A Pedra do Diabo - Por Adelpho Monjardim
Em Inhanguetá, ao lado da Estrada de Contorno, o Sítio do Batalha surpreende com um dos mais belos cenários da Ilha, tão fértil em lindas e coloridas paisagens. Não sabemos o que mais encante, se o cambiante, o movimentado panorama — sucessão de vales, montes e planícies ou o plúmbeo contraste das rochas com a clorofila das matas e relvados pendores que vão às ravinas e devesas naturais dos campos de cultura.
Num cômoro, suavemente tapizado de relva, em lugar que a rocha se desnuda, entre gorgolejantes arroios, ergue-se austero o casarão colonial, testemunha de passado fausto, tisnado pela pátina do tempo, que assinala a sua veneranda decrepitude.
Nesse bucólico recanto, caprichosa a fantasia criou sombria história capaz de apavorar aos mais valentes. A ela prende-se o nome da região.
Anhanguitá — de: anhangá: Diabo, alucinado, louco e itá — sufixo que designa plural. Há no sítio a rocha denominada Pedra do Diabo, em torno da qual gira a fabulosa lenda.
Não obstante a lenda, a pedra não é sequer impressionante. Em suave aclive prolonga-se pela encosta, rendada de liquens e coberta de cardos e gravatás, por entre os quais se vai ao casebre que lhe fica sobranceiro. É a parte baixa que interessa ao caso. Larga, espraiada, atinge a planície e serve de passagem ao povo da redondeza. Na face áspera, nitidamente gravadas estão as marcas de um, pé comum, as de um descomunal junto a outra quase minúscula; todas em sentido descensional. Ao lado das estranhas pegadas surge a cruz talhada na rocha e longos traços em relevo. Segundo a lenda o enorme pé pertence ao demo e o menor ao milagroso Santo Antônio. Rezam as crônicas que antes de existir o casarão o sítio pertencia a um homem rico e avarento, cujo nome a história não guardou. Homem sem fé, ambicioso, acrescia os seus bens à custa dos míseros escravos que definhavam no trabalho de sol a sol. Das suas arcas uma só moeda jamais saiu para mitigar a fome de alguém. As fartas colheitas contrastavam com as dos menos afortunados vizinhos, que lhes iam entregando as terras por dívidas. As suas, entretanto, eram oásis de fartura.
A par com a opulência crescera a fama de um pacto com o demônio. Aconteceu, porém, serem as suas terras assoladas por terrível praga, coisa nunca vista. Ameaçado de completa ruína o avarento vagava pelos campos, noite e dia, como alma penada. Certa noite adormeceu recostado à cabeceira da mesa, quando foi presa de horrível pesadelo. Sonhou que junto a uma pedra do sítio o diabo aparecera, ordenando-lhe que à meia-noite de sexta-feira fosse ali lhe entregar o seu único filho. Só assim cessariam os males. Ainda sob a terrível impressão despertou. Corre contar o sonho à mulher. Conhecendo o caráter do marido pressentiu o perigo que pairava sobre o rapaz. Sem demonstrar o que lhe ia n'alma saiu a procurá-lo.
Sexta-feira era o dia imediato, pensou a extremosa mãe. Urgia providenciar. Dirigiu-se para o quarto do filho resolvida a mandá-lo fugir naquela mesma noite. Lá chegando encontrou-o diante do pequeno oratório. Era um jovem de dezoito anos, de grande piedade cristã e muito amado pela gente do lugar. Sabedor do que afligia a mãe, tranqüilizou-a, limitando-se a apontar para a imagem de Santo Antônio, motivo das suas orações. Confiante retirou-se a boa mulher, prometendo guardar segredo dos seus temores.
Na noite seguinte, quando todos recolhidos, sob pretexto de recolher uma ovelha tresmalhada, o avarento foi buscar o filho para ajudá-lo. Este o acompanhou sem objeções. Calado, taciturno, o velho tomou a dianteira e lá se foram pela escuridão da noite. Andaram, andaram até chegar na pedra do encontro. A parte baixa, caminho obrigatório, para lá se dirigiram. Nesse momento, longe cantou o galo anunciando a meia-noite. Trêmulo o avarento ordenou ao filho que o esperasse debaixo do grande mulembá que se erguia mais para cima da pedra e se afastou com presteza. Mal o jovem quedou solitário, horrendo, rubro como ferro candente, o diabo apareceu. Apesar de animoso o jovem vacilou. No auge do desespero rogou a Santo Antônio que o valesse e desceu a pedra a correr. No mesmo instante, corno surgido da própria pedra, o santo apareceu. Irado acometeu-o o demônio. O glorioso taumaturgo riscando na pedra a sagrada cruz, sobre ele lança o seu exorcismo. Um urro tremendo sacode as montanhas. A pedra vibra e se incendeia sob o açoite da cauda diabólica, enquanto numa nuvem de fumo ele desapareceu para não mais voltar àquelas paragens.
Desta interessante lenda estão gravadas na pedra todas as suas peripécias para maior contribuição ao folclore vitoriense.
Fonte: O Espírito Santo na História, na Lenda e no Folclore, 1983
Autor: Adelpho Poli Monjardim
Compilação: Walter de Aguiar Filho, setembro/2015
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