Guardiões do Convento da Penha: Frei Vitorino, Frei Valadares e Frei Humiliana
Exposto aos vendavais e de construção antiga, exigia o Convento reparos constantes. Assim na guardiania de Frei Vitorino de Santa Felicidade (1834), sacerdote operoso que ocupou o cargo diversas vezes, reconstruiu-se a parede interna principal, reformou-se o telhado, parte do monumento de caprichoso perfil que, segundo uma autoridade em reliquias históricas e arquitetônicas, assemelha-se aos vestígios das construções árabes, na Península Ibérica. (24) Janelas foram substituídas, além de outros pequenos consertos no próprio templo, nas senzalas e casa dos romeiros. Em 1849, Frei Vitorino rubricou o primeiro "Livro de Visitas" da Penha, no qual podemos apreciar autógrafos de raro valor e as impressões indeléveis de romeiros de todas as categorias sociais.
Degredado para o Espírito Santo, o Pe. Diogo Antônio Feijó residiu alguns meses, em Vitória. (De 27 de julho a 13 de Dezembro de 1842). Ia passar dias na Penha, onde celebrava a Santa Missa. De certo, servia-se de condução, durante muitos anos, usada pelos sacerdotes idosos ou doentes — o burrinho de Nossa Senhora da Penha.
Eleito Guardião, em 1850, Frei João Nepomuceno Valadares transformou a placidez da vida no outeiro. Já vimos que promovera festas esplêndidas, com banquetes e música, atraindo sobretudo os campistas que viajavam, até fretando vapores.
Em 1853 Frei Valadares reconstruiu, a pedra e cal, as senzalas, dispostas em duas filas, que ladeavam uma rua; levantou o telhado, substituiu toda a obra de talha do Santuário.
Casinhas, além das senzalas e a Casa dos Banquetes, com fogões e fornos, indicavam a previdência dos Guardiães, para agasalhar e manter os romeiros, que afluíam de longe .
Frei Valadares era, portanto, um homem empreendedor. Granjeou, por isso, justamente, simpatia e admiração dos seus conterrâneos, pois descendia de ilustre família da Província. Como Frei José do Patrocínio e Frei Santa Cecilia, administrava os rebanhos e a lavoura, com receita prodigiosa.
Quando, em 1855, a festa coincidiu com o término das obras de restauração do Convento, para que "o mesmo durasse mais duzentos anos" — o Guardião pediu aos convivas, no banquete, que o acompanhassem, no brinde ao Pe. Antunes de Sequeira, agradecendo-lhe o sermão proferido, na Missa. O famoso orador sacro e apreciado repentista respondeu-lhe, com o soneto: —
Bom ministro do Ser Onipotente,
exímio guardião em grau fecundo
salva-te o astro do dia rubicundo
que hoje surge inda mais resplandecente
Coroa a Natureza, de contente,
os teus sábios trabalhos, neste mundo;
mas, no outro, um Deus grato, um Deus jucundo
louvores te dará, num trono ingente.
Doze vezes, o astro luminoso
tua excelsa missão saudou, com glória,
neste dia tão grato e tão bondoso.
Gravado fique sempre, na memória,
o nome Valadares glorioso,
seja ele o farol da nossa história.
Logo, os campistas abraçaram o religioso e o levaram, em triunfo, até Vila Velha.
Vivia o povo sempre temeroso das epidemias que martirizavam, periodicamente os habitantes de Vitória. Varíola, febre amarela, bubônica! ... Em 1856, irrompeu o cólera morbo e alastrou-se ràpidamente. Dizem as crônicas da "Província do Espírito Santo" que passavam pelas ruas oito, doze, dezesseis cadáveres, transportados pelos galés. Aterradas, as famílias gritavam, das janelas! — Misericórdia, meu Deus! Socorrei vosso povo"!
Mas, se o povo é naturalmente religioso, na rotina cotidiana, afervora-se na cadinho do sofrimento. Voltou-se para Nossa Senhora da Penha e, em procissão, trouxe o Menino Jesus até Vitória e a Serra. No "Correia da Vitória", de 30 de Janeiro de 1856, Frei Valadares convidava o povo para receber a referida imagem, que regressava da Serra e devia permanecer, no Convento de São Francisco, de 1 a 2 de Fevereiro.
No dia 4 do mesmo mês, a coroa de Nossa Senhora da Penha foi, em procissão, até Carapina.
Surgiram, naturalmente, evidências das vibrações poéticas da alma popular, produções que permaneceram aliando a sensibilidade dos seus autores anônimos ao registro da passagem histórica. Temos assim a Glosa da Coroa, recolhida em nossas pesquisas folclóricas: —
Nossa Senhora da Penha
não veio, porém, mandou
sua sagrada coroa
e a impidemia passou.
Corre sangue em borbotão,
nas chgas de Jesus Cristo;
pro erro dos seus ministro,
maior lançada lhe dão.
A Deus pidindo perdão,
mentre castigo num venha,
sendo Mãe do Onipotente,
Ela a nós compaixão tenha,
tenha dó dos inocente,
Nossa Senhora da Penha.
No Santuário, em louvô,
tem seus milagres pintado
e, em cera, representado
aqueles que Ela curô,
pidindo a Nosso Senhô
pro muita bondade e amô,
que a seu povo, em embaraço,
acolhesse, em seu regaço,
pelo santo resplendô
que Ela, não veio mandô.
Houve uma missa cantada
e uma procissão de vela
que parecia de estrela,
cum ladainha entoada,
que foi inté Carapina.
Houve muito sarva boa,
pois que só viu da Senhora
pela bondade divina,
sua sagrada coroa.
Na vila martirizada,
os mais nobres cidadão
acharo o tempo sagrado
de fazê a procissão,
os cujos nome eu num sei,
pru que num pude conta
os que foram acompanha
prenda que a Virgem mandô,
e quando Ela entrô na igreja,
a impidemia passou.
Respeitamos a linguagem natural do nosso informante, proprietário de um sítio, na Serra, e que, algumas vezes, chega a Vitória para atender aos seus clientes, com bendições e botica de ervas.
Em 1856, empreendeu-se a restauração do templo. Festa suprema! Vieram de Campos dois vapores. Oito dias de festa! No último, os campistas repetiram a festa da Penha.
E, assim, crescia o entusiasmo. Banquetes e, com o tempo, o jogo. No "Correio da Vitória", de 25 de Abril de 1857, lemos que a festa da Penha, celebrada, no dia 20, excedeu a todas as outras. Um banquete de duzentos convivas!
Urgia, portanto uma providência que reprimisse o espírito profano, à sombra do Santuário da Virgem Imaculada. Veremos adiante tal resolução das autoridades eclesiásticas.
Coube a Frei Valadares a honra de receber SS. MM., o Imperador Dom Pedro II e a Imperatriz Dona Tereza Cristina Maria, em visita a Nossa Senhora da Penha, a 28 de Janeiro de 1860. Foram acompanhados de numerosa comitiva e deixaram generosa esmola para o Santuário.
Em 1862, Frei Valadares reconstruiu o frontispício da capela do Bom Jesus. Mas, dois anos após (1864), furiosa tempestade destruiu o alpendre envidraçado e destelhou a casa dos romeiros, ou do jogo. Diz Gomes Neto que "os vidros e caixilhos do alpendre voavam, em hastilhas, e as telhas da casa dos banquetes giravam, no ar, como andorinhas".
Aquele operoso Guardião faleceu, em Vitória, a 15 de Março de 1865, e foi sepultado no Convento de São Francisco. Recebeu a homenagem de um enterro concorridíssimo. Deixara a Penha, a 8 de Março de 1862, quando o substituiu Frei Teotônio de Santa Humiliana.
Já, nesse tempo, o Convento demonstrava as conseqüências do Aviso baixado pelo Ministro Nabuco de Araújo, a 19 de Maio de 1855, cassando as licenças para a entrada de noviços nas Ordens religiosas. Por isso, Frei Teotônio viveu solitário na Penha, até Agosto de 1867, quando se transferiu para o Rio de Janeiro. Durante o seu governo, o Santuário sofreu diversos prejuízos, em conseqüência dos raios caídos, a 27 de Janeiro e 14 de Fevereiro de 1867. Atingiram o zimbório, as paredes e obras de talha.
Frei Teotônio colocou, na Gruta de Frei Pedro Palácios, a seguinte inscrição: —
ECCE PETRI PALACIOS ARCTA HABITATIO PRIMA QUI DOMINAM A RUPE VEXIT AD ISTA LOCA MIRUM COENOBIUM CONSTRUXIT VERTICE RUPIS?
QUO TANDEM DOMINAE TRANSTULIT AFFIGIEM QUAM MAGNIS MERITIS VITA DECESSIT ONUSTUS JAM PROMISSA BONIS PRAEMIA COELIUM HABET;
Obiit 1575. Jacet in Conv. S. Francisci Victoriae
F.T.S.H.An. 1864
Tradução: —
Eis de Pedro Palácios a primeira e estreita habitação
O qual trouxe para estes lugares a Senhora da Penha.
Construiu no cume do monte um admirável Convento,
Para onde transferiu, finalmente, a Imagem,
Onerado de grandes merecimentos passou desta vida.
E já possui os prêmios celestes prometidos aos bons.
Morreu em 1575. Jaz no Convento de São Francisco de Vitória.
Frei Teotônio de Santa Humiliana, ano de 1864.
Dois pontos confusos encontramos nessa inscrição. — Frei Pedro Palácios faleceu em 1570 e não construiu o Convento. Fez apenas a Ermida das Palmeiras, já referida nos primeiros capítulos deste nosso livro.
Na segunda metade do mesmo Século (XIX) deu-se o naufrágio do Espadarte, na costa do Espírito Santo. No auge da tormenta, em pleno mar, a tripulação recorreu a Nossa Senhora da Penha: —
Da Penha, oh, Mãe milagrosa!
Livrai-me desta tormenta!
Tomba o mastro, voa a vela,
O mar, meu barco arrebenta!
Ao chegar a Vitória, salvo do naufrágio, o capitão do navio relatou o fato ao Pe. Francisco da Fraga Loureiro, que, segundo supõe o Des. Afonso Cláudio de Freitas Rosa, logo improvisou a seguinte glosa: —
Com rumo ao mar inclemente,
Fez-se de vela o Espadarte;
Adeus ao nauta que parte,
Diz da praia toda gente,
Vendo-o postado silente,
Junto à amura perigosa,
Onde põe a mão calosa.
Ronda o vento e do fraguedo
Sobe a onda no rochedo,
Da Penha, oh, Mãe milagrosa!
O dia se muda em noite,
Desce a chuva de granizo;
No céu é de fogo o friso,
Que o raio traça no açoite,
A quanta sombra se afoite,
Nessa hora laculenta,
Após refrega cruenta,
A buscar a salvação;
Mas, eis, fala o coração:
Livrai-me desta tormenta!
Rija sopra a ventania,
Cresce da onda a montanha,
Cedendo a uma força estranha,
Que ela em vão contraria,
Redobra a bordo a agonia,
Com tão rugir da procela:
Não fulge uma só estrela,
Que um só lampejo derrame;
O raio rompe o cordame,
Tomba o mastro, voa a vela!
Colhido pelo revés,
Que o ameaça tragar
O marinheiro a rezar,
De joelhos, no convés,
Se lança. Da cruz o sinal fez,
E, enquanto a alma adormenta,
Amaina e cessa a tormenta.
Então, de olhos para os céus,
Exclama: — Entrego-me a Deus!
— O mar meu barco arrebenta!
NOTA
24) — N. Bahiense — o Convento da Penha
Fonte: O Relicário de um povo – O Santuário de Nossa Senhora da Penha, 2ª edição, 1958
Autora: Maria Stella de Novaes
Compilação: Walter de Aguiar Filho, janeiro/2017
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