O Saci – Por Adelpho Monjardim
Segundo a crença, é o saci pretinho de uma perna só, barrete vermelho e um olho plantado no meio da testa. Todavia a palavra “ça-cy” significa olho doente, o que admite para o maléfico e irrequieto negrinho um par de olhos, sendo que um doente.
Pinta-nos a crendice o saci como ser diabólico a cavalgar, durante as noites, animais em disparada. No silêncio das horas mortas o seu assovio atroa, afugentando os animais, que temem a sua presença.
A cor vermelha do barrete denuncia a origem africana da lenda. Por sua extraordinária vivacidade é chamado saci-pererê.
Em o “Grande Dicionário Etimológico, Prosódico da Língua Portuguesa”, do eminente filólogo Professor Silveira Bueno, ficamos sabendo que o saci “nada mais é do que a mitização ou mitificação do morcego-vampiro que, durante a noite se enrosca na crina dos animais para sugar-lhes o sangue. Os animais põem-se a correr para ver se fazem cair o vampiro”.
Em algumas regiões do Brasil é também conhecido por saci-sapererê. Assim ou assado é o saci conhecido no lendário capixaba: Negrinho perneta, de um olho só, no meio da testa; cachimbo e barrete vermelho, cobrindo a carapinha. Não obstante é ágil e irrequieto. Quando não está fumando está assoviando. Assovio tão forte, tão estridente, que de longe denuncia a sua presença.
Fumante inveterado, a floresta virgem é o seu habitat. Perverso, compraz-se em torturar os demais seres. Se um animal monta-o e o obriga a galopar até ao esgotamento. Se um ser humano pede-lhe fumo. Ai do coitado se não o satisfaz! O cachimbo, fornalha ardente, não cessa de fumegar.
Todos que, por qualquer circunstância, eram forçados a entrar nas matas, preveniam-se com boa quantidade de fumo, conjurando o perigo de um encontro com o negrinho sinistro.
Crescêncio, negro velho, fora escravo dos senhores da Fazenda de Mangaraí nas terras de Santa Leopoldina, então meta dos primeiros colonos alemães. Mangaraí era fazenda bem cuidada, de ótimas terras, pastagens excelentes, água abundante e espessas matas. Todas as suas montanhas, de encostas verdejantes, eram abundantes em caça e ricas de seiva.
Entretanto aquela região paradisíaca possuía o seu calcanhar de Aquiles. O Monte do Meio, de mata fechada e quase impenetrável, era mal-afamado. Diziam morar ali um saci.
Certa manhã, o vaqueiro Crescêncio recebeu ordens para procurar no Morro do Meio, uma rês tresmalhada. Missão ingrata, dose para elefante, porém forçoso cumpri-la. Devoto de São Jorge, cuja oração não largava, preparou-se para a perigosa tarefa. Seriam seis da manhã quando chegou ao pé do morro. Dali para a frente seguiria só. Dando meia volta os companheiros se afastaram o mais depressa possível. Na aba do morro, antes de mergulhar na mata, parou para rezar a milagrosa oração.
Vigilante, olhar aceso, ouvidos apurados, lá se foi Crescêncio subindo o morro. Teria ascendido meia encosta quando topou com sólido aglomerado de pedras que abria clareira no meio da mata, onde vicejava robusta vegetação rasteira. Era uma espécie de respiradouro, um hiato naquele mundo vegetal. Enredado por cipós e lianas e alentados gravatas, o aglomerado de pedras apresentava aspecto suspeito e inquietante. Ah, por certo, se alapardavam coisas como cobras e outros bichos venenosos. Crescêncio estacou tal como Édipo diante da Esfinge. De súbito, sobrepondo-se ao murmúrio da floresta, ao gorjeio das aves e ao gorgolejar das águas, estridente assovio se fez ouvir. Calaram-se as cigarras e emudeceram os pássaros. Só o vento rumorejava sacudindo as frondes. Jamais assovio humano alcançaria tal diapasão, alturas tais. – O saci! Exclamou Crescêncio, gelado de pavor, a suar frio. Valha-me São Jorge! Murmurou aflito a benzer-se a tremer.
O demoníaco assovio crescia de intensidade e se aproximava veloz. Para que não lhe estourassem os tímpanos, Crescêncio tapou os ouvidos com as mãos em concha. Logo a seguir tremenda atropelada sacudiu o chão, descendo o morro. O estralejar de mato quebrado era nitidamente ouvido. O preto ficou branco, coisa terrível. Evocando São Jorge, escondeu-se por detrás de um tronco. Foi a salvação. Contornando a pedranceira, varando o espaço vazio, o saci surgiu cavalgando a rês tresmalhada. Embarafustando-se por entre os troncos passou sem perceber o intruso. O barrete vermelho, enterrado até o olho solitário, dava bem a medida daquele ser maléfico. O cachimbo, entre os dentes cerrados, fumegava insólito e provocador.
Tremendo a não suster-se nas pernas, o pobre negro viu passar a trágica visão. Sorte não ter sido visto. A rês restava perdida, pois o saci quando cavalga a presa só desmonta depois dela morta.
A novilha estava perdida. Em paz com a consciência, em desabalada carreira, Crescêndio desandou morro abaixo.
Fonte: O Espírito Santo na História, na Lenda e no Folclore, 1983
Autor: Adelpho Poli Monjardim
Compilação: Walter de Aguiar Filho, maio/2016
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