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Século XVI - Francisco de Aguiar Coutinho e Francisco Gil de Araújo

Francisco Gil de Araújo manda edificar a igreja de N. S. da Conceição, em Guarapari, que será elevada a Vila em 1679

As condições econômicas e sociais da Capitania deviam ser muito precárias, pois, Ambrósio de Aguiar Coutinho, apesar de lhe ter falecido o pai, Francisco de Aguiar, em 1627, só tomou posse da herança em 1643. E a posse foi simbólica, porque, governador das ilhas dos Açores, se deixou ficar na função, confirmando à Antônio do Couto d'Almeida, voluntário da guerra contra a segunda invasão holandesa, como capitão-mor.

Em 1650, Manuel de Almeida sucedeu-lhe na investidura e a crônica atribui-lhe uma querela com a Câmara Municipal, e a ordem dada a João Ferrão de Castelo Branco para construir, "na laje que está ao pé da vila", um fortim, onde mais tarde se alicerçaria o forte S. João.

É fértil, essa segunda metade do século da história do Espírito Santo, em descaso dos donatários, homens ricos e desinteressados do feudo em decadência.

Não administram, delegam poderes a capitães arbitrários. A justiça torna-se cada vez mais facciosa, os dinheiros públicos menos resguardados, as epidemias mais freqüentes.

O povo é intimado a se cotizar para pagar dotes de princesas, soldo de tropa e os filhos da folha, apelido malicioso com que se designavam os funcionários coloniais.

Todos querem sinecuras. Os capitães-mares ganham 192$000 por ano, 100$000 por conta do donatário e o restante pela Fazenda Real. A sobrevivência da Capitania, diante do desgaste da população com tantas dificuldades, havidas com os indígenas, invasões, epidemias, agrava-se com a falta de meios circulantes. O fisco, instituição que não se abranda, recebia os quintos em espécie e saía a mercadejá-los pelas Capitanias vizinhas, notadamente Rio de Janeiro e Bahia.

À medida que a pobreza aumenta, mais se aperfeiçoam os métodos de arrecadação. São postos em hasta pública, por triênio, ficando a remuneração dos exatores na contingência de "superavit". (1)

Se hoje é difícil a vida do pobre, calcule-se naqueles idos em que a autoridade bronca não tinha outro propósito senão extorquir, para se fazer grande junto ao Reino.

O Capitão-mor tornou-se símbolo da opressão.

UM DONATÁRIO VICE-REI

Ambrósio de Aguiar Coutinho, filho do terceiro donatário, Francisco de Aguiar Coutinho, faleceu, por simples conjetura minha, depois de 1660. Isso porque, desde 1641, os Capitães-mores começam a ser providos por D. Felipa, mãe e tutora de Antônio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho, sobrinho-neto de Ambrósio e seu sucessor. (2)

É um destino fatídico o da Capitania: arruína-se com maus governos, mandados por proprietários ricos. Mas de modo geral, as Capitanias brasileiras eram feudos deficitários, cujos senhoris as mantinham com a velha esperança em tesouros não encontrados.

Um bom cargo público, às vezes, valia mais do que ser proprietário de milhares de quilômetros quadrados de terras incultas, povoadas de botocudos e infestadas de doenças.

Assim foi que o último descendente de Vasco Fernandes Coutinho também o mais ilustre, não veio dirigir os destinos de sua descomunal herança. Nasceu em 1638. Fez carreira fulminante: almotacé-mór (*), oficial de Marinha, capitão de Mar e Guerra, governador de Pernambuco, vigésimo oitavo Governador Geral do Brasil, e, em 8 de março de 1693, transferido da Bahia, para as índias na função de Vice-Rei. Regressa em 1701 e morre no ano seguinte, sendo sepultado no Colégio dos Jesuítas, em Salvador. (3)

Seus loco-tenentes não lhe feitoravam o feudo com rendimentos satisfatórios. Com anuência do príncipe regente D. Pedro, de Portugal, vendeu a Capitania ao Coronel Francisco Gil de Araújo, rico proprietário baiano, em 1674, por 40.000 cruzados. (4) Ter-minou assim a dinastia dos Coutinhos nas terras do Espírito Santo. Possuíram-na por 139 anos, tempo justo de uma grande desilusão.

FRANCISCO GIL DE ARAÚJO

O Coronel Francisco Gil de Araújo inscreveu-se com honra nas páginas da história espírito-santense. Foi a figura central do século XVII, tão aziago para o Espírito Santo, como para o Brasil.

Veio sexagenário com entusiasmo de moço. Em 1636 recebia seu galão de alferes na defesa do recôncavo baiano contra as tropas de Nassau. Fizera fortuna sólida no volteio das terras. Era homem temperado pela experiência, enriquecido de virtudes, que só os anos bem vividos ensinam a acumular. Filho de Pedro Garcia e de Maria de Araújo, vinha do tronco, pelo lado materno, de Diogo Alvares, o Caramuru. Casou-se com sua sobrinha Joana de Araújo Pimentel.

Sua influência de homem probo devia ser enorme, porque os intelectuais o reverenciavam com admiração. O Padre Simão de Vasconcelos, em 1672, dedica-lhe a Vida do Venerável Padre Anchieta.

Confirmada a compra feita a Antônio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho, pela Carta Régia de 18 de março de 1675, muda-se para o Espírito Santo, acompanhado de séquito numeroso, de bens e apetrechos de lavoura. Traz na comitiva o novo Ouvidor, Rodrigo Arêa de Sá Moura, para que a Justiça seja distribuída com sabedoria e imparcialidade. Quer administrar com segurança e com respeito às Leis, para exigir obediência.

Chegado que foi, movimenta-se com entusiasmo.

Distribui terras e sementes além de ferramentas. Levanta engenhos. Paga tributos em atraso à Fazenda Real. Fortifica a Vila, reconstruindo as ruínas do Forte S. João e levantando o do Carmo e o de São Francisco Xavier. (5) Manda edificar a igreja de N. S. da Conceição, em Guarapari, que será elevada a Vila em 1679. (6) Reverencia os mortos sagrados dos primeiros anos da colonização, mandando dar sepultura digna aos ossos de Vasco Fernandes Coutinho. É trabalhador incansável; mas a Capitania é difícil: em 26 de dezembro de 1682, talvez arrependido ou desanimado, embarca para Salvador, onde falece, em 1685, cercado de admiração.

Sucedendo-lhe seu filho Manuel Garcia Pimentel, que foi confirmado em 5 de dezembro de 1687. Não conheceu o solo capixaba. Administrou a Capitania João Velasco Molina. No que concerne à fisionomia física da Vila, Francisco Gil pretendeu modificá-la, com obras de preço. Reedificou a Misericórdia, a casa da Câmara e reparou a Matriz. Proveu a defesa da cidade com fortificações e aumento de Infantaria e Artilheiros. Não esqueceu as entradas que lhe consumiram muitos cruzados. Elevou a renda dos dízimos de 1:468$000 para 1:804$000. (7)

Um donatário displicente – Não se conhece qualquer ato do donatário Manuel Garcia Pimentel em benefício da capitania. Tudo o que fez, enquanto o Espírito Santo lhe pertenceu, foi nomear alguns poucos funcionários, não interferindo, segundo parece, nem mesmo na escolha dos capitães-mores.

É admissível supor que o Espírito Santo viesse a ser melhor aquinhoado territorialmente se o herdeiro de Francisco Gil de Araújo zelasse um pouco mais pelo senhorio, não permitindo que os delegados del-rei restringissem, como fizeram, suas possibilidades de expansão. Tendo, talvez, sempre presentes ao espírito os grandes prejuízos sofridos pelo pai nas empresas que tentou no solo capixaba, Garcia Pimentel preferiu continuar administrando suas propriedades baianas, sacrificando, com tal atitude, o futuro da capitania.

E foi assim que o Espírito Santo viu passar um grande momento da sua História.*

A Informação dada pelo Provedor Manuel de Moraes, (8) em 27 de julho de 1682, é documento escrito para a posteridade. Nele o Secretário da Fazenda da Capitania retrata em linhas simples a administração do dinâmico Francisco Gil de Araújo. Foram quatro anos de trabalho construtivo. Despendeu apreciável fortuna para desenvolvimento de seu senhorio. Só em duas entradas pelo rio Doce mais de 12.000 cruzados foram gastos.

Rubim louva-lhe o interesse na lavoura da cana.

Foi sob os auspicias desse entusiasta donatário que os Carmelitas chegaram a Vitória. Frei Agostinho de Jesus pôde construir a igreja e iniciar o convento, graças à devoção do Capitão Manuel Torres de Sá (1682). (9) Era grande fazendeiro no atual município de Cariacica. Devoto de N. S. do Carmo, deixou em testamento a fazenda de Piranema com trinta escravos, fortuna fabulosa naquele tempo, ao Convento Carmelita, mediante certas condições, e que, não sendo cumpridas pela Ordem, lhe sucedesse na herança a Santa Casa de Misericórdia, o que ocorreu. O testamento, lavrado em 4 de março de 1694, foi aberto em novembro de 1701, quando morto o piedoso benfeitor. (10)

A moeda nessa época avilta-se, fenômeno precursor da falência nacional, propiciada pelos governos brasileiros no após revolução de 1930. Três vinténs passaram a valer quatro, e quatro tiveram o valor de um tostão. (11)

O vintém era moeda nobre, usava-se no bolso do colete e valia muito no mercado de mantimentos.

AFINAL O OURO!

Antônio Rodrigues Arzão, filho do minerador Cornélio Arzão contratado por D. Francisco de Souza, depois de várias entradas e sacrifícios martirizantes pelos sertões indefinidos, em 1693 rompeu em Vitória com três míseras oitavas de ouro. Vinha o sertanista taubateano rôto, doente e faminto com sua leva de "cincoenta e tantas pessoas que o acompanhavam, entre brancos e carijós domésticos de sua administração." (12)

Pareciam foragidos ou retirantes de guerra. Já não tinham munição para caça e defesa nem com que se alimentar e vestir.

A Câmara de Vitória os recebeu com humanidade.

Tinham mesmo, para tal fim, ordem régia para amparar os sertanistas, que servissem à Corôa com tais empresas. (13)

O feito foi comemorado com a fundição de duas "memórias" do ouro trazido: uma ofertada ao feliz Capitão-mor João Velasco de Molina e outra guardou-a o intrépido bandeirante.

O ouro foi descoberto no Oeste distante, lá pelas bandas do Rio Casca. Recolheu Arzão os frutos cobiçados pelos irmãos Antônio e Domingos de Azeredo, filhos de Marcos, que somaram longas léguas caminhadas pelas matas seculares da bacia do Rio Doce, cujos rastos Pais Leme assinalaria depois.

Fecha-se o século com mais um compasso de espera mortificante. E a vila não se faz cidade, sem ruas, sem casas de preço, sem escolas e onde as notícias, de longe em longe, chegam com os veleiros arribados e por bandos afixados pelos Capitães-mores impertinentes.

 

NOTAS

* Fragmento retirado do livro História do Estado do Espírito Santo, do autor José Teixeira de Oliveira, 3ª edição, Vitória (APEES) - Arquivo Público do Estado do Espírito Santo – Secretaria de Cultura, 2008.

(1) Taxas, contratos, arrendamento, monopólio, pagavam-se in ardina. O processo normal era este: a administração Punha em hasta pública a arrecadação desses reditos e contratava-se com o lançador mais alto. O concessionário teria de pagar em moeda correute, mas, ele próprio, coletava as somas devidas em gado, panos, pau-brasil, açúcar ou cachaça. Vendia no mercado litorâneo as mercadorias recebidas, ou exportava-as e ainda ganhava na negociação. (Pandia Calógeras — "Formação Histórica do Brasil").

(2) Era filho de Ambrósio de Aguiar Coutinho e Câmara e D. Felipa de Meneses, que, enviuvando cedo, foi, por muitos anos, tutora de seu filho, herdeiro da Capitania. Ambrósio de Aguiar Coutinho e Câmara era filho, por sua vez, de Antônio Gonçalves da Câmara, casado com D. Maria de Castro Aguiar Coutinho, filha de Francisco Aguiar Coutinho, terceiro donatário da Capitania e defensor do Espírito Santo contra a primeira invasão holandesa. Houve, portanto dois, Ambrósios donatários: o filho de Francisco de Aguiar Coutinho e o seu sobrinho.

(3) Daemon. José Teixeira de Oliveira.

(4) O cruzado do começo do século XVIII, também chamado cruzado novo, valia 480 reais e tinha o titulo de 1,095 grs. Pelo valor aquisitivo de 1937 valia 37$190, segundo Simon. sen. Valeria hoje cerca de Cr$ 350,00, pois o poder aquisitivo de nossa moeda é cerca de dez vezes inferior ao de 1937. Athos de Lemos Rache "Contribuição ao Estudo da Economia Mineira" — 1957.

(5) Mário Freire.

(6) Daemon.

(7) José Teixeira de Oliveira.

(8) "A Casa da Misericórdia de que não se viam mais que vestígios, mandou V. Sa. levantar, ficando perfeitíssima, aqui mandou, V. Sa. dar sepultura decente aos ossos do primeiro donatário Vasco Fernandes Coutinho, que soterrados em hua arca ainda se conservam reliquias delles. Está hoje essa muito enobrecida, assim na justiça como no mais." Informação do Provedor Manoel de Moraes — escrita em Vitória aos 27 de julho de 1682 — publicada por A. Lamego, em "A Terra Goitacá-. 1 Vol. Reproduzido em - A Gazeta de Campos" a 14-VII-1935, transcrito na R.I.H.G.E.S. n.o XI, pág. 106/118.

(9) Daemon.

(10) Idem.

(11) Mário Freire.

(12) Tannay

(13) Daemon

 

Fonte: Biografia de uma ilha, 1965
Autor: Luiz Serafim Derenzi
Compilação: Walter de Aguiar Filho, abril/2017 

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