Em retribuição a Duarte de Lemos, uma ilha
Rocha Pombo acredita que Duarte de Lemos tenha chegado ao Espírito Santo em 1536, ou, quando muito, em princípios do ano seguinte.(25) A quinze de julho de 1537 Coutinho assinava o alvará de doação da ilha de Santo Antônio(26) em favor do novo companheiro. Os termos do documento traduzem todo o reconhecimento do donatário ao seu eficiente colaborador: “Mando que este valha até que meus herdeiros ou herdeiro lhe faça dela doação da dita Ilha que ora lhe tenho dado por muito que lhe devo e por me vir ajudar a suster a terra que sem sua ajuda o nam fizera, e mando ao meu herdeiro sob pena de maldição que o cumpra muito mais se poder”.(27)
Frei Vicente do Salvador, referindo-se às pretensões que alimentava Coutinho de expandir a capitania, escreveu: “e como o espírito do Vasco Fernandes era grande”.(28) Com igual propriedade de expressão poderia falar do seu grande, generoso coração. Tão grande e generoso que olvidou a lei em sua liberalidade. Ao concretizar o reconhecimento pelo auxílio trazido por Duarte de Lemos, foi além dos direitos que lhe outorgara o foral de sete de outubro de 1534, como adiante se verá.
Serviço da maior relevância prestado por Duarte de Lemos ao donatário foi combater ao lado deste o íncola inconquistável. Tão relevante que Coutinho, na escritura de doação da ilha de Santo Antônio, confessará sem rodeios: “ajudou sempre a suster e fazer guerra contra os infiéis(29) e gentes da terra”. Dirá mais, em continuação, repetindo, em parte, as palavras do alvará de quinze de julho de 1537: “o que sem sua ajuda não podera fazer, e por desejar que elle em algua maneira seja agalardoado de seu serviço, perigos e riscos de sua pessoa em que se muitas vezes com elle Vasco Fernandes Coutinho viu e ao gasto que tem feito de sua fazenda”.(30)
Senhor da ilha que, mais tarde, se tornaria sede da capitania, Duarte de Lemos deu “logo às pessoas e moradores da terra grandes partes de sesmarias das terras da dita ilha pera aproveitarem e a povoarem”(31) e, segundo Basílio Daemon, comprometeu-se a fortificá-la contra as invasões.(32)
Os homens através dos documentos
Analisando os termos da carta régia de oito de janeiro de 1549, que contém o alvará de quinze de julho de 1537, e a escritura de doação, datada de vinte de agosto de 1540, chega-se à conclusão de que tanto Coutinho como Duarte de Lemos não se distinguiam por uma rígida linha de atitudes. Em 1537, no calor do entusiasmo pela colaboração que recebia do segundo, o primeiro, sangrando de gratidão, lhe fez mercê da maior ilha do senhorio. Maior e melhor, porque mais segura contra os assaltos do principal inimigo – o índio – portanto, uma das únicas porções onde a vida era possível e o trabalho exequível. Mais que a terra, concedeu favores que exorbitavam de sua competência.
Passados os dias, parece que se desavieram. Rocha Pombo – que levanta a hipótese – explica: “É que, desafogados do gentio (o qual ou retirava para o sertão ou submetia-se), quando foram apurar os proveitos é que sentiram motivos de desconfiança ou de queixa”.(33)
Passado o perigo, esquecido o amigo.
O donatário em Lisboa
Em 1540, aos vinte e dois dias do mês de agosto, achando-se Vasco Fernandes Coutinho e Duarte de Lemos em Lisboa, aquele hospedado na rua do Barão de Alvito(34) – concordam em passar uma escritura de doação da ilha de Santo Antônio perante o notário geral da Corte. Rocha Pombo vê no ato uma prova de “que os dois não estavam de plena cordialidade e que tinha havido já entre eles alguma coisa que dava lugar àquele recurso”.(35)
Se foi Duarte de Lemos quem provocou o ato, o que, aliás, está declarado na escritura,(36) saiu-lhe às avessas a esperteza, pois, advertido ou agora ciente da exorbitância que praticara, Coutinho retroage de sua antiga liberalidade e coloca-se dentro dos limites das prerrogativas que lhe conferia o título real de doação. Comparem-se os documentos. O primeiro, isto é, o alvará, está redigido em termos gerais: o segundo já é mais preciso e está cheio de restrições – nega a Lemos o direito de “fazer vila” na ilha, que “está limitada por termo da povoação do Espírito Santo”; “a redízima que no alvará lhe tem concedida estava ao dito tempo entre elles assentado que não fosse senão a redízima da sua propria fazenda”.
De outra parte, fica registrada a concessão “entre eles” também firmada, que permitirá a Duarte de Lemos construir um engenho de açúcar – “no rio das Roças Velhas(37) defronte da dita ilha, e nam pague mais foro delle nem outro tributo, nem pensão que um bõo pam de assucar cada anno que pese quatro arrateis”.
Duarte de Lemos volta ao Brasil
Nove anos depois, a oito de janeiro de 1549, atendendo a pedido que Duarte de Lemos lhe fizera, o monarca assinou a carta de confirmação da escritura. Tendo que regressar ao Brasil,(38) o cauteloso proprietário da ilha de Santo Antônio fora buscar um diploma régio para, em caso de necessidade, fazer valer seus direitos perante o senhor da capitania.
“Tendo de regressar ao Brasil”, escrevemos, porque Tomé de Sousa trará Duarte de Lemos em sua comitiva(39) e o fará seu delegado na capitania de Porto Seguro, em 1550. Nesse novo posto permanecerá durante quatro anos, até a renúncia do donatário, Pero do Campo Tourinho, em favor de seu filho, Fernão do Campo Tourinho.
No mesmo ano em que assumiu o governo de Porto Seguro,(40) Duarte de Lemos teve oportunidade de intrigar Vasco Fernandes com o soberano português. O instrumento foi a carta de catorze de julho que, a seu tempo, comentaremos.
NOTAS
(25) - HB, III, 227, nota.
(26) - Atual ilha de Vitória.
– DAEMON explica a origem do nome Santo Antônio pelo fato de ter sido a ilha descoberta a treze de junho de 1535 por alguns dos povoadores que, “embarcados em lanchas e lanchões”, percorriam os arredores da vila do Espírito Santo (Prov. ES, 56).
(27) - Do alvará de doação, in HCP, III, 265.
(28) - Hist. Brasil, 95.
(29) - Esta alusão a “infiéis” parece indicar que a capitania foi assaltada por navios estrangeiros logo nos primeiros anos da instalação dos pioneiros.
(30) - Da escritura de doação, transcrita na carta régia de oito de janeiro de 1549, in HCP, III, 266.
(31) - Idem, ibidem.
(32) - Prov. ES, 58.
(33) - HB, III, 228.
(34) - MALHEIRO, Regimen Feudal, 258.
(35) - HB, III, 227, nota 1.
(36) - “... e porque elle Duarte de Lemos lhe pede que lhe faça sua escritura e carta de doação conforme ao dito alvará” (Escritura de confirmação de vinte e dois de agosto de 1540, in HCP, III, 266).
(37) - Asseveram CÉSAR MARQUES (Dicion ES, 181) e FRANCISCO EUJÊNIO DE ASSIS (Dicion do ES, 233) que o rio das Roças Velhas é o atual Marinho.
(38) - A ausência de qualquer menção ao nome de Duarte de Lemos nos documentos conhecidos, durante o período 1540-49, nos leva a supor que ele permanecera na metrópole, desinteressado da sua propriedade brasileira.
(39) - Coube a Duarte de Lemos o comando de uma das três naus da armada de Tomé de Sousa. TEODORO SAMPAIO informa que a embarcação se chamava de Nossa Senhora da Ajuda (Hist. da Fundação, 172), acrescentando, páginas adiante, ao tratar “do elemento civil, vindo na armada com as funções definidas”, que “Duarte de Lemos, fidalgo da Casa del Rei, parece ter vindo no comando imediato da tropa, assistido por quatro homens d’armas e tendo de seu ordenado mensal oitocentos réis” (op. cit, 180).
(40) - ALBERTO LAMEGO é de parecer que Duarte de Lemos “encontrou-se” com Vasco Coutinho. Eis o que, a propósito, escreveu: “Quando Tomé de Sousa o mandou [Duarte de Lemos] como capitão-mar da Capitania de Porto Seguro, que ficara acéfala por ter sido o seu donatário, Pero de Campos Tourinho, enviado sob ferros para Lisboa, acusado de blasfemo e herege, encontrou-se com Vasco Fernandes Coutinho em Santa Cruz, de viagem para o Reino”. (Terra Goitacá, V, 372).
Fonte: História do Estado do Espírito Santo, 3ª edição, Vitória (APEES) - Arquivo Público do Estado do Espírito Santo – Secretaria de Cultura, 2008
Autor: José Teixeira de Oliveira
Compilação: Walter Aguiar Filho, julho/2018
Pero de Magalhães de Gândavo, autor da 1ª História do Brasil, em português, impressa em Lisboa, no ano de 1576
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