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Peroás e Caramurus

Rua Caramuru, antiga Ladeira do Fogo

O dia 28 de dezembro de 1832, festa de S. Benedito, amanheceu chuvoso. A Irmandade do Santo padroeiro dos negros havia difundido grande devoção no povo capixaba. S. Benedito venerava-se no altar-mor da Capela da Ordem Terceira de S. Francisco. Era guardião Frei Manoel de Santa Úrsula, natural da Província, filho de proprietário de terras, lá para as bandas de Santo Antônio.

A Fé remove montanhas; por isso, a Irmandade não teia tempo ameaçador. Santa Úrsula determinara que a procissão não se fizesse. Temperamental, gostava de ser obedecido. A mesa da Confraria estava, porém, disposta ao sacrifício da intempérie para homenagear o padroeiro milagroso e querido. Ponderou ao Frei Guardião. Discutiram, exaltaram-se. Santa Úrsula, irredutível e prepotente, em meio aos protestos, mandou que os escravos do Convento atirasse, pela janela afora os castiçais, opas e tochas da Irmandade. Estava terminada a festa, começava a luta. Por precaução, o frade levou a imagem veneranda, responsável pela briga, para a sua cela, trancou a porta e abalou-se para a fazenda de seu pai. Os escravos montaram-lhe guarda. Frei Antônio de S. Joaquim, bonachão e otogenário, no último Capítulo fora eleito para suceder a Santa Úrsula.

O incidente parecia encerrado. O Guardião recolocou a imagem de S. Benedito no seu nicho. Mas, no domingo de 23 de setembro de 1833, pela manhã, às sete e meia, antes da missa conventual das oito horas, as ruas eram desertas ainda. Eis que os fanáticos Domingos do Rosário, o africano forro Antônio Mota, o crioulo Elias Coelho, adrede instruídos, esquadrinhando-se pela Ladeira do Frade, penetram sorrateiramente na Capela de São Francisco e furtam a imagem cobiçada. Em corrida prudente pelos Pelames e Largo da Conceição alcançaram a igreja do Rosário, onde os sinos deram em desafiar o foguetório pelo regozijo da empreitada. A festa entonteceu os ânimos da facção cindida da Irmandade. Elegeu-se uma guarda de honra para vigiar a imagem furtada. A preferência recaiu nos irmãos Tenente Antônio Augusto Nogueira da Gama e Capitão Francisco Rodrigues de Barcelos Freire.

Assim, nasceu a dualidade das Confrarias de S. Benedito. Uma legitimista, com sede no Convento de S. Francisco, outra “protestante”, acolhida na Igreja de N. S. Do Rosário. As duas facções desavieram-se de modo formal. Do bate-boca acalorado e dos recados atrevidos passaram às vias de fato inúmeras vezes. O povo dividiu-se e do campo religioso passou à política como não podia deixar de acontecer.

Os dissidentes apelidaram os conformados de “Caramurus”, nome dado a uma casta de peixes não muito estimada. Em revide receberam, os “protestantes”, o nome de “Peroás”, peixe também de pior cotação nas bancas dos pescadores. A dissenção durou quase um século. Em Vitória, não houve neutros. Os conservadores apoiaram os “Caramurus” e os liberais se filiaram aos “Peroás”. A Ladeira do Fogo recebeu o nome de “Caramuru”, por servir de acesso ao Convento de São Francisco. Duas filarmônicas se fundaram, cada uma mantida pela respectiva confraria protetora.

Quer a de farda verde, cor do estandarte da S. Benedito do S. Francisco, quer a de uniforme cor de tabaco do escudo de N. S. do Rosário, concorreram para difusão do gosto pela música, entre as classes humildes da cidade. Anualmente, os catraieiros e pescadores mediam forças em regatas animadíssimas, à sombra dos galhardetes das Irmandades rivais! O assunto pertence hoje ao folclore capixaba. As irmandades fundiram-se numa só e já não despertam nem a devoção nem o entusiasmo das festas do passado.

 

Fonte: Biografia de uma Ilha,1965
Autor: Luiz Serafim Derenzi
Compilação: Walter de Aguiar Filho, outubro/2012 

 

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