticos de Vitória - Por Geet Banck (ParteIII)
3. Consumo de espaço: Um Aterro Invade o Oceano
Até os anos 40, Vitória foi uma cidade provinciana. A partir daí, as exportações de minério de ferro deram impulso ao seu porto e algumas indústrias começaram a brotar. Nos anos 60, os projetos industriais promovidos pelos governos federal e estadual, conhecidos como "grandes projetos", transformaram radicalmente a sociedade local. Tendo a produção agrícola, ao mesmo tempo, entrado em crise, milhares de pessoas empobrecidas migraram do campo para a cidade, o que fez dobrar, a cada dez anos, a população de Vitória. A expansão urbana processou-se, no mínimo, de forma um tanto caótica. Proliferaram as favelas, pobres e carentes pareciam estar em todo lugar. E se o "progresso" econômico trouxe a Vitória um avanço arquitetônico, os espigões eram de um modernismo tão elementar, se não grosseiro, que a paisagem urbana se desfigurou a ponto de se tornar irreconhecível. Pairava um agudo e generalizado sentimento de que, nesse caos de miséria e descontrole, a identificação com a cidade tornava-se praticamente impossível. As pessoas se preocupavam com o que pensar sobre tudo isso. Que motivos de orgulho podiam haver nesse fragmento tropical de Cosmópolis a não ser as praias? Como no tempo de Muniz, foi novamente à beira do mar que um enorme projeto veio a tomar forma.
A partir dos anos 70, sucessivas administrações tentaram ordenar a descontrolada expansão, horizontal e vertical, da paisagem urbana. O aspecto estético, tanto no planejamento arquitetônico como no urbano, voltou a receber uma atenção sistemática. Devido à topografia montanhosa da ilha, aterros na baía e sobretudo no mar eram virtualmente a única opção. Esses aterros ofereceram a oportunidade, contudo, de aplicar novos conceitos urbanos junto à área construída existente. Como o arrabalde projetado por Saturnino já se havia transformado numa área plenamente desenvolvida de Vitória, a cidade teve de se expandir rumo ao continente. Para as bandas do norte, urbanizou-se uma vasta área de restinga permeada de manguezais. A praia de Camburi, originalmente estreita, foi alargada mediante aterro, como a atual Copacabana. Paralelamente à sinuosa Camburi, bela, mas poluída, e a uma avenida de seis pistas, construíram-se amplos bairros residenciais de classe média, Jardim da Penha e Mata da Praia.
O que se pretende focalizar aqui, porém, é uma parte de outro aterro sobre o mar, com um total de uns 115 ha. Implementou-se aí um importante sistema de avenidas, possibilitando melhor acesso à praia de Camburi, ao norte, e a uma ponte de três quilômetros e meio de extensão e sessenta metros de altura sobre a baía, ligando Vitória ao importante município residencial de Vila Velha. O aterro incorporou também algumas ilhas, hoje transformadas em bairros residenciais da elite. A finalidade principal do aterro era criar espaço para as novas avenidas e acessos da ponte supramencionados, além de abrigar instituições públicas e parques. Com o loteamento para a construção de casas numa das ilhas, foi custeada parte do aterro e da infraestrutura. Hoje, a área abriga os poderes Judiciário e Legislativo de nível estadual, que não tinham mais como se expandir no centro histórico da cidade. Uma vez que o Palácio do Governo, pelo menos por ora, continua no Centro, o novo espaço urbano ainda não se configura como núcleo simbólico do poder. Nesse meio tempo, muitos edifícios de escritórios e de apartamentos passaram a ocupar os terrenos baldios, reduzindo rapidamente o seu número. Se não pode ainda ser identificada como centro político, essa área aterrada apresenta dois espaços que se prestam à construção de um imaginário urbano: as praias e o shopping center. As obras de aterro também permitiram criar duas amplas praias e parques adjuntos, área sobre a qual esta análise se detém.
O plano da sua urbanização foi elaborado durante a gestão do primeiro prefeito de Vitória eleito pelo voto direto após o regime militar, que assumiu a prefeitura em 1986. Como a cidade estava praticamente sem parques, desde o começo da obra do aterro ele tivera a ideia de fazer um parque e, para o arquiteto responsável, uma exigência técnica do plano teria de ser a plena transparência na direção do mar (assim o plano era também uma crítica aos paredões construídos ou em construção em outras praias vizinhas e no centro da cidade). Outro aspecto considerado era "o direito à paisagem" da população. Segundo o arquiteto, o planejamento havia de ser "um exercício de democracia", simbolizando o rompimento com a ditadura militar. O plano precisava, dessa forma, conter elementos que simbolizassem a nova era democrática. Para esse fim, foram entrevistados usuários potenciais: esportistas, donos de trailers e outros comerciantes, como os de uma feira dominical no centro da cidade. O resultado foi a criação de um espaço urbano aberto para todas as classes, dotado de uma série de parques com área para a prática de esportes, para playgrounds, bares e lanchonetes, um coreto no estilo tradicional e uma praça para uma feira de artesanato, com uma "concha" acústica improvisada. Uma das medidas para assegurar o acesso de todos foi implantar um campo de futebol, onde operários da construção civil em atividade nas cercanias costumavam jogar suas "peladas", espaço ainda hoje usado por moradores de bairros populares(9). Todo o complexo constitui atualmente um belo local para a realização de atividades de lazer. Há, por exemplo, nos fins de semana, uma feira noturna de artesanato muito concorrida, bem como apresentações musicais. E a cada manhã, centenas e centenas de pedestres costumam fazer caminhadas, aeróbica ou cooper.
Corroboram esse aspecto de lazer, senão de hedonismo, os nomes de duas praças ali existentes: Praça dos Namorados e Praça dos Desejos. A primeira foi inaugurada num Dia dos Namorados. Segundo alguns entrevistados, tais nomes derivam do hábito de jovens de classe média nos anos 60 e 70, era do flower power, de namorar nos aterros, longe do controle dos pais e das famílias. A praia principal recebeu o nome de Curva da Jurema, "inspirado numa linda morena chamada Jurema e que teria resultado, inclusive, num trocadilho: 'Olha a loura, olha a morena, olha a Curva da Jurema”’. (A Gazeta, 9-8-1992).
Outro elemento presente na construção simbólica do novo espaço urbano é a iniciativa de inserir ali a história da imigração estrangeira no Espírito Santo. A comunidade grega já doara um monumento em homenagem à sua presença no Brasil, que foi instalado numa área chamada Praça da Grécia. Em outro local, um prefeito de orientação ecológica fizera erigir um Monumento de Sucata, obra de arte feita com milhares de latas de cerveja e refrigerante e outros itens descartáveis, hoje demolida para dar lugar a um enorme monumento aos imigrantes italianos, cujos descendentes compõem metade da população do Estado. Nas proximidades, num canto meio obscuro, há um monumento bem menor em homenagem aos imigrantes portugueses. Mas, nesse aspecto, a intenção de construir um lugar da memória não pode ser considerada muito efetiva. De modo geral, contudo, pode-se dizer que o uso que se pretendia fazer desse setor do aterro foi realmente efetivado com a Praça dos Namorados, com a sua feira dos fins de semana como centro simbólico:
“A Praça dos Namorados acomoda meninos de rua, apaixonados, flanelinha, pais e filhos, mães, feirantes, ambulantes, marceneiro de caminhão e casinha de boneca, seresteiro, poetas, ciclistas, andarilhos, marinheiros da primeira viagem, flautista, guitarrista, cantor, skatista, pipoqueiro... Entra quem quer, dança quem sabe, namora quem deseja. Quer nome mais bonito para uma praça de tantas delícias? (A Gazeta, 7-9-1998)”
Nos fins de semana, milhares de pessoas afluem à feira para comprar artesanato, comer doces e salgados caseiros e beber aquela cachaça boa da roça. Grupos folclóricos como os dos pomeranos ou italianos, uma banda de congo e bandas de música pop dão shows. A Praça dos Desejos, porém, deixa muito a desejar. Havia depredações e o coreto ficou abandonado, salvo pelos meninos e meninas de rua. Isso, em si, prova que as antigas bandas de música saíram de moda. Em 2002, decidiu-se demolir o coreto e retirar o asfalto ao redor, para se transformar o local "em 'área contemplativa' com muito verde, ressonância, creio eu, de uma nítida tendência mais geral: a preocupação com o meio ambiente" (A Gazeta, 30-10-2002).
Essa tendência também se verifica nas caminhadas matinais. A maioria das pessoas é da classe média, mas nos últimos anos a terceira idade "menos favorecida" vem também marcando presença. O que mudou nesse aspecto são os textos das camisas e bonés. Predominavam há uns dez anos, textos e grifes do "primeiro mundo". Claro que o Hard Rock Café de Orlando continua, mas agora a maioria é esmagadoramente brasileira, e mais significativo é o forte crescimento de textos ecológicos como os do Projeto Tamar e SOS Mata Atlântica. Por outro lado, o mundo globalizado se faz presente no novo nome de um dos bares entre as duas praças — Buddy's Country Bar —, baseado no perfil do cliente: "Nós fizemos uma pesquisa antes de abrir o bar e detectamos que o country é um estilo de vida e não uma moda" (A Gazeta, 30-10-1999).
Embora tivesse como objetivo criar uma bela paisagem urbana, contrabalançando assim a caótica apropriação dos demais espaços disponíveis em outras partes da cidade, o plano — de modo simbólico — sofreu a influência de alguns princípios gerais ligados à praia: saúde, cultura física, lazer. Sintoniza-se, desse modo, com certas aspirações dos moradores. Pessoas de todas as classes frequentam as praias e as áreas de lazer. Se a praia, à época de Muniz, era antes de tudo um local salubre, supostamente menos propenso à propagação de moléstias graves, hoje é um local para corpos saudáveis, para exercícios físicos destinados a manter a forma e para atividades estéticas e hedonistas.
Notas
(9) Informação fornecida pelo arquiteto responsável, Gregório Repsold.
Fonte: Dilemas e Símbolos Estudos sobre a Cultura Política do Espírito Santo, Segunda Edição aplicada – 2011
Autor: Geert. A. Banck
Compilação: Walter de Aguiar Filho, março/2019
Pero de Magalhães de Gândavo, autor da 1ª História do Brasil, em português, impressa em Lisboa, no ano de 1576
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