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Café Capitania

Antonio Athayde

No final do século XIX, o Espírito Santo já detinha a marca do café capitania, famoso por suas propriedades de aroma e sabor inconfundíveis. Assim descreve o historiador Antônio Athaíde: “As condições climáticas e os agentes telúricos da nossa zona litorânea fixaram o habitat do tradicional capitania”. E explica que o café em questão era obtido de variedades cultivadas à sombra na região litorânea do Espírito Santo.

Texto de: Dr. Antônio Athayde

Estudemos rapidamente a gênese desse maravilhoso produto, que é, comercialmente falando, o termômetro monetário da vida econômica e financeira do Estado.

O café é um produto africano, originário da alta Etiópia. Foi cultivado e usado habitualmente na Arábia como bebida, no século XV. A infusão feita com o pó das sementes torradas era conhecida pelos habitantes por – Kavéh.

Generalizou-se essa bebida predileta dos árabes, por todo o Oriente, e só foi usada na Europa no século XVII, em virtude da grande oposição dos médicos e das influências religiosas dessa época, que consideravam-na como bebida excitante, prejudicial à saúde. Anos depois, foi analisada convenientemente e apreciada por quase todo o Ocidente, como bebida tônica e estimulante do coração, divulgada com o nome de Café, corruptela do vocábulo árabe Kavéh.

O grande botânico Linneu denominou essa preciosa rubiácea de coffea-arábica. Há outras espécies de café, por exemplo o coffea-libérica, cujas flores são hexâmetros e os frutos muito maiores. Há também o robusta, o maragogipe, o conillon e outros tipos próprios de cada região.

A coffea-arábica começou a ser cultivada no Brasil, no vale do Amazonas, em 1724. É pois, o cafeeiro uma planta exótica de gozo, incorporada a nossa flora, cujo fruto constitui a nossa principal riqueza.

Foi em 1800, aproximadamente, que o café foi introduzido no Espírito Santo, plantando-se algumas sementes a título de experiência no norte de Linhares, vale do Rio Doce.

Em 1812 se fez a primeira tentativa de exportação do café do Espírito Santo para o Rio de Janeiro, tendo o preço da arroba atingido a 3$000. Diz a “Crônica do Espírito Santo” que o benemérito governador Rubim, satisfeito com esse compensador resultado, na alta do preço, ordenou que se incrementasse a sua cultura nas cercanias de Vitória e no litoral, abrangendo todos os povoados do norte e do sul. Adquiridas as sementes, o plantio de café foi um fato. Alargou-se logo a área de seu desenvolvimento agrícola. Fizeram-se os ensaios da sua plantação, abrigada sob árvores de sombra, preferencialmente as ingazeiras, cujas copas ramalhudas protegiam melhor a delicada planta, dando-lhe o arejamento e a luz, indispensáveis para evitar o seu estiolamento.

Entretanto, a razão fundamental de se proteger a plantação dos cafeeiros com árvores copadas, não foi somente para amenizar a ação direta dos raios solares, no verão ou nas estiagens prolongadas que os castigassem cruelmente; foi também para impedir que os rijos ventos do nordeste e a constante viração das tardes de estio, no litoral, os açoitassem, atrofiando o seu crescimento, na ressecada do solo que se impermeabilizava.

Sem sombra, o cafeeiro não medra na zona litorânea. Isso já constitui uma noção muito elementar entre nossos lavradores da beirada, na conservação dos seus cafezais.

Formou-se, naturalmente, com esses cuidados e providências culturais, um tipo essencial de café que vulgarizou comercialmente com o nome de Capitania. Efetivamente, só esse produto da zona marítima se negociava com a praça do Rio de Janeiro. Os cafés do interior da Província, isto é, os dos seus sertões e colônias não eram ainda conhecidos. Dificilmente vinham a Capital, por falta de transporte. Contudo, só entraram no mercado alguns deles de 1930 em diante, a título de ensaio, por pequenas colheitas das fazendas, mais próximas ao litoral.

Referindo-nos ao batismo dado ao nosso café de Capitania, cumpre-nos dizer: - enquanto as antigas doações territoriais do Reino perderam logo o nome comum de Capitania, o nosso Espírito Santo conservava, por tradição heráldica, mesmo depois da Independência, esse fidalgo nome de seu donatário Vasco Coutinho, conforme constatam documentos públicos.

Todo café era exportado de Vitória para a praça do Rio de Janeiro, em sumacas e posteriormente em pequenos vapores de cabotagem, que recebiam dos portos de norte a sul da Província toda safra existente. Era, pois, embarcado aqui e armazenado no Rio com o nome de Capitania, para diferenciá-lo do de Minas Gerais, Rio e São Paulo.

Embora não se cogitasse, por esse tempo, de nenhuma classificação cultural, pois todo café era para se beber e negociar, independente dos tipos, contudo se regulava a sua procedência pelas marcas e sua propaganda, no aspecto bom e natural do produto que remetiam. Fixou-se assim o habitat do nosso Capitania, na preferência que lhe deram, pelo seu delicioso sabor e inconfundível aroma, os seus numerosos consumidores.

A influência do nosso meio físico formou as características desse nosso tipo de café, fazendo aqui uma perfeita adaptação, desde a sementeira.

Convém notar que tem sido experimentado o plantio do Capitania pelos sem nenhum êxito. Não são conservadas as características diferenciais no tamanho das sementes, na cor e na degustação. Degenera logo no café comum e vice-versa. O crioulo mesmo sob o abrigo da sombra não dá o Capitania. O clima e o solo alteram a natureza do produto. As condições climáticas e os agentes telúricos da nossa zona litorânea, fixaram no Espírito Santo o habitat do tradicional Capitania.

A propósito cito o trecho do brilhante artigo – O Café Capitania - , publicado no apreciado Boletim Mensal do Serviço de Defesa do Café, transcrito do excelente seminário Vida Capixaba, de autoria do distinto engenheiro agrônomo Carlos de Souza Duarte.

Diz o ilustre conterrâneo: “A opinião de que o café comum, cultivado no litoral, sob o abrigo de árvores de sombra, dá o tipo que, comercialmente, se convencionou dominar Capitania, parece a mais generalizada. Cumpre, pois, observar que se o clima litorâneo, em geral quente e úmido, tivesse a propriedade de modificar o café crioulo, cultivado sob o abrigo, não existiria só no Espírito Santo, Café Capitania e o seu habitat seria então bem mais extenso do que se imagina”.

Efetivamente é hoje uma opinião esclarecida e abalizada pelos técnicos, que o cafeeiro não é uma planta, como se supunha, que se desenvolve com o mesmo viço e aspecto, em qualquer localidade. É preciso que a temperatura média oscile entre 15º e 25º C. e que a chuva não vá além de 330 cm3, nem seja inferior a 220 cm3 por ano. Qualquer pequena alteração nos limites destes coeficientes empíricos apresenta grande número de variedades já conhecidas pelos agricultores, dando origem a vários tipos de grãos que concorrem aos mercados.

O nosso tipo Capitania já tem o seu brasão assinalado, de louros conquistados, nos mercados mundiais, desde 1889, cujos consumidores que o preferem pelo seu delicioso aroma, sabem impugná-lo, quando vai mistificado no seu comércio.

É oportuno lembrar, para ilustrar estas modestas linhas, que em 1888, quando dirigíamos o antigo núcleo colonial Conde d’Eu, o atual Pau Gigante, fomos solicitados pela Inspetoria Geral de Terras e Colonização para colecionarmos alguns produtos, a fim de seguirem para a Exposição Universal de Paris, em 1889, em homenagem à comemoração da data de 14 de Julho – primeiro centenário da Revolução Francesa.

Imediatamente conseguimos na zona municipal de Santa Cruz, um saco de 60 kg de café da melhor qualidade, com as sementes selecionadas e uniformes, na cor e no volume de cada uma delas, no empenho patriótico que tínhamos de apresentar um produto que nos honrasse na Capital da Terra. Além desse precioso produto, que denominávamos Capitania, remetemos também, mais setenta e três espécies de excelentes madeiras de lei, do vale de Pau Gigante.

Em setembro de 1889, o Júri Internacional daquele memorável certame da civilização ocidental, premiava o nosso Capitania com a medalha de ouro a as madeiras com menção honrosa.

Em janeiro de 1891, recebíamos uma carta de uma importante firma comercial de Trieste, convidando-nos para ser o seu correspondente em Vitória, para remessa de Café Capitania, conforme a amostra que viu na Exposição de Paris.

Ora, dirigíamos naquela ocasião os trabalhos de construção da Estrada de Ferro de Vitória a Rio Pardo (E.F. Leopoldina), e não podíamos deixá-los para nos envolver em negócios alheios à profissão, empenhados como estávamos todos no prosseguimento daquela esperançosa via-férrea. Resolvemos então entregar a predita carta aos Srs. Wetzel & Comp., para negociarem com o nosso produto laureado, e eles aceitaram com satisfação o honroso encargo.

Posteriormente tivemos conhecimento de que a aludida firma Trieste havia impugnado uma das remessas do nosso café, porque lá chegara caldeada com outros tipos inferiores e claudicada por artifícios que comprometiam a sanidade do produto.

Procuramos ouvir atenciosamente o prezado chefe da firma – Sr. Eugênio Wetzel – que se justificou, alegando o embarque de uma partida de café num dia de muita chuva. Acreditamos que não fosse o culpado da repulsa do café na praça de Trieste; entretanto era a propaganda que se fazia do nosso produto no estrangeiro.

Raramente se preocupavam com a sua qualidade, só havia interesse na quantidade a se exportar, em detrimento das rendas, do Estado, pelo descrédito do produto.

Vê-se, pois, que o saboroso Capitania que conquistou medalha de ouro, sem nenhum favor, no certame universal de Paris, ficou, pouco depois daquela data, indefensável nos mercados do Mediterrâneo.
Entretanto,não pudemos silenciar diante do revés sofrido. Escrevemos à firma de Trieste, cientificando-lhe que o Capitania era um tipo especial de café e da melhor qualidade, mas de produção restrita, não podendo ser exportado em grandes e consecutivas remessas.

Fizemos então apologia de outras qualidades de café, de tipos finos que o Espírito Santo possui em sua flora, a saber – o bourbon, o crioulo, o moka, miúdo e o graúdo – que são excelentes, quando recebem um cuidadoso preparo cultural, e que estes o nosso comércio estava suficientemente habilitado a exportar em grandes partidas.

Felizmente fomos atendidos no nosso alvitre, voltando o nosso café a lhe merecer o mesmo carinho e interesse revelados anteriormente.

Contudo continuava o mau preparo observado em todas as qualidades, preocupando seriamente a atenção dos poderes públicos do Estado.

Vem a terrível crise da baixa em 1901, e todos os Estados cafeeiros se reúnem em um só convênio para debelá-la. São Paulo lembra, entre outras providências, a proibição do plantio e a incineração de uma parte da produção! Foi por essa ocasião que apresentamos e fundamentamos um projeto de Lei sobre a valorização do café, no Congresso Legislativo.

Demonstrávamos que a baixa do produto provinha mais das más qualidades exportadas para mercados mundiais, onde elas se rivalizavam e comparavam-se com cafés finos e beneficiados de outros países produtores, do que da superabundância da nossa produção.

A nossa principal medida seria eliminar os cafés escórias da exportação, por impostos pesados, dificultando a saída deles para praças importadoras. Considerávamos a proibição do plantio e a incineração de uma parte da safra, como medidas antieconômicas e contraproducentes, somente em proveito de outros países que o cultivassem. Eram medidas, aliás, perturbadoras da nossa vida econômica e comercial.

Para se alargar o consumo é preciso a propaganda do produto com preço módico e nunca retê-lo, aguardando preços altos.

Enfim, encaramos a memorável questão da valorização em 1901, sob todos os pontos de vista, quase todos observados na atual crise. Contudo, devemos assinalar que presentemente há o notável aparelhamento do Serviço de Defesa de Café que evitará o abastardamento do produto nos mercados, o que faltava naquela época. Este instituto já classificou os tipos finos de café capixaba, fazendo a reivindicação do nosso afamado Capitania, na sua intensa propaganda pelos mais exigentes mercados do mundo.

Lembramos, em 1901, a conveniência de a sacaria ser de algodão, incrementando-se novamente o plantio dessa malvácea, no estímulo também dado à industria fabril, no preparo dos sacos, pelo resguardo da umidade prejudicial ao café, que a juta não protege. Lembramos também que se proibisse o seu embarque nos dias chuvosos e nas noites de más condições higrométricas. São cuidados necessários e complementares ao beneficiamento do produto, defendendo a sua sanidade até o porto do seu destino.

Aconselhamos sempre a policultura porque, quando em baixa o produto de nossa maior exportação, resistiremos melhor aos contratempos das crises periódicas a que ele está sujeito, fatalmente.

Mas o café é uma bebida predestinada, é um alimento de gozo, tanto na mesa do pobre, como na do rico. Tornou-se um hábito bebê-lo como um néctar delicioso.

O célebre fisiologista Bichat dizia: a lei do hábito é uma lei severa do Organismo.

Incontestavelmente, o Café Capitania é o café do Espírito Santo. Merece-nos especial carinho. É o nosso maior penhor patrimonial agrícola.

Esse maravilhoso produto é atualmente o termômetro monetário da vida econômica e financeira do Estado: algumas vezes, ele nos leva a sérias apreensões, como um pesadelo apavorante de tristezas sobre nós; outras, ele nos traz, como um mensageiro do bem, radiosas esperanças, na alvorada festiva de alegria e de felicidade, de prosperidade e de riqueza para o Espírito Santo!

 

Fonte: Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, número 10 - 1935
Compilação: Walter de Aguiar Filho, janeiro/2016 

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