O Espírito Santo em 1851
A cidade mais importante entre Rio de Janeiro e Bahia é a do Espírito Santo, que era o limite norte de nossa área de patrulha. O verdadeiro nome dessa cidade é Vitória, mas estando situada às margens do rio Espírito Santo, assumiu o nome deste, de acordo com o costume do país. Localiza-se a cerca de 250 milhas do Rio de Janeiro. Esse rio deságua na baía do Espírito Santo, onde ancoramos à espera de um piloto. A entrada do rio é estreita, ladeada por duas montanhas, das quais o Morro do Moreno é a mais notável. Permanecemos ali um dia até que algum piloto viesse, obedecendo ao nosso sinal. Finalmente um bote encostou, trazendo um homem vestido com uma espécie de uniforme naval, que melhor seria chamado multiuniforme, pela ausência de regularidade e ordem. A pessoa apresentou-se como piloto e afirmou que poderíamos atravessar a barra na preamar, quando haveria três braças de profundidade na parte mais rasa. Medimos duas braças e um quarto, de modo que era necessário certa precaução ao subirmos a corrente. Avançamos a passo de caracol, descendo os prumos constantemente, com capitão, arrais e piloto sobre a caixa das pás.
A paisagem em torno era tão extraordinária que um piloto poeta teria certamente deixado o navio encalhar, pela constante admiração das margens. O lado esquerdo era montanhoso, o direito, um volume de água salpicado com ilhas cobertas de cactos, embora não houvesse terra alguma sobre elas, não sobrando espaço nem para duas pessoas em pé. A água entre as ilhas era calma e bonita, como se não conhecesse outra forma. No cume de uma das montanhas ao lado esquerdo, entre rochas fantasticamente empilhadas uma sobre a outra, como se tivessem sido petecas de gigantes, erguia-se altiva o que pensamos ser uma fortaleza e que, no entanto, revelou-se um convento. Às vezes abria-se uma bela enseada, mostrando praias cobertas com folhagem verde –escura, e algumas casinhas brancas ao fundo, repousando tranqüilas e à vontade num oceano de beleza. Pequenas rochas saltavam da água em ambos os lados, enquanto a vegetação derramava-se das montanhas mais altas. Era o lugar para poesia, e o viajante exausto poderia ser perdoado por dar vazão a seus sentimentos em verso e encher uma página, more majorum[1].
Levemente desliza o nosso navio
Como uma ave marinha de asas abertas
Através de estreitas correntes onde fragrância insufla
Fecundantes sopros primaveris.
Altas, em uma das margens, às grimpas das montanhas
Enrugam rochas, amontoadas sobre rochas,
De onde muitos ribeiros se precipitam
Claros como fios de prata.
Ali, no cume, entre rochedos eretos
Ergue-se velho edifício
Que deve ter desafiado os mais violentos embates da tempestade
Ou as mãos presunçosas do inimigo.
Do outro lado ilhas baixas se avistam
Onde os verdes cactos vicejam
E onde por baixo de ramalhenda cortina
Descansam os beija-flores.
E o enrugado oceano brandamente sorri
Onde, em suave quietude, repousam
Os espessos cachos de pequenas ilhas
Em seu seio enganador [2].
Uma rocha à entrada de uma dessas enseadas tinha uma pequena cruz branca de pedra erguida sobre ela. Ao inquirirmos sobre o significado daquilo, a tradição, falando pela boca do piloto, nos informou que, toda vez que os escravos de Vitória têm uma folga se dirigem a uma pequena vila a meio caminho rio abaixo para festejar. Não era coisa rara os escravos se embriagarem e discutirem – na verdade, era o habitual. Não era menos comum sacarem-se facas e alguém do grupo ser morto. Se, nesse trágico desfecho de festa, o assassino conseguisse embarcar em sua canoa e alcançar a pedra da cruz antes de ser capturado, estava salvo; todavia, se apanhado antes, pagava com a vida o seu crime. Este certamente é um costume curioso, e nos lembra as cidades de refúgio de que nos fala o Velho Testamento.
As únicas fortificações que observei foram dois pequenos fortins de barro, contendo, a imaginar pelo tamanho, seis ou oito canhões cada. Estes não pareciam prometer grande segurança, uma vez que uma bala de 68 libras, bem arremessada, lançaria forte, parede e tudo aos quintos dos infernos. Passávamos exatamente agora sob a sombra do imponente Pão de Açúcar [3], através de um estreito canal, os cutelos da embarcação quase roçando as rochas de cada lado. No minuto seguinte, defrontamos a cidade e o porto, no qual ancoramos em quatro braças. Apesar de haver alguns belos prédios nesta cidade, entre os quais o palácio do governador (?) [4] é o mais visível, sua aparência geral é tudo, menos florescente. A maioria das casas é pequena, suja e insignificante, enquanto as construções maiores rapidamente se vão deteriorando.
A meio-caminho rio abaixo fica uma vila, chamada vila velha, na qual os principais artigos aí produzidos, isto é, redes de algodão, são vendidos a preço mais barato do que em qualquer lugar. A gentileza de um de meus companheiros [5] me permite dar a seguinte descrição da fábrica, que a indelicadeza do médico me impediu de visitar:
“Alguns de nós descemos à vila velha, situada na margem direita do rio, a cerca de uma milha da foz; abaixo do convento e no fundo de uma linda enseada. Há aí muitas fábricas de redes de algodão, e nós encontramos em várias casas a sua procura. Um estoque era logo apresentado, com preços variando de seis a oito mil réis. Como o grupo estava ansioso por passear, não pude fazer muitas observações a respeito da fabricação; mas, pelo visto, o processo parecia muito simples. As armações tinham sete pés de comprimento por três de largura; e o material era algodão sul-americano cru, muito resistente.
Tendo finalmente concluído as compras a contento, partimos para o convento que se elevava sobre nós. Da vila, a estrada prosseguia em ziguezague através de uma pequena floresta, e pelos vestígios de calçamento mostrava sinais evidentes de que outrora muito mais cuidado lhe fora dispensado do agora. A posição do convento é muito conspícua, e como está situado no pináculo de uma alta montanha, dali se vê uma longa extensão da costa de norte a sul. A face da montanha voltada para o rio é quase perpendicular, mas a outra descai suavemente até uma imensa planície coberta de mata, que a sudeste se estende por milhas ao longo da costa e, a oeste, até encontrar uma cadeia de montes férteis.
O convento em si tinha pouca coisa digna de registro [6]. A capela era pequena, embora possuísse um órgão, e o convento era usado por freiras mestiças, nenhuma das quais foi vista por nós, hereges.”
Apesar de meu colega não ter visto nenhuma dessas internas, os grumetes, que desembarcaram sob o comando do mestre de armas, afirmaram que viram algumas delas vestidas do modo mais primitivo. Deve-se lembrar, porém, que esses jovens eram protestantes, e os protestantes nunca conseguem dizer a verdade, mesmo quando não têm motivo para agir de outra maneira. Esses jovens provavelmente aprenderam a mentir desde o berço, e poderiam não saber que todos os santos são virtuosos, ou então poderiam pretender lançar um estigma sobre a santidade de “Sua Santidade”.
Quando desembarquei pela primeira vez em Vitória, encontrei-a invadida por um grupo de marinheiros bêbados, cujos rostos facilmente reconheci. Tinha sido concedida folga a nossos homens, e as conseqüências disso podem ser facilmente imaginadas. Alguns estavam vagueando desvairados pela cidade, outros sentavam-se nas esquinas, como lamentadores queixando-se das loucuras e vícios da época, e produzindo surpreendentes textos para suas próprias meditações. Depois de espiar algumas lojas, e deparar uma lamentável escassez de sólidos de todo o tipo, e uma igualmente lamentável abundância de líquidos, partimos para o campo, emergindo das ruas imundas como borboletas de seus casulos, trocando toda a miséria de uma cidade brasileira pelo frescor de um campo brasileiro. A brisa afagava suavemente o prado perfumado e sussurrava musicalmente por entre a floresta, beijando as tranças das árvores, trazendo em suas asas os mais puros deleites. Passamos por uma colina coberta de grama, e seguimos através de uma floresta. Estávamos em tal labirinto de beleza que mal podíamos parar contemplar as largas folhagens, firmes e rígidas como espadas, as partes inferiores tingidas do mais delicado vermelho, que se erguiam a cada lado da trilha. Além desse bosque, paramos em uma campina, no cume de um monte, e observamos então o rio, serpenteando em curvas graciosas pelo vale, as marolas incontáveis refletindo os raios do sol, enquanto casas agrupavam-se ao longo das margens, destacada por arbustos verdejantes em viçosa exuberância.
Nessa campina havia uma casa, onde paramos para conseguir algo de beber. Graças a alguns meninos maltrapilhos, cujos corações foram abertos com o presente de um vintém cada, conseguimos algumas galinhas e ovos, retornando a bordo, onde encontramos um grupo de convidados reunidos no vapor inglês, consistindo de alguns membros da elite desta cidade que participaram de um jantar e depois entregaram-se à nobre diversão da dança.
Livro: Ingleses na Costa, 1989
Autor: Edward Wilberforce
Tradução: Eliziane Andrade Paiva
Compilação por Walter de Aguiar Filho com pequenas adaptações ao texto original.
Notas do livro:
[1] – É o capítulo XV do texto original.
[2] – Essa é a tradução que Taunay fez dos versos de Wilberforce, incluindo-os em seu ensaio “Impressões de Vitória e seus arredores”, publicado no Jornal do Comércio, em 1945. (Apud Nobertino Bahiense, O Convento da Penha, Vitória, 1951).
[3] – Atualmente morro do Penedo. Era assim chamado pelos portugueses, como a outros morros de mesma configuração e talhe arredondado, numa alusão aos torrões de açúcar para exportação.
[4] – É o Palácio Anchieta. A interrogação entre parênteses está no texto original.
[5] – O primeiro-tenente Jonh H. Crang que, juntamente com o capitão Edward Tatham, visitou o Convento da Penha em 3 de setembro de 1851 (cf. Norbertino Bahiense, op. cit., p.87).
[6] – Wilberforce interpelou no texto de Crang, entre parênteses, a seguinte observação: “Estou envergonhado de você, herético colega, por dar vazão a semelhante sentimento”.
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Pero de Magalhães de Gândavo, autor da 1ª História do Brasil, em português, impressa em Lisboa, no ano de 1576
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